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5.3 AÇÕES NO ESPAÇO ESPERANÇA

5.3.3 O debate sobre “espaço público”

Uma vez montada a rede, com 12 computadores, conectada a um provedor de banda lar- ga, a comunidade, pela primeira vez, tinha acesso à internet. O interesse foi imediato e explosivo. Agentes de saúde, estudantes, funcionários do Espaço Esperança, militantes comunitários, mem- bros de outras ONGs, todos queriam reservar um horário. Os planos de utilização, desde os mais simples aos mais mirabolantes, borbulhavam nas reuniões.

Emergiu então um problema: quem mandava nos micros? Quem teria acesso a eles? Quais seriam os critérios para utilização? Quem iria definir os critérios, organizar os horários e gerenciar o uso? Como e por quem seria feita a manutenção? Os estudantes perguntavam: pode visitar qualquer site? A navegação é livre? Pode acessar site de sacanagem? Os crentes e evangé- licos ruborizavam!

A simples presença desse meio de comunicação transformava completamente o ambien- te de aprendizagem que já existia no Espaço Esperança. Os micros administrados pelo CDI já eram motivo de disputa entre os adolescentes. Praticamente não havia horário vago, apesar de o laboratório não ter conexão com a internet. A notícia de que o laboratório do Comunidade Sau- dável tinha doze máquinas ligadas à internet, levou o ambiente à fervura. Infelizmente não pude- mos gravar os diversos debates que houveram, no entanto, as anotações feitas no calor da polêmi- ca permitem esboçar os principais argumentos e personagens.

• Estudantes do ensino fundamental II e médio Î queriam liberdade total: se é públi- co, ninguém manda e tem que ter acesso livre a qualquer hora, navegação em qualquer site etc. Se propunham a colaborar na manutenção e gerenciamento, mas eram contra qualquer taxa de manutenção.

• Agentes de saúde Î esse espaço é da comunidade e, portanto, o acesso deve ser para toda a comunidade, porém a partir de critérios ligados a projetos de trabalho relevantes para a própria comunidade. Propunham uma taxa de uso para custear a manutenção. Dispunham- se a colaborar no gerenciamento, porém não na manutenção, por falta de conhecimentos técnicos.

• Representante da prefeitura Î se o espaço é público, ninguém pode mandar, não pode cobrar nada e o acesso deve ser irrestrito sem qualquer tipo de barreira, sob o critério de quem chegar primeiro. A manutenção deveria ficar a cargo da Unicamp ou da prefeitura e o gerenciamento do uso poderia ser feito por um funcionário qualquer. Excetuando-se os horários de cursos formais, o uso seria livre. O CDI funcionava com esses critérios.

• A coordenação do projeto Î qualquer pessoa da comunidade poderia usufruir do la- boratório, porém a partir de um projeto de interesse comunitário. Espaço público não signi-

fica ausência de dono ou de gerenciamento. O dono daquele espaço público era a comuni- dade e ela deveria organizar-se para custear, gerenciar e manter esse espaço.

• As enfermeiras dos postos de saúde Î o uso dos computadores tem de ser rigida- mente controlado para evitar que o “pessoal do narcotráfico” venha a se utilizar desses re- cursos para usos indevidos. Quando os computadores fossem para os centros de saúde, elas se propunham a colaborar, mas o controle deveria ficar a cargo delas e numa sala com cha- ve.

Temos, nesses argumentos, uma grande quantidade de representações mentais envolven- do concepções de Estado, de espaço público, de relações entre Estado e sociedade civil, de geren- ciamento comunitário. Num segundo plano, aparecem as representações do papel da tecnologia na sociedade, de cooperação e, por fim, de comunidade saudável. Nos debates e nas atividades, essas representações transformavam-se em entidades que comunicavam-se entre si e cruzavam o ambiente de aprendizagem modelando a construção do conhecimento e da autonomia.

Não tivemos como objetivo associar cada um desses argumentos e paradigmas às ações correspondentes, mas foi possível notar que, a cada concepção de espaço público defendida esta- va associada uma visão do papel da tecnologia para a comunidade. O espaço público como algo “sem dono”, porém financiado por uma instituição concreta, era associado a uma visão da tecno- logia a serviço das satisfações e interesses individuais. A somatória dessas satisfações individuais comporia a satisfação da comunidade. Daí o uso livre e irrestrito para todos. Já a visão de espaço público como algo organizado e mantido por uma comunidade era associada à idéia de comuni- dade enquanto agrupamento de pessoas organizado e planejado. Ligava-se também à idéia de projetos sociais e políticas públicas, onde a tecnologia estaria prioritariamente a serviço dessas políticas e, a partir desse patamar, a serviço das individualidades.

A presença do computador conectado à internet fez emergir diversas representações mentais de cunho social-comunitário, verdadeiras entidades do ambiente de aprendizagem que, mescladas às entidades das interfaces, atuavam como mediadoras e modeladoras da reconstrução e re-significação da identidade cultural da comunidade.

A riqueza desse processo evidenciou uma grande limitação desse ambiente de aprendi- zagem, no que tange à construção da autonomia. O ritmo da comunidade, do ambiente de apren- dizagem, da Unicamp, da prefeitura, dos agentes de saúde, dos estudantes, da comunicação digi- tal, da aprendizagem, entrava facilmente em descompasso. Havia um descompasso constante no diálogo entre as diversas entidades do ambiente de aprendizagem. Esse descompasso levava a desajustes sistemáticos, para todas as pessoas, entre as representações mentais construídas e o objeto da representação. Nessa ebulição de entidades, vários microprocessos ficavam sem respos- ta, e dezenas de entidades ficavam sem diálogo, apontando índices crescentes de falhas na comu- nicação. Notamos que esse fenômeno constitui uma importante entidade bloqueadora e limitado- ra da comunicação, da aprendizagem e da autonomia.

Observamos que as características dos estágios piagetianos também poderiam ser detec- tadas nessa fase dos trabalhos, assim como os processos de contextualização, descontextualização e recontextualização. No entanto, nesse período, nossas preocupações recaíam nas novas entida- des que poderiam surgir no interior do ambiente de aprendizagem. A evolução da anomia, hete- ronomia, autonomia (cooperação nascente), na sua constituição grupal e comunitária, revelou-se, nessas circunstâncias, modelada não mais simplesmente pelo marco regulatório individual, mas por novas entidades do ambiente de aprendizagem, pela discrepância de ritmos e pela falta de respostas. Os diferentes níveis de percepção, compreensão e interiorização desse fenômeno, ou dessa entidade conflitante, foram produzindo diferentes graus e matizes de insatisfação e ansie- dade, que funcionaram como freios ao processo de aprendizagem e autonomia.