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EMOÇÕES E A ALEXITIMIA

4.3. A ANOREXIA NERVOSA E AS EMOÇÕES

4.3.2. Anorexia nervosa e alexitimia

Reconhecendo a incapacidade cognitiva para processar e regular emoções como uma característica proeminente na anorexia nervosa, vários estudos têm procurado analisar a relação existente entre a anorexia nervosa e a alexitimia. Essencialmente distinguem-se duas questões-alvo: 1) as anorécticas são mais alexitímicas do que as pessoas saudáveis?; 2) que características psicológicas da anorexia nervosa estão relacionadas com a alexitimia?

4.3.2.1. Prevalência da alexitimia na anorexia nervosa

Estudos que utilizam medidas válidas e fidedignas na avaliação da alexitimia têm mostrado uma elevada prevalência deste défice em indivíduos com anorexia nervosa (Taylor et ai., 1997). O estudo de Bourke, Taylor, Parker e Bagby (1992) foi

pioneiro nesta área, detectando a presença de alexitimia em 77.1% da amostra de mulheres anorécticas, face a 6.7% no grupo de controlo.

Os trabalhos sequentes identificaram, contudo, taxas mais reduzidas: Cochrane, Brewerton, Wilson e Hodges (1993) observaram para os dois subtipos de anorexia nervosa taxas na ordem dos 60%; Schmidt, Jiwany e Treasure (1993) em torno dos 50%; e no estudo de Dethieux, Hazane, Dounet, Gentil e Raynaud (2001) a prevalência foi de 55.5%. A prevalência mais baixa de alexitimia foi observada por Ràstam, Gillberg, Gillberg e Johansson (1997) numa amostra comunitária de anorécticas (23%). Estes autores salientaram que as amostras comunitárias podem assumir diferentes características comparativamente com o grupo particular de anorécticas que recorre a ajuda profissional.

Diferenciando os dois subtipos de anorexia nervosa torna-se mais difícil definir uma tendência. No estudo de Eizaguire et ai. (2004) a prevalência da alexitimia nas anorécticas restritivas (56%) foi inferior à encontrada nas anorécticas bulímicas (68.2%) mas, em oposição, outros estudos não encontram diferenças significativas entre os dois subtipos, sugerindo que a alexitimia é uma característica básica de personalidade nas anorécticas em geral (Bourke et ai., 1992; Cochrane et ai., 1993).

Contrastando a anorexia nervosa com a bulimia nervosa, a maioria dos trabalhos indicam que as anorécticas são mais alexitímicas. Na investigação de Eizaguire et ai. (2004) a diferença entre ambas foi estatisticamente significativa: 47% nas bulímicas versus 68.2% nas anorécticas. Com taxas inferiores, Corços et ai. (2000) chegaram à mesma conclusão: as anorécticas eram mais alexitímicas (56.3%) do que as bulímicas (32.3%). No trabalho de Schmidt et ai. (1993) a maior diferença observada foi entre as bulímicas e as anorécticas restritivas: 50% versus 56%, respectivamente (Schmidt, Jiwany, & Treasure, 1993). No entanto, é de realçar que esta relação, aparentemente mais estreita, entre a alexitimia e a anorexia nervosa ainda não é um dado adquirido, uma vez que as diferenças encontradas entre anorécticas e bulímicas nem sempre têm assumido um nível de significância estatística (Becker-Stoll & Gerlinghoff, 2004).

Mais consensual é, sem dúvida, a saliência das características alexitímicas nas anorécticas em relação às pessoas saudáveis. Num estudo exploratório que apresentámos recentemente (cf. S. Torres, Guerra, Lencastre, Brandão, & A. R. Torres, 2004), concluímos que 62.5% das anorécticas eram alexitímicas, face a 17.8% de alexitímicas presentes no grupo de controlo. Mesmo sem definir prevalências, outros estudos têm validado esta conclusão (Becker-Stoll & Gerlinghoff, 2004; Corços

et ai., 2000; Eizaguirre et ai., 2004; Rástam et ai., 1997; Sexton et ai., 1998; Taylor et ai., 1996; Zonnevylle-Bender, van Goozen, Cohen-Kettenis, van Elburg & van Engeland, 2004; Zwaan, Biener, Bach, Wiesnagrotzki, & Stacher, 1996).

4.3.2.2. Relação entre a alexitimia e a anorexia nervosa

As elevadas taxas de alexitimia observadas nos indivíduos com anorexia nervosa impulsionaram o estudo da relação entre a alexitimia e as características psicológicas mais comuns na patologia alimentar. Neste contexto, Laquatra e Clopton (1994) desenvolveram um trabalho em contexto universitário, com estudantes do sexo feminino entre as quais constavam anorécticas, bulímicas e obesas, e concluíram que o comportamento alimentar perturbado se correlacionava positivamente com a dificuldade em identificar e expressar sentimentos mas não se relacionava com o pensamento orientado para o exterior e a ausência de imaginação e fantasia. Ou seja, as perturbações alimentares relacionavam-se com os défices afectivos da alexitimia, mas não, com o estilo cognitivo operacional da alexitimia. Estes resultados sugerem duas leituras. Uma é que os problemas afectivos podem ser características primárias na alexitimia e as perturbações cognitivas características secundárias resultantes da adaptação aos défices afectivos. Outro é que a alexitimia pode ser definida num continuum composto por formas intermédias e severas da perturbação qualitativamente diferentes entre elas. Neste sentido, é possível que as formas intermédias apenas apresentem perturbações nos afectos e não problemas cognitivos.

Laquatra e Clopton verificaram, ainda, que a TAS se correlacionava significativa e positivamente com praticamente todas as subescalas do "Eating Disorder Inventory" (EDI; Garner & Olmsted, 1984), excluindo a subescala do Perfeccionismo. As correlações mais elevadas foram com a ausência de consciência interoceptiva, a ineficácia e a desconfiança interpessoal.

Mais tarde, Taylor et al. (1996) implementaram um estudo semelhante mas recorrendo à versão mais recente da escala de alexitimia de Toronto (TAS-20) e considerando apenas sujeitos com anorexia nervosa no grupo clínico. À semelhança de Laquatra e Clopton (1994) os resultados indicaram uma associação positiva entre a alexitimia e a ineficácia, desconfiança interpessoal, consciência interoceptiva e medos de maturação. Contudo, a alexitimia não se mostrou correlacionada com o peso, a imagem corporal e os comportamentos associados ao padrão alimentar, contrariamente ao que verificaram Laquatra e Clopton.

A correlação positiva entre a TAS-20 e a ausência de consciência interoceptiva confirma a dificuldade de reconhecer e responder a estados emocionais e corporais na anorexia nervosa. A relação da TAS-20 com a desconfiança interpessoal foi a mais forte e valida a renitência das anorécticas em expressar sentimentos aos outros. A associação com a ineficácia evidencia que a alexitimia nas anorécticas está relacionada com a dificuldade em regular a auto-estima e outros aspectos da experiência do self. Por fim, o desenvolvimento da anorexia pode estar relacionado com a fuga à maturidade psicológica devido à associação da alexitimia com os medos de maturação.

Analisando unicamente a TAS-20, Taylor et ai. (1996) concluíram que as anorécticas não diferiam do grupo de controle na dimensão do pensamento orientado para o exterior, sugerindo que os défices no processamento cognitivo das emoções na anorexia nervosa não estavam relacionados com o estilo cognitivo operacional.

Os dois estudos indicam, então, que a alexitimia está relacionada com os traços psicológicos descritos por Bruch (1962) como sendo centrais nas perturbações alimentares, em concreto: a) a dificuldade em reconhecer estados emocionais, b) a dificuldade em expressar sentimentos e c) um forte sentimento de ineficácia. Taylor et ai. (1996) consideram não só uma relação entre eles mas, também, uma sobreposição. Desta forma, ser alexitímico pode estar associado a uma maior dificuldade no tratamento do problema alimentar (Taylor, 1994).

Entretanto, permanece em aberto a questão se a alexitimia é primária relativamente à anorexia nervosa, ou seja, se a predispõe, ou se é secundária, surgindo no decurso da patologia alimentar. Analisando unicamente estas duas perturbações, Rástam et ai. (1997) avaliaram uma amostra comunitária representativa de sujeitos anorécticos, cujo início da patologia alimentar tinha decorrido na adolescência. Alguns anos depois (7-8 anos), os autores verificaram que, apenas um em cada cinco participantes, tinham alexitimia, o que será congruente com a concepção da alexitimia- secundária.

Nesta mesma linha, Becker-Stoll e Gerlinghoff (2004) verificaram que, após um programa de tratamento de quatro meses em hospital de dia orientado para a alexitimia e para a patologia alimentar, as anorécticas apresentavam uma evolução positiva nestas duas áreas, realçando o carácter reversivo da alexitimia.

Em comum estes dois estudos sugerem que a alexitimia surge no curso da patologia alimentar, oscilando em função da mesma. No entanto, ambos constataram

que a alexitimia permanecia ainda elevada a longo-prazo, ou após o tratamento, indicando a existência de alguma estabilidade neste construto.

De facto, certas perspectivas consideram que algumas características alexitímicas são parte integrante da personalidade das anorécticas. Leon, Fulkerson, Perry e Erly-Zadd (1995) concluíram, com base num estudo longitudinal de três anos com adolescentes, que a incapacidade para discriminar e designar estados emocionais constituía um factor de risco para o desenvolvimento da perturbação alimentar.

A presença de características alexitímicas na personalidade das anorécticas é, também, defendida pela linha de autores que analisa a possibilidade destas terem pais alexitímicos, partindo do princípio que os pais que não entendem nem partilham o seu mundo emocional, em consequência, não conseguem ser empáticos nem ajudar as filhas a conhecer e explorar as emoções (Dethieux et ai., 2001 ; Espina, 2003).

Tal como já referimos no ponto 4.2.4.2, actualmente coloca-se a hipótese da alexitimia predispor ou exacerbar o desenvolvimento de várias perturbações clínicas nas quais os problemas na regulação dos afectos jogam um papel central (Taylor et ai., 1997), entre as quais se inclui a anorexia nervosa. Esta concepção, segundo a qual as anorécticas já teriam algumas características alexitímicas antes da patologia alimentar se manifestar, e que, inclusivamente, estas estariam envolvidas no seu desencadeamento, apoia o cariz primário da alexitimia.

Muitas são as dúvidas existentes e poucos são os estudos que as procuram esclarecer. Também nesta área, a investigação aponta para diferentes direcções dificultando a definição de uma tendência.

4.3.3. A relação da alexitimia com a depressão e a ansiedade na anorexia