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Um segundo grande problema, revelado nessa primeira rodada de conversas, foi o con- torno pedagógico que daríamos aos trabalhos. Se pretendíamos estudar a questão da autonomia, não poderíamos impor um modelo. Muito pelo contrário, deveríamos detectar quais as “matrizes pedagógicas” (Furlaneto, 2003) e ambientes de aprendizagem existentes e colocarmos nossas propostas para debate. Formação de alunos, formação de professores, educação popular, comuni- dade aprendente ou EAD? Quais seriam as tendências existentes na comunidade?

A solicitação formulada pela comunidade, de que a Unicamp criasse de cursos de infor- mática para todos, supletivos e pré-vestibulares, indicava a presença de uma matriz pedagógica alicerçada numa concepção de educação formal, escolar, de linhagem tradicional baseada na con- cepção de educação como transmissão de informação. Além dos estudantes secundaristas, que traziam essa experiência das escolas da região para o convívio com os agentes de saúde, essa ma- triz aparecia nas aulas particulares de história, ministradas por um professor da comunidade para os alunos que pretendiam disputar o vestibular. As aulas de informática, ministradas pelo CDI (Comitê de Democratização da Informática), guiavam-se por apostilas tutoriais, e os cursos reali- zados pelos agentes na Secretaria da Saúde, parte da formação profissional, não eram muito dife- rentes.

Como parceira no empreendimento, a Unicamp poderia contribuir com a larga experiên- cia em formação de professores da rede pública, já acumulada pelo mundo acadêmico. São diver- sas experiências construídas a partir de matrizes pedagógicas interacionistas que incorporam as novas Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC) e as mais recentes teorias do conheci- mento. Com sua infra-estrutura tecnológica e seu potencial teórico, a Unicamp teria de ser capaz de estabelecer relações com o universo comunicacional da comunidade que, apesar da enorme diferença em relação ao acesso ao conhecimento e do seu peso institucional, não se impusessem como relações coercitivas para a construção do conhecimento. A Unicamp poderia, então, contri-

buir com uma matriz pedagógica onde a educação é concebida como construção do conhecimen- to.

Contrastando com essas duas matrizes pedagógicas, havia uma terceira, com caracterís- ticas de educação popular, materializada nos cursos de dança, capoeira, corte e costura, fuxico, que se realizavam há anos no centro comunitário da comunidade, o Espaço Esperança. Essas ex- periências de ensino-aprendizagem da comunidade apontavam traços claros de desconfiança em relação à educação oficial e institucional. Eram um elemento importante do processo de aprendi- zagem que, de uma forma ou de outra e apesar dos limites, apontava para um movimento da co- munidade, o de colocar-se como agente de seu próprio conhecimento e, autonomamente, consti- tuir processos de “educação continuada” (Valente, 2001). Havia, então, apesar dos limites, um processo de “comunidade aprendente” (Fernandes & Pascale, 2003).

Estampava-se claramente a necessidade de precisarmos o contorno pedagógico das a- ções que começavam a ser desenvolvidas, incluindo a configuração do grupo de agentes comuni- tários que iríamos observar.

O primeiro passo foi descartar a possibilidade de criação de cursos supletivos e pré- vestibulares, pois esse não era o objetivo do projeto nem da Unicamp. Por outro lado, sabíamos que não se tratava da constituição de uma escola formal, com salas de aula, coordenadores peda- gógicos, professores, crianças e adolescentes etc. O público alvo era formado por adultos entre 20 e 40 anos de idade, assalariados dos centros de saúde, segundo grau completo, cuja função profis- sional constituía, de certa forma, na orientação e educação dos moradores da comunidade. Ti- nham, então, funções semelhantes à dos professores, embora não houvesse a formalidade das escolas nem do conteúdo a ser abordado. Por outro lado, o conteúdo da aprendizagem profissio- nal pretendida mostrava-se profundamente multidisciplinar. Incorporava conteúdos da área médi- ca (curativa, preventiva e social), da sociologia (condições econômico-sociais da comunidade), da educação (concepções de aprendizagem e educação), da psicologia (condicionantes psicológi- cos da relação agente-morador e agente posto de saúde) e de informática (uso do computador no serviço diário, banco de dados, Educação à Distância, cadastro eletrônico).

Fomos, então, buscar as referências teóricas para as características pedagógicas que es- távamos detectando. Encontramos em Almeida (2001) o relato de uma experiência em formação de professores da rede pública de ensino, do qual participaram alunos, professores e pesquisado- res da PUC-SP. Mais que um relato, encontramos uma concepção de educação e um guia para a ação pedagógica que estávamos empreendendo.

No projeto NAVE, aconteceu um redesenho da função do professor na construção desses ambientes de aprendizagem. O que ficou muito claro para os pesquisadores do Projeto NAVE, foi que o projeto de construir educação é algo que supõe trazer toda a carga das histórias individuais, deixá-las disponível para o grupo, abrir-se aos demais, refletir con- tinuamente sobre o que é aprender, dominar conteúdos e técnicas, ter clara noção de que sociedade se quer viver, para assim poder gerar e criar ambientes inovadores para novos aprendizes. A isso chama-se aqui ensinar. (Almeida, 2001, p. 9)

Com o modelo orquestral de comunicação, as contribuições de Freire (1987) e as de Al- meida (2001), começavam a surgir os contornos pedagógicos mais gerais do movimento no qual nos encontrávamos inseridos. Estávamos buscando construir ambientes de aprendizagem, com recursos digitais e de EAD, no interior dos quais pudéssemos refletir continuamente sobre o que é aprender, dominar conteúdos e técnicas, ter clara noção de que sociedade se quer viver. Esperá- vamos, dessa forma, contribuir com condições para que a comunidade elevasse o seu grau de conhecimento e autonomia. No entanto, diferente da experiência vivida no Nave, a relação social não se dava entre professores da rede pública e alunos professores e pesquisadores, nem no inte- rior das escolas. No Projeto Comunidade Saudável, a relação se dava entre agentes comunitários de saúde; alunos professores e médicos; representantes da comunidade e de ONG que atuavam na região e demais trabalhadores dos postos de saúde. Da mesma forma, o local dos encontros, de- pendendo da atividade, variava entre a Unicamp, o centro comunitário (Espaço Esperança) e os centros de saúde. Outra diferença marcante é que não tínhamos a educação como única atividade comum a todos. A educação, a medicina e a ação dos agentes mesclavam-se à militância comuni- tária. Sendo assim, dependendo dos temas, da composição e local onde eram realizadas as reuni- ões, suas configurações assemelhavam-se a situações escolares, a formação de professores, a e- ducação popular ou reunião comunitária.

Já tínhamos algumas referências de experiências com formação de professores, o que nos ajudava a entender melhor tanto a ação dos agentes na comunidade quanto o processo de

formação que pretendíamos. Ainda ficavam sem parâmetros os elementos de formação popular que havíamos detectado.

Encontramos em Brandão (1980), descrições de períodos da história brasileira onde a educação popular teve um grande destaque. Referindo-se ao início da década de 1960, o autor coloca que

Aquele foi o começo do tempo da transformação da idéia e da prática de uma Educação de Adultos inocente, vinculada a programas de Desenvolvimento Comunitário aparente- mente despolitizados, logo a serviço oficial da política oficial de dominância, numa E- ducação Popular cuja teoria, desde Paulo Freire, faz a denúncia dos usos políticos da educação opressora e cuja prática converte o trabalho pedagógico do educador em favor do trabalho político dos subalternos, vinculado aos movimentos populares e às práticas de classe.

A memória, portanto, do que se escreve aqui vem do tempo em que se começou a criar um espaço de prática política popular através da educação. Foram experiências que bus- caram realizar a dimensão negada nas promessas oficiais de “educação e desenvolvimen- to” [...]

A produção do Método Paulo Freire dentro do Serviço de Extensão Cultural da Univer- sidade Federal de Pernambuco; as experiências duradouras de uma “educação conscien- tizadora” entre lavradores de Minas Gerais para cima e para o oeste, através do Movi- mento de Educação de Base; a multiplicação de trabalhos culturais e pedagógicos feita pelos movimentos de cultura popular (MCPs) e pelos centros populares de cultura (CPCs), promovidos pela UNE e outras entidades regionais e locais do estudantado bra- sileiro; a montagem do Programa Nacional de Alfabetização, pelo Ministério da Educa- ção e Cultura. (Brandão, 1980, p. 11, grifo do autor)

Embora fossem contextos internacionais e nacionais bastante diferentes no que toca à geopolítica e à economia, num breve estudo desse período poderemos encontrar vários elementos de semelhança com o atual cenário nacional e regional, onde desenvolvemos o projeto. O proces- so de mudança de paradigmas nas áreas de educação e saúde, expresso nos PCN e nas resoluções da Organização Mundial de Saúde, assim como as parcerias das Pró-reitorias de Extensão com setores da sociedade civil e com ONGs, são alguns elementos da realidade atual que nos permi- tem identificar traços da educação popular na proposta educacional em curso no projeto. Por ou- tro lado, a existência de ONGs na comunidade, atuando diretamente com a educação popular, nos leva a crer que as matrizes pedagógicas da educação popular não só estão presentes na comuni- dade como têm um peso importante na ação de seus membros.

Garcia (1980), analisando esse rico período da educação popular no país, destaca os pe- rigos da postura pedante do intelectual quando trabalha com comunidades.

[...] um dos riscos do intelectualismo é o de que o intelectual acredita-se, em princípio, detentor de uma ciência, de um saber, sobre o qual funda a sua autoridade. As formas caudilhescas de liderança política não são muito diferentes disto, as raízes são semelhan- tes e ambas são autoritárias [...]

Ainda que os intelectuais do Brasil de hoje, implicitamente ou até por intenção própria, representem o povo nas suas críticas, eles estão longe do povo. A vida da cultura e a vida popular correm por faixas muito diferentes. O fato é que esse país é extremamente elitis- ta do ponto de vista cultural. A vida dos intelectuais, desde os estudantes até o mais alto hierarca da cultura brasileira, tem muito pouco a ver com a vida popular. Exceto alguns movimento educacionais que fogem um pouco a essa regra. (Weffort apud Garcia,1980, p. 89)

Após esses alertas, bastante pertinentes para a situação atual, o autor sugere que deverão ser essas camadas que decidam seus próprios interesses. Ou seja, o fundamental deve ser “a auto- nomia popular no fazer e no dizer” (Garcia, 1980, p. 91).

Embora os alertas aportados da educação popular fossem muito ricos, importantes e per- tinentes para nosso trabalho, tínhamos de admitir que a realidade era ainda mais rica. No Espaço Esperança ocorriam, há anos, cursos que agrupavam crianças, jovens e senhoras da terceira idade. A integração desse centro comunitário com as escolas e centros de saúde da região apontavam para um trabalho integrado e mais amplo. Havia, então, um processo embrionário de “aprendiza- gem continuada ao longo da vida” (Valente, 2001).

De acordo com Fernandes e Pascale (2003), em palestra proferida em São Paulo, a partir de 1980 o termo Comunidades do Aprendizado (para nós, comunidade aprendente) surgiu em resposta a três mudanças inter-relacionadas: a globalização da economia, a Economia do Conhe- cimento e o desenvolvimento das Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC). Desde então, esse termo refere-se a comunidades que se utilizam dos processos de educação continuada para se readaptarem a essas mudanças. Realidade esta que estávamos presenciando no São Marcos.

Segundo as autoras esse conceito vem sendo forjado como sendo “um bairro, uma co- munidade, uma cidade ou região onde o conceito de educação continuada (ao logo da vida) é ex- plicitamente usado como um princípio organizador e um objetivo social” (Fernandes & Pascale,

2003). As características mais marcantes desses processos de aprendizado comunitário, observa- das ao longo das últimas décadas, foram assinadas como sendo14:

¾ Cada recurso de aprendizagem presente na comunidade é mobilizado para promover:

• O conhecimento

• As habilidades

• As atitudes

• Os valores

¾ Baseiam-se em relacionamentos sociais de aprendizagem dentro da própria comuni- dade ou de outras comunidades interessadas em compartilhar melhores práticas, problemas e so- luções.

¾ Abordam a educação formal e a informal de forma integrada, reconhecendo, valori- zando e celebrando a aprendizagem em todas as suas formas, por toda a vida do indivíduo e sob todas as perspectivas – no ambiente familiar, profissional e na convivência social.

¾ Reconhecem a influência substancial da educação informal na construção dos alicer- ces para o sucesso obtido no sistema educacional formal.

Nas conclusões da palestra, e nos materiais digitais distribuídos, as autoras marcam o papel central da educação:

• Mudanças sustentáveis, tanto nos indivíduos quanto nas comunidades, só são possíveis se a aprendizagem ocorre.

• A aquisição de novos conhecimentos, habilidades, atitudes e valores é a única garantia de que os velhos e disfuncionais hábitos sejam substituídos por novas maneiras de res- ponder e gerenciar a mudança. (Fernandes & Pascale, 2003)

Além desses aspectos levantados pelas autoras, preocupações dos agentes de saúde a respeito da continuidade e manutenção do processo de aprendizagem revelaram outros possíveis critérios:

¾ Como as comunidades não vivem de forma isolada do mundo, as mudanças só serão sustentáveis se a comunidade assimilar os mecanismos de aprender e educar que a capacitem a construir conhecimentos para si e a cooperar com outras comunidades para que façam o mesmo. Ou seja, ela precisará ser aprendente e educante15 simultaneamente.

¾ O empoderamento e a autonomia no domínio da tecnologia e da EAD são, então, bens imprescindíveis para o desenvolvimento sustentado de uma comunidade aprendente.

Vários outros processos de aprendizagem se conformavam no interior do projeto: cursos presenciais; seminários; os diversos cursos populares no Espaço Esperança, o I, II e III Encontro Comunidade Saudável; as dinâmicas e reuniões nos centros de saúde; as caravanas para o II e III Fórum Social Mundial; os núcleos de EAD nos centros de saúde. Todo esse movimento, de uma forma ou de outra, poderia ser representado em opiniões e debates escritos nas ferramentas do TelEduc16, que passaria a ter um papel importante na descrição do problema a ser enfrentado, no planejamento da ação, na reflexão dos resultados, na depuração das soluções e novamente numa nova descrição.

Faltava trazer para esse cadinho de aprendizagem, as contribuições mediáticas introdu- zidas pelo próprio projeto: a rede de computadores na comunidade, a conexão dela com a inter- net, a máquina fotográfica digital, a filmadora digital, o escâner, gravador de DVD e CD, os ser- vidores, o suporte técnico da Unicamp e o TelEduc. Com a presença desses recursos, a comuni- dade teve à sua disposição novas ferramentas de comunicação e construção do conhecimento: o e-mail, os sites, os ambientes de EAD, o hipertexto, os fóruns de debate, os chats, o redimensio- namento do espaço e do tempo etc. Enfim, ao embrionário processo de aprendizagem continuada

15 Expressão usada para designar a atividade, realizada por uma comunidade, de educar-se a si própria e a outras

comunidades.

que já havia na comunidade, o projeto agregava a possibilidade digital de comunicação e de cons- trução do conhecimento.

A introdução dos recursos multimediáticos e a proposta de criação de núcleos de EAD na comunidade, a partir do TelEduc, colocariam os agentes comunitários de saúde frente às enti- dades das “Interfaces Humano-Computador” (Rocha & Baranauskas, 2003). Conhecer essas enti- dades, relacioná-las com as entidades emocionais, culturais e pedagógicas dos ambientes de a- prendizagem, exigiria de cada pessoa um esforço bastante grande para completar a “espiral da aprendizagem: descrição, ação, reflexão, depuração, nova descrição” (Valente, 2002, p. 18). Nos- so papel como mediadores na construção do conhecimento começava a revelar-se.

Elaboramos então, uma primeira hipótese de que o processo de aprendizagem dos agen- tes de saúde do Projeto Comunidade Saudável e o foco deste estudo, os ambientes de aprendiza- gem e a autonomia, transcorreriam no interior de uma comunidade aprendente e educante embri- onária, bastante complexa, com diversas características das variantes de educação aqui levantadas e em processo de apropriação dos recursos digitais. Poderíamos dizer que a comunidade apren- dente e educante seria esse grande ambiente de aprendizagem, na verdade, quase um sistema de vários ambientes diferentes e interligados entre si, no qual surgiriam desde situações de educação formal com paradigmas e matrizes pedagógicas tradicionais até situações informais, de cunho po- pular, com paradigmas construtivistas ou mesmo histórico-críticos. Ligando essa vasta possibilidade de situações de aprendizagem, aumentada pelos recursos digitais, estava a necessidade da comuni- dade de um lado e a possibilidade dada pela proposta do projeto e dos recursos tecnológicos digi- tais do outro. A caminhada pela promoção da saúde e em direção a uma Comunidade Saudável adquiria novos contornos.

Dentre todos os processos de aprendizagem, os núcleos de EAD passaram a ser tema de pesquisa da presente dissertação, embora sempre localizado nas suas inter-relações com os de- mais processos. A opção por esse ambiente de aprendizagem específico, com recursos de EAD, deveu-se ao fato de nele ser possível construir representações das outras situações de aprendiza- gem, assim como de registrar as diversas fases da espiral de aprendizagem. A utilização do TelEduc possibilitava simultaneamente utilizá-lo como ferramenta de comunicação e aprendizagem digital dos agentes e como ferramenta de registro desse processo.

2.5 AMBIENTE DE APRENDIZAGEM E SOFTWARE DE APRENDIZAGEM