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Na sociologia, é comum encontramos os grupos ou as classes sociais no papel de sujeito histórico dos processos econômicos, políticos e sociais. Nesses processos, as regras sociais, per- sonificadas nos grupos dominantes, conformam-se enquanto objeto de disputa entre todos os se- tores. Nesse contexto geral da luta econômica, social e política, os partidos políticos, a militância, aparecem como os mediadores da autonomia. De uma forma geral, nesse campo do conhecimen- to, a autonomia pode ser entendida como o

Poder de um grupo, principalmente de um grupo político, de se organizar e de se admi- nistrar ele mesmo, pelo menos sob certas condições e dentro de certos limites. (Sem es- tas reservas a autonomia seria soberania.) Ex.: Autonomia comunal, colonial. (Lalande, 1993)

No texto acima, o sujeito da autonomia é um grupo político que, numa relação de orga- nização e administração política com outros grupos, conquista o poder, em relação às leis de or- ganização e aos outros grupos, dentro de certos limites.

No entanto, o marxismo, ao entender que “a história de toda a sociedade até hoje é a his- tória de lutas de classes” (Marx & Engels, 1993), propõe não a autonomia em relação às regras sociais capitalistas, mas a sua ruptura pela “derrubada violenta de toda a ordem social até aqui existente” (Marx & Engels, 1993, p. 99). A partir desse objetivo de ruptura geral, os dirigentes

marxistas, de acordo com o Manifesto Comunista de 1848, entendiam que a autonomia de uma nação podia ser um passo importante nesse processo de emancipação do proletariado.

Na medida em que se estende num país a grande indústria, cresce ao mesmo tempo entre os operários desse país o desejo de serem esclarecidos sobre sua posição como classe operária perante as classes possuidoras […]

Uma sincera colaboração internacional entre as nações européias apenas é possível se cada uma delas for plenamente autônoma em sua própria casa. […]

A nobreza não foi capaz nem de conservar nem de reconquistar a independência polone- sa: à burguesia ela é hoje pelo menos indiferente. No entanto, tal independência é uma necessidade para a harmoniosa colaboração entre as nações européias. Ela só poderá ser conquistada pelo jovem proletariado polonês, e em suas mãos estará bem garantida.19 (Marx & Engels, 1993, p. 57)

Nessa citação, que se refere a um dos movimentos sociais mais significativos da modernida- de, revelam-se sujeitos variados: as nações européias, os operários ou a classe operária. A burguesia ou a nobreza, e conseqüentemente suas leis e regras políticas e econômicas, localizam-se como obje- to. À semelhança do exemplo anterior, existe uma relação na qual compete ao proletariado (ou classe operária), por meio da militância político-social, num processo de reconstrução de sua identidade enquanto classe, adquirir poder de se organizar e de se administrar ele mesmo, pelo menos sob certas condições e dentro de certos limites. Esse processo de preservação e, simultaneamente, de mutação da identidade traria, junto com a conquista da autonomia (ao assumir a condução do seu próprio país), uma nova relação de sincera colaboração entre as nações. Tratava-se aqui da independência do país do jugo estrangeiro como um passo importante para a implantação da “ditadura do proletariado” (Lê- nin, 1979, p. 27). Não se tratava, ainda, da questão da ruptura revolucionária propriamente dita, mas de um passo importante dela.

Por outro lado, em 1938, referindo-se às tarefas dos revolucionários nos países atrasa- dos, Trotsky salientava que:

Os problemas centrais desses países coloniais e semicoloniais são: a REVOLUÇÃO AGRÁRIA, isto é, a liquidação da herança feudal, e a INDEPENDÊNCIA NACIONAL, isto é, a derrubada do jugo imperialista. Essas duas tarefas estão estreitamente ligadas uma à outra.

É impossível rejeitar pura e simplesmente o programa democrático: é necessário que as próprias massas ultrapassem esse programa na luta. (Trotsky, 1979, p.102, grifo do au- tor)

Embora em tempos históricos diferentes, a condição necessária para uma “sincera cola- boração internacional” (Marx & Engels, 1993, p. 57), a plena autonomia nacional, deveria ser uma bandeira do proletariado no seu caminho para a emancipação.

É importante destacar que o conceito, esse conceito de autonomia empregado pelos mar- xistas, ao ser enfocado no contexto das lutas de classes, fica vinculado aos interesses das classes em disputa, assumindo assim um caráter relativo, dialético e histórico. A autonomia da burguesia é a heteronomia do proletariado. Ainda que pudesse ser entendida como níveis de gestão nas re- lações interdependentes, a autonomia liga-se à ruptura das regras burguesas pela imposição das regras proletárias e não à sua auto-aceitação. Sendo assim, a autonomia é uma fase, uma transição necessária para a autonomia do proletariado.

Como uma questão sociológica atual, destacamos as diferentes nacionalidades e etnias na Espanha, que convivem, a duras penas e sob fortes conflitos sociais, sob o mesmo regime eco- nômico, político e estatal. Com certeza, o debate sobre o possível caráter autônomo das naciona- lidades seria infindável e não é nosso propósito entrar nele. Apenas pretendemos buscar os parâ- metros conceituais contidos nas leis elaboradas entre as partes em conflito para regulamentar essa situação.

Já vimos que, nos exemplos marxistas, no contexto da luta de classes, o conceito de au- tonomia torna-se relativo. Em se tratando de interesses de classe antagônicos, a autonomia de uns é apenas um passo para subjugar o outro, ou um passo para a imposição de novas regras e não para a auto-aceitação das regras vigentes.

Consultando o artigo 1, do estatuto de Andaluzia, na Lei Orgânica 6/1981, é possível perceber o enquadramento teórico sobre o qual o conceito foi tomado:

Artículo 1

1. Andalucía, como expresión de su identidad histórica y en el ejercicio del derecho al autogobierno que la Constitución reconoce a toda nacionalidad, se constituye en Comu- nidad Autónoma, en el marco de la unidad indisoluble de la nación española, patria co- mún indivisible de todos los españoles.

2. El Estatuto de Autonomía aspira a hacer realidad los principios de libertad, igualdad y justicia para todos los andaluces, en el marco de igualdad y solidaridad con las demás nacionalidades y regiones de España.

3. Los poderes de la Comunidad Autónoma emanan de la Constitución y del pueblo an- daluz en los términos del presente Estatuto. (Espanha, 2003)

Além de tomar autonomia como níveis de gestão nas relações interdependentes (a uni- dade indissolúvel da nação espanhola), o estatuto relaciona essa gestão com a identidade históri- ca da nacionalidade andaluz e com a questão do autogoverno. O sujeito da autonomia em ques- tão, a nacionalidade andaluz, busca definir sua autonomia em relação ao Estado espanhol e às outras nacionalidades (o objeto) por meio da luta social e política num contexto de lutas sociais bastante complexo e conflitante. Sabemos que por trás desse estatuto existe uma luta social feroz contra o jugo espanhol. Ou seja, a autonomia não aparece como algo linear, alcançado tranqüila- mente. Aparece como um determinado nível de gestão conquistado, com muito esforço, numa relação conflitante onde o sujeito luta, contra a tutela de outrem, por maiores níveis de autonomia ou, no caso, até mesmo de independência.

Os constantes conflitos das nacionalidades na Espanha, mostram que esse estatuto de au- tonomia é uma tentativa dos setores dominantes de conviver e administrar interesses econômicos e políticos bastante divergentes ou talvez até antagônicos.