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AUTONOMIA E OS PROCESSOS EPISTEMOLÓGICOS

Na psicologia, o sujeito da autonomia já não é mais um grupo ou classe social. O sujeito passa a ser o indivíduo imerso em contextos psicológicos. As regras do mundo adulto e a coerção social sobre o indivíduo aparecem como objetos, enquanto a linguagem e a aprendizagem ocupam a função de mediadores da autonomia. No entanto, tanto na sociologia quanto na psicologia trata-se da construção da identidade do sujeito. Na sua acepção mais geral em psicologia, pudemos encon- trar num dicionário de sociologia o seguinte significado para o verbete:

autonomia refere-se à preservação da integridade do eu. Existe em todas as pessoas a ten- dência a resistir às pressões da enculturação e a persistir em certas formas de comporta- mento que no passado as tenham auxiliado a enfrentar seus problemas. Numa sociedade e- ficaz e sadia, a luta entre os desejos da criança e os estímulos recorrentes resulta no desen-

volvimento do autocontrole do indivíduo e num crescente sentido de auto-estima, o que por sua vez gera na pessoa um perdurável senso de autonomia.

Em psicologia social, o problema da autonomia é abordado de quatro maneiras, distintas mas correlatas, dependendo do traço de comportamento que está sendo enfatizado: psi- cologia do ego, motivação, aprendizagem, ou dissociação da personalidade. O denomi- nador comum das quatro maneiras de se encarar a autonomia é, na ausência de um estí- mulo específico ou situação-estímulo que normalmente a provoque, a permanência da reação, a fixação do comportamento num estágio que originalmente trouxe satisfação ao indivíduo. (Silva, 1986)

A luta pela preservação da integridade do eu, da personalidade ou da identidade do sujei- to frente à pressão da sociedade revela-se nesse novo cenário. A mesma luta pela identidade e autonomia política de grupos ou classes sociais, frente às regras sociais vigentes, agora vê-se em um outro contexto, situa-se no campo dos indivíduos e das relações psicológicas. Se antes as re- lações eram de ordem política, agora são as regras dos relacionamentos interpessoais, as regras psicológicas, ou mesmo as regras sociais, enfocadas em suas implicações no indivíduo.

No campo da epistemologia e da psicologia, Piaget propõe uma superação das concep- ções inatistas e ambientalistas. Em seus estudos, Piaget (2002) sugere a idéia de que o conheci- mento é uma atividade ou, dito de outra forma, uma construção. Como tal, mesmo o fato mais empírico tem de passar pelo filtro de uma coordenação de ações, por estruturas feitas pelo sujeito. Sendo assim, a autonomia do sujeito em relação aos objetos, aos processos ou a outras pessoas, também dependeria dessas estruturas mentais construídas pelo sujeito.

O conhecimento não pode ser concebido como algo predeterminado nas estruturas inter- nas do sujeito, porquanto estas resultam de uma construção efetiva e contínua, nem nas características preexistentes do objeto, uma vez que elas só são conhecidas graças à me- diação necessária dessas estruturas, e que estas, ao enquadrá-las, enriquecem-nas (quanto mais não seja para situá-las no conjunto dos possíveis). (Piaget, 2002, p. 1)

Ao considerar o conhecimento como uma construção, como um intermediário dialético entre o sujeito e o objeto, rompe com as concepções inatistas e ambientalistas e firma a posição de que não se pode estabelecer uma relação direta com o objeto de conhecimento, já que entre eles media o pensamento, que é uma estrutura que o sujeito constrói para efetivar a assimilação e acomodação do objeto.

Pero, desde el punto de vista de la experiencia física, en cada uno de sus niveles, por primitivos que sean, la necesidad de tal marco es extremadamente significativa, pues muestra la imposibilidad de una experiencia “pura” en el sentido de un contacto directo

entre el sujeto y los objetos. En otras palabras, todo conocimiento del objeto, cualquiera que sea su naturaleza, es siempre asimilación a esquemas, y estos esquemas llevan con- sigo una organización lógica o matemática, aunque sea elemental. (Piaget, 1969, p. 306)

Essa concepção epistemológica central perpassa todo o trabalho de Piaget ao analisar as fases de desenvolvimento da criança. Desde o nascimento até a adolescência, a criança, por meio de sua ação e sustentada por seu próprio desenvolvimento biológico, vai estabelecendo níveis de coordenação entre essas estruturas mentais e o mundo físico e social que a rodeia.

Piaget descreve quatro níveis fundamentais de desenvolvimento. Iniciando com a fase sen- sório-motora, destaca que, dados o desenvolvimento e experiência ainda incipientes, o bebê

não manifesta o menor indício de uma consciência do seu eu, nem de uma fronteira está- vel entre dados do mundo interior e do universo externo, durando este “adualismo” até o momento em que a construção desse eu torna-se possível em correspondência e em opo- sição com os eus dos outros [...] (Piaget, 2002, p. 9)

Os esquemas da inteligência sensório-motora ainda não são, de fato, conceitos, porquan- to não podem ser manipulados por um pensamento, e só entram em jogo no momento de sua utilização prática e material, sem nenhum conhecimento de sua existência enquanto esquemas, dada a inexistência de instrumentos semióticos para designa-los e permitir sua conscientização. (Piaget, 2002, p. 16)

Nessa fase, as estruturas mentais ainda são muito incipientes e não são capazes de constru- ir os conceitos enquanto representações mentais dos objetos. Assim, a “diferenciação nascente entre sujeito e objeto é marcada, simultaneamente, pela formação de coordenações e pela distinção entre elas de duas espécies: por um lado, as que ligam entre si as ações do sujeito e, por outro, aquelas que se referem às ações de uns objetos sobre outros” (Piaget, 2002, p. 14).

Com o avanço do desenvolvimento biológico e das estruturas mentais, a criança entre 2 e 3 anos de idade entra no segundo nível do pensamento, o pensamento pré-operatório. Nesse nível, subdivido em dois momentos, “o sujeito torna-se rapidamente capaz de inferências elemen- tares, de classificações de configurações espaciais, correspondências, etc. Em segundo lugar, desde o surgimento precoce dos “por que”, assiste-se a um começo de explicações causais” (Pia- get, 2002, p. 19).

Tomando como referência a relação sujeito/objeto e seus reflexos na construção de es- truturas do pensamento, Piaget destaca a formação do conceito como uma diferença marcante entre os níveis de desenvolvimento.

A grande distinção epistemológica entre as duas formas de assimilação por esquemas sensório-motores e por conceitos é, portanto, que a primeira ainda diferencia mal as ca- racterísticas do objeto das características das ações do indivíduo em relação a esses obje- tos, ao passo que a segunda forma envolve somente os objetos, mas tanto os ausentes quanto os presentes, e ao mesmo tempo liberta o indivíduo de seus vínculos com a situa- ção atual, conferindo-lhe então o poder de classificar, seriar, pôr em correspondência, etc. com muito mais mobilidade e liberdade. (Piaget, 2002, p. 22)

Essa capacidade nascente de conceituação permite à criança a passagem de um ego- centrismo bastante radical para uma descentração relativa por objetivação e espacialização. Ainda no período pré-operatório, porém já comportando as coordenações entre as ações con- ceitualizadas, surge um progresso importante: “a diferenciação constante do indivíduo e da classe, o que se deve, em especial, à natureza das classificações” (Piaget, 2002, p. 27).

Por meio da evolução das coordenações, associada ao avanço da descentração, “as ações interiorizadas ou conceitualizadas com que o sujeito deveria até agora contentar-se adquirem a categoria de operações, enquanto transformações reversíveis modificam certas variáveis e con- servam outras a título de invariantes” (Piaget, 2002, p. 30). É o estágio das operações concretas, no qual a criança passa a dominar as operações infralógicas ou espaciais.

Nesse movimento contínuo e dialético entre sujeito e objeto, o processo de equilibração se fortalece com estruturas que avançam para o pensamento lógico-matemático, autônomo em relação ao objeto. Ao longo desse processo de crescimento e desenvolvimento da criança,

assistimos, partindo de um nível inicial de indiferenciação entre o sujeito e o objeto, a progressos complementares e relativamente equivalentes nas duas direções de coordena- ção interna das ações, depois das operações do sujeito, e de coordenação externa das a- ções, primeiro psicomórficas, depois operatórias, atribuídas aos objetos. Ou seja, obser- vamos, nível por nível, duas espécies de desenvolvimentos estreitamente solidários: o das operações lógico-matemáticas e o da causalidade, com influência constante das pri- meiras sobre a segunda do ponto de vista das atribuições de uma forma a um conteúdo, e influência recíproca do ponto de vista das facilitações ou resistências que o conteúdo o- ferece à forma. (Piaget, 2002, p. 46)

Na fase mais evoluída desse processo, a das operações formais, o pensamento do sujeito ganha certa autonomia em relação ao objeto, na medida que rompe com as relações causais, as- sumindo um caráter extemporâneo. Com a evolução das coordenações internas e externas, a cri- ança chega à etapa do processo

Que leva as operações a libertarem-se da duração, ou seja, de fato, do contexto psicoló- gico das ações do sujeito, com o que elas comportam de dimensão causal, além de suas propriedades implicativas ou lógicas, para atingir finalmente esse caráter extemporâneo que é próprio das ligações lógico-matemáticas depuradas. (Piaget, 2002, p. 47)

A evolução do pensamento, com suas coordenações internas e externas, representa uma evolução da relação sujeito-objeto, sendo este entendido tanto como o mundo físico quanto como o mundo social que rodeia a criança. Assim, tanto a construção do pensamento quanto o desen- volvimento da autonomia associam-se às estruturas mentais enquanto representações das relações do sujeito com o mundo social e com o mundo físico.

Para Piaget (1973), há relação entre o indivíduo e a sociedade que, sob a ótica do desen- volvimento intelectual, permite afirmar que este está diretamente relacionado às relações sociais:

Mas, se a interação entre o sujeito e o objeto os modifica, é a fortiori evidente que cada interação entre sujeitos individuais modificará os sujeitos uns em relação aos outros. Ca- da relação social constitui, por conseguinte, uma totalidade nela mesma, produtiva de ca- racterísticas novas e transformando o indivíduo em sua estrutura mental. Da interação entre dois indivíduos à totalidade constituída pelo conjunto das relações entre indivíduos de uma mesma sociedade, há, pois continuidade e, definitivamente, a totalidade assim concebida aparece como consistindo não de uma soma de indivíduos, mas de u m siste- ma de interações modificando estes últimos em sua estrutura própria.

Assim definidos pelas interações entre indivíduos, com transmissão exterior das caracte- rísticas adquiridas (em oposição à transmissão interna dos mecanismos inatos), os fatos sociais são exatamente paralelos aos fatos mentais, com a única diferença que o “nós” se encontra constantemente substituído pelo “eu” e a cooperação, pelas operações simples. (Piaget, 1973, p. 35)

Estas trocas entre indivíduos ou entre o indivíduo e sociedade vão se modificando ao longo do desenvolvimento da criança. Para este indivíduo mutante, criança evoluindo para a fase adulta, as trocas intelectuais também vão se transformando ao longo de cada fase de desenvolvi- mento. A qualidade dessas trocas intelectuais, mediadas pelas estruturas mentais construídas pelo sujeito, define, para Piaget, o grau de socialização do indivíduo, que, na fase mais avançada, atin- ge o que ele denomina de personalidade:

A personalidade não é o “eu” enquanto diferente dos outros “eus” e refratário à soci- alização, mas é o indivíduo se submetendo voluntariamente às normas de reciproci- dade e de universalidade. Como tal, longe de estar à margem da sociedade, a perso- nalidade constitui o produto mais refinado da socialização. Com efeito, é na medida em que o “eu” renuncia a si mesmo para inserir seu ponto de vista próprio entre os outros e se curvar assim às regras de reciprocidade que o indivíduo torna-se persona- lidade [...] em oposição ao egocentrismo inicial, o qual consiste em tomar o ponto de vista próprio como absoluto, por falta de poder perceber seu caráter particular, a

personalidade consiste em tomar consciência desta relatividade da perspectiva indi- vidual e a colocá-la em relação com o conjunto das outras perspectivas possíveis: a personalidade é, pois, uma coordenação da individualidade com o universal. (apud La Taille et al, 1992, p. 16)

Então, para Piaget, a autonomia da criança é um processo de trocas intelectuais com o mundo adulto, coordenadas pelas estruturas mentais, que se desenvolve numa luta contra a pres- são social e que vai delineando a sua personalidade. Assim, ela passa a submeter-se voluntaria- mente às normas de reciprocidade e de universalidade. Conquistado esse grau máximo de sociali- zação, a personalidade (numa relação autônoma), a relação de cooperação intelectual, de equilí- brio, passa a substituir a antiga relação heterônoma ou de coação. Relação esta que coloca como regra que:

Em suma, o equilíbrio de uma troca de pensamentos supõe assim: 1º, um sistema comum de sinais e de definições; 2º, uma conservação das proposições válidas obrigando quem as reconhece como tais, e 3º, uma reciprocidade de pensamento entre os parceiros. (Pia- get, 1973, p.186)

Nesse momento, surge um outro problema relacionado à construção da personalidade ou autonomia. A partir de uma certa fase do desenvolvimento, em particular na fase adulta, nem sempre os indivíduos ou grupos estão dispostos a assumir novos riscos ou compromissos. Então o desejo, assim como a consciência de si e a própria personalidade, apontam para possi- bilidade de que, num estágio mais avançado do desenvolvimento, venham a ser os modeladores do próprio desenvolvimento.

A partir de questionamentos sobre as diferenças individuais na aquisição das operações lógi- cas, do papel do ambiente e da falta de estabilidade da capacidade intelectual na vida adulta,

Piaget responde a estas críticas com uma modificação da sua teoria original sobre a natu- reza das operações formais (Piaget, 1972). Neste trabalho, leva em consideração a influ- ência do ambiente cultural, das aptidões individuais, e da especialização profissional no desenvolvimento de operações formais. Ele levanta várias hipóteses, demonstrando pre- ferência por aquela que afirma que todos os indivíduos normais atingem o estágio das operações formais. Atingem-no, entretanto, em diferentes áreas, de acordo com a sua ap- tidão e sua motivação. As estruturas formais podem ser utilizadas diferentemente pelo indivíduo de acordo com a área. Assim, um sapateiro pode ser capaz de raciocinar for- malmente em sua área. Entretanto, diante de um dos testes de pensamento formal de Pi- aget, o sapateiro poderia manifestar a “aparência de estar no nível concreto” pela falta de informação na área a que o teste se refere (Piaget, 1972, p. 10). (Valente, A. 1988, p. 31)

Surge, então, uma importante diferença entre o adulto e a criança. Assim como as operações lógicas, a autonomia assume, na fase adulta, um caráter relativo à área, ao assunto, ao conjunto de informações ou à cultura na qual se está inserido. Ou seja, uma pessoa autônoma em informática pode ser uma pessoa completamente heterônoma em antropologia. Da mesma forma, uma pessoa autôno- ma no convívio em uma grande cidade como São Paulo pode ser uma pessoa heterônoma no convício com uma comunidade indígena do interior do Acre e assim por diante.

Para Vigotsky, segundo as observações de Marta Kohl de Oliveira (1992) as relações su- jeito-objeto são regidas pela mediação. Mediação essa que é impregnada pela cultura e pelas condi- ções sócio-históricas. Emergem, então, a linguagem, os símbolos, os conceitos abstratos e as repre- sentações culturais na construção do indivíduo que, visto sob a óptica de Piaget, fará uso desses recursos na construção de sua personalidade, atingindo níveis de autonomia que permitam a ele submeter-se voluntariamente às normas de reciprocidade e de universalidade.

Uma idéia central para a compreensão das concepções de Vygotsky sobre o desen- volvimento humano como processo sócio-histórico é a idéia de mediação. Enquanto sujeito de conhecimento o homem não tem acesso direto aos objetos, mas um acesso mediado, isto é, feito através dos recortes do real operados pelos sistemas simbóli- cos de que dispõe. O conceito de processo de representação mental: a própria idéia de que o homem é capaz de operar mentalmente sobre o mundo supõe, necessaria- mente, a existência de algum tipo de conteúdo mental de natureza simbólica, isto é, que representa objetos, situações e eventos do mundo real no universo psicológico do indivíduo. Essa capacidade de lidar com representações que substituem o real é que possibilita que o ser humano faça relações mentais na ausência dos referenciais concretos, imagine coisas jamais vivenciadas, faça planos para um tempo futuro, en- fim, transcenda o espaço e o tempo presentes, libertando-se dos limites dados pelo mundo fisicamente perceptível e pelas ações motoras abertas. A operação com sis- temas simbólicos – e o conseqüente desenvolvimento da abstração e da generaliza- ção – permite a realização de formas de pensamento que não seriam possíveis sem esses processos de representação e define o salto para os chamados processos psi- cológicos superiores, tipicamente humanos. O desenvolvimento da linguagem – sistema simbólico básico de todos os grupos humanos – representa, pois, um salto qualitativo na evolução da espécie e do indivíduo. (Oliveira, 1992, p. 26)

Assim, a autonomia do agente de saúde, uma pessoa adulta e inserida num contexto so- cial, será vinculada aos elementos culturais, às áreas de interesse, ao desejo, às linguagens utili- zadas nas suas relações sociais e aos recursos disponíveis. Não será, portanto, uma autonomia absoluta nem atemporal.