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A relação social, para Piaget, é o palco onde a criança desenvolve a personalidade. Con- siderando-se a dialética do desenvolvimento, ou seja, a relação entre o todo e as partes, a relação social-indivíduo pode assumir diferentes configurações. Quando o social se impõe unilateralmen- te sobre o indivíduo, temos a relação de coação social. Quando o indivíduo predomina sobre o social, temos o individualismo ou o egocentrismo. A relação equilibrada entre o todo (o social) e a parte (o indivíduo) constitui a relação de cooperação, de autonomia. Temos então uma autono- mia construída num processo de luta constante entre o indivíduo e o social que o cerca. Então, a

autonomia, mais que uma medalha conquistada ao fim do processo, pode ser descrita pela dialéti- ca de sua construção como um verbo, uma ação que precisa ser conjugada a cada momento de nossa existência. As contradições entre o social e o individual são uma constante para o ser hu- mano. Da mesma forma, a luta contra a coerção social, pela defesa da integridade do eu, por um melhor equilíbrio entre o individual e o coletivo, se renova a cada novo momento da vida. Esse fato nos leva a acreditar que o mesmo processo dialético de construção da personalidade, estuda- do por Piaget, atue na fase adulta, embora o adulto já possa contar com um marco regulatório, descrito pela andragogia, que a criança ainda não dispõe.

Na obra O juízo moral na criança, Piaget (1994), a partir da análise do juízo da moral e de regras de jogos, distingue três estágios do processo:

• O primeiro é a anomia, motor e individual (24 a 30 meses de vida): a regra ainda não é coercitiva, é puramente motora, suportada inconscientemente por exemplos interes- santes e não por realidade obrigatória;

• O segundo estágio é a heteronomia ou o egocêntrico (por volta dos 2 anos até 8 a- nos): a regra é considerada como sagrada e intangível, ela tem origem nos adultos, ou seja, a sua essência é externa e, qualquer modificação no teor das regras é considerada pela cri- ança como uma transgressão;

• No terceiro estágio desenvolve-se a autonomia, também chamado de cooperação nascente (começa a aparecer por volta dos 7 e 8 anos): a criança considera a regra como uma lei, criada pelo consentimento mútuo, cujo respeito é obrigatório. As regras podem ser modificadas e alteradas, desde que haja consenso geral.

Entre o segundo e o terceiro estágios há dois níveis diferentes de conscientização em re- lação às regras. Enquanto no segundo a regra é externa ao sujeito, no terceiro surge a consciência autônoma. No início, há um misticismo, com atitudes e crenças que o desenvolvimento intelectu- al eliminará. Piaget observou que a consciência e a prática das regras evoluem com a idade, por meio das relações de cooperação.

Na passagem pelos três estágios a criança desperta para as regras e para o ambiente so- cial por meio da maturação de suas estruturas de equilibração. Durante esse processo, temos o desenvolvimento do intelecto que, de certa maneira, autonomiza o sujeito que passa a perceber seu potencial em transformar, alterar ou mudar as regras.

É pelo respeito mútuo e pela cooperação entre crianças, posteriormente entre crianças e adultos, na proporção em que caminham para a adolescência e vão se transformando em adultos, que elas lapidam, amadurecem suas relações e constroem um conjunto orgânico, com leis e regu- lamentos. Um ambiente favorável é necessário para tal. Caso contrário, o adulto apresentará comportamentos de estágios mal resolvidos na infância. Os indivíduos que cresceram em ambien- tes desfavoráveis e que não conseguiram superar a coação social, quando adultos, apresentam um comportamento inseguro e colocam-se como vítimas. O hábito, adquirido na infância

[...] de repetir e de obedecer, de dobrar-se sem refletir às opiniões morais e intelectuais dos grandes, que faz com que tenhamos tanto trabalho, uma vez adultos, para nos li- vrarmos das coações que os grupos impõem à nossa irreflexão. (Piaget, 1998, p. 108)

Cabe aqui fazer três ressalvas. A primeira é que os sujeitos participantes de nossa pes- quisa são adultos e, ao contrário das crianças de Piaget, já trazem em si todo o marco regulató- rio adquirido durante a vida. A consciência, o desejo, a incorporação da cultura e a personali- dade estão desenvolvidos e atuam como reguladores do próprio desenvolvimento. Mesmo as- sim, como hipótese teórica, consideramos que seria possível fazer um paralelo entre alguns elementos dos três estágios apresentados por Piaget com as posturas adotadas entre os agentes de saúde durante as atividades com o computador. Por outro lado, na segunda ressalva, gostarí- amos de destacar que o movimento sugerido por Piaget, anomia, heteronomia, autonomia, inse- re-se no processo de crescimento da criança. No nosso caso, o processo que estamos observan- do é a aprendizagem, em geral, de pessoas adultas. Consideramos que o mesmo tipo de movi- mento poderia ser encontrado nos processos de aprendizagem continuada ao longo da vida, enquanto fatores fundamentais na reconstituição permanente da personalidade. Por último, gos- taríamos de destacar o aspecto processual e dialético dos estudos de Piaget. Isso significa que o movimento anomia-heteronomia-autonomia pode ser interpretado como um processo cíclico, relativo e histórico, característico do desenvolvimento humano. Acreditamos que isso nos per-

mite descontextualizar esse movimento da fase infantil do desenvolvimento e recontextualizá- lo em fazes diferentes e mais avançadas.

Um outro movimento importante no desenvolvimento da autonomia foi estudado por Valente (2003), na utilização de ambientes virtuais para construção do conhecimento. Nesse tipo de ambiente, o aprendiz passa a ser o protagonista de seu próprio aprendizado, o que, em se tratando da aprendizagem de adultos, fica em plena conformidade com a andragogia e com o respeito ético à autonomia do aprendiz. Trazendo os problemas emergentes em seu contexto para dentro do ambiente de aprendizagem, por meio da plataforma disponível, o processo de aprendizagem inicia com a busca de soluções para esse problema. A cooperação dos colegas, os materiais disponíveis, os debates e ações planejadas conduzem o aprendiz não só a buscar o problema inicial, mas também a perceber as regularidades entre os problemas levantados por outros colegas. Dessa maneira seu pensamento começa de descontextualizar-se e a buscar re- postas para outros contextos, produzindo um movimento contextualização-descontextualização- recontextualização. Explicando melhor:

• Contextualização: é um conjunto que contempla conhecimentos e experiências já adquiridos pelo sujeito, suas atividades práticas e a ecologia onde atua. É uma bolha, que engloba as interações entre os sujeitos, suas realidades e os signos que foram construídos durante a vida. Em uma palavra, o contexto, conforme relembra Cole (1998, p. 176), é um conceito “relacional” que envolve a condição social, cultural, histórica, econômica, psico- lógica, educacional. Ainda, é o local onde o sujeito vive, o ar que respira, o chão que pisa, o diálogo com o outro, enfim, seu modo de relacionar-se com o mundo. A relação de coope- ração permite o debate de problemas, dúvidas e alternativas de soluções. O colega aprendiz, em uma relação cooperativa, encoraja-o para as novas buscas e reflexões, conduzindo-o pa- ra a descontextualização.

• Descontextualização: no momento em que o conhecimento começa a ser construído na ação e se integra com outros conhecimentos, a partir da interação, temos o processo de descontextualização (Prado & Valente, 2001, p. 30). Descontextualizar é articular novas i- déias com base no contexto – descontextualização contextualizada. Podemos dizer que a descontextualização é um equilíbrio da assimilação e acomodação no sentindo piagetiano.

Na descontextualização tem-se a oportunidade de descentrar-se. Nas palavras de Piaget “[…] A experiência não é [...] jamais recepção simplesmente passiva: ela é acomodação a- tiva, correlativa à assimilação” (Montangero & Naville, 1998, p. 97). Nesse sentido, novos conhecimentos são gerados pela assimilação com inferência. É o início da formação com- plexa de uma rede de aprendizagem.

• Recontextualização: se a mediação levou em consideração os aspectos contextuais, então pode-se dizer que a aplicação das novas idéias, trabalhadas no instante da descontex- tualização, é bastante viável. A descontextualização fará sentido se o aprendiz conseguir es- se feito – implantar os novos significados em sua vida ou em seu local de trabalho. É o ins- tante da recontextualização, que implica integrar a teoria e a prática no seu contexto.

Temos, então, um movimento cíclico e relativo, à semelhança do processo descrito por Piaget, que dá base às nossas hipóteses teóricas. Por outro lado, esse processo parece descrever a construção da personalidade no que toca à construção do conhecimento.