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EPIDEMIOLOGIA DA ANOREXIA NERVOSA EM PORTUGAL

O LONGO PERCURSO ENTRE A ANOREXIA MÍSTICA E A ANOREXIA NERVOSA ACTUAL

2.4. EPIDEMIOLOGIA DA ANOREXIA NERVOSA EM PORTUGAL

Em Portugal não existem muitos estudos epidemiológicos sobre as perturbações do comportamento alimentar e todos eles foram implementados em amostras de estudantes.

O primeiro trabalho foi levado a cabo por Azevedo e Ferreira (1992) na ilha de S. Miguel, Açores. O processo de detecção de casos foi implementado numa escola secundária, com estudantes de ambos os sexos, entre o 7o e o 12° ano de

escolaridade (N=1234), e contou com a colaboração de estudantes de enfermagem que, após preparação prévia, conduziram as entrevistas aos alunos, de acordo com

critérios de diagnóstico da DSM-III. Cada sujeito foi entrevistado duas vezes por entrevistadores diferentes, para avaliar o grau de concordância.

Os resultados indicaram uma baixa prevalência dos problemas alimentares: não foi detectado nenhum caso de anorexia nervosa e a prevalência da bulimia nervosa foi de 0.16% (0.30% no total das raparigas; nenhum caso de rapazes), isto é, bastante inferior à encontrada na maioria dos estudos europeus.

Foram diagnosticadas síndromes parciais de anorexia nervosa em 0.48% dos sujeitos (0.76% em raparigas; 0.17% nos rapazes). Apesar da frequência da síndrome parcial ter sido inferior à de outros estudos, a sua presença reforça a noção defendida por vários investigadores (e.g. Johnson-Sabine et al., 1988; Meadows et al., 1986) de que os quadros parciais são mais frequentes do que a sintomatologia completa.

No cômputo geral, estes dados contrastam com a conjectura da anorexia nervosa como uma patologia comum. Uma explicação avançada por Azevedo e Ferreira (1992) para as baixas prevalências foi a existência de uma diferenciação cultural na ilha, caracterizada pela fraca presença de pressões sociais para o controlo do peso, em resultado do isolamento da população relativamente às sociedades mais industrializadas.

Em Portugal Continental o primeiro estudo de prevalência foi desenvolvido entre 1991-1993, em 30 escolas dos distritos de Lisboa e Setúbal (Carmo, 1998)16. A

amostra total foi 2398 estudantes do sexo feminino (10-21 anos). A metodologia baseou-se na administração de um questionário desenvolvido de acordo com os critérios do DSM-III-R. Em termos de resultados, Carmo (1998) encontrou uma prevalência de 0.37% para a anorexia nervosa e 12.6% para a síndrome parcial. Adicionalmente, a autora verificou que o pico da idade de desenvolvimento da doença foi aos 15 anos. Na distribuição pelas classes sociais, a classe 2 (técnicos de nível médio, funcionários administrativos) foi a mais atingida17 e a classe 5 (trabalhadores

manuais não especializados) obteve uma percentagem muito baixa.

Comparativamente com outros estudos europeus e americanos já analisados neste capítulo, esta taxa de prevalência da anorexia nervosa é comparável à de Crisp et ai. (1976) e Whitaker et ai. (1990), com amostras de estudantes (ver quadro 2.4), cujo valor foi aproximadamente 0.2%. Já Rástam et ai. (1989) e Rathner e Messner (1993) obtiveram números mais elevados: 0.7 e 1.3 respectivamente. Apesar de se encontraram investigações com taxas inferiores (e.g. Button & Whitehouse, 1981), no

16 Este estudo foi posteriormente publicado em Portugal (cf. Carmo et ai., 2001).

geral pode-se concluir que a prevalência da anorexia nervosa calculada neste estudo português foi relativamente baixa (Carmo, 1998).

O mesmo não se aplicou ao quadro parcial da anorexia nervosa nem às perturbações da imagem corporal. Carmo (1998) verificou que 7% das estudantes tinham uma imagem corporal perturbada (sem perda de peso, nem amenorreia), 49% consideravam ter gorda alguma parte do corpo, 51.5% tinham "horror a aumentar de peso" e, adicionalmente, 38% das estudantes com peso normal ou baixo manifestavam o desejo de perder peso. Estas percentagens indiciam a presença de uma forte preocupação com o corpo.

Na zona sul do país foi ainda realizado um outro estudo epidemiológico mas que, contrariamente ao anterior, incidiu na prevalência da bulimia nervosa e utilizou uma população feminina universitária (Baptista et ai., 1996). Foi enviado pelo correio um questionário a uma amostra de 1542 estudantes dos cursos de direito, farmácia, letras e medicina, da Universidade Clássica de Lisboa; a percentagem de respondentes foi na ordem dos 50%.

Baptista et ai. (1996) analisaram a variável peso e verificaram que 57.9% das raparigas tinham peso normal, 32% tinham peso baixo e 9% tinham excesso de peso. Os principais resultados do estudo indicaram que 55.1% das estudantes universitárias desejavam perder peso (sendo que destas 45% tinham peso baixo), 12% faziam dieta no momento do estudo e 25% referiam ter tido flutuações de peso (mais de 4 kg num ano). Os critérios de diagnóstico da bulimia nervosa foram preenchidos por 3% das estudantes e a ocorrência de pelo menos dois episódios de ingestão compulsiva semanais, sem comportamentos compensatórios, foi descrita em 13.2% da amostra.

Abordando agora a zona Norte do país, encontramos os estudos de S. Gonçalves (1998) e L. P. Queirós (2001). O primeiro foi implementado com estudantes universitárias do 1o ano, em duas cidades do Norte. Os dados foram

recolhidos através de questionários18, administrados na sala de aula, junto de 486

alunas. S. Gonçalves (1998) não detectou nenhum caso provável de anorexia nervosa, contrariamente aos casos parciais desta doença, cujo valor foi de 2.52%. Estas percentagens são, claramente, inferiores às de Carmo (1998), obtidas no Sul do país. O facto do estudo de S. Gonçalves (1998) ter utilizado uma amostra universitária (entre 17-35 anos) pode ter contribuído para esta diferença. A anorexia nervosa é muito associada à adolescência e como tal é esperado que um estudo que abranja

esta fase de desenvolvimento, tal como se verificou no trabalho de Carmo (1998), apresente uma prevalência superior.

Porém, como a bulimia nervosa é mais comum na faixa etária da população universitária, compreende-se que o valor estimado para estes possíveis casos, bem como a prevalência de episódios de ingestão alimentar compulsiva, tenham sido elevados (5.88% e 31%, respectivamente) face a investigações que utilizam amostras com uma faixa etária mais ampla.

Relativamente à frequência de comportamentos alimentares desajustados, no geral, as conclusões tiradas por S. Gonçalves (1998) seguem a mesma linha das investigações realizadas noutros países da Europa e dos Estados Unidos. O desejo dum peso inferior foi uma característica marcante; das 486 estudantes que compunham a amostra, 329 revelaram a vontade de pesar menos e, destas, apenas 24 apresentavam um IMC revelador de excesso de peso. A distorção da imagem corporal, presente em 9.5% da amostra, bem como a insatisfação com a imagem corporal, patente na operacionalização de estratégias para controlo de peso, foram outras duas dimensões evidenciadas.

Quanto ao estudo de L. P. Queirós (2001), este rea!izou-se no distrito do Porto durante o ano de 1999 e também procurou analisar o comportamento alimentar, a imagem corporal e a prevalência da anorexia nervosa. As raparigas adolescentes (10- 19 anos) do distrito do Porto foram a população-alvo e, neste sentido, foram seleccionadas aleatoriamente várias turmas das escolas do ensino básico e secundário da região. A metodologia consistiu na administração de um questionário e na medição do peso e da altura.

No total da amostra (N=1593) a autora concluiu que a prevalência da perturbação da imagem corporal nas raparigas sem excesso de peso foi de 10%. No grupo das adolescentes com peso normal ou baixo, 36% mostraram vontade em perder peso, 42% achavam gorda alguma parte do corpo, 42% tinham horror a aumentar de peso e 19% referiram já terem feito dieta. L. P. Queirós (2001) verificou ainda que, apesar da maioria das raparigas ter revelado conhecimentos sobre a alimentação, na realidade, as mesmas não evitavam comportamentos pouco saudáveis para perder peso.

A prevalência da anorexia nervosa foi de 0.3% e da síndrome parcial foi de 1.1%. Provavelmente pelo facto de estudar uma amostra de adolescentes, L. P. Queirós (2001) detectou casos de anorexia. É de notar que a prevalência desta

patologia é consistente com o estudo de Carmo et ai. (1996, 2001), desenvolvido no mesmo contexto.

Analisando conjuntamente os vários estudos nacionais podemos concluir que a preocupação com o peso está bem patente nas raparigas portuguesas, sendo possível discriminar, com frequência, casos com perturbação da imagem corporal. A dieta tem sido, sem dúvida, o comportamento de eleição para o controlo de peso.

Quando se procura traçar diagnósticos, facilmente se percebe que os síndromes parciais são de longe mais frequentes do que a anorexia e a bulimia nervosa. Mas é nestas últimas patologias que se torna mais difícil tirar conclusões. Podemos referir que a anorexia nervosa é menos frequente do que a bulimia nervosa, à semelhança do que se verifica noutros países, mas definir números não é tarefa fácil.

S. Gonçalves (1998) refere que as desigualdades metodológicas verificadas entre os diferentes trabalhos, essencialmente ao nível dos instrumentos de avaliação, das características da amostra e dos critérios de diagnóstico considerados, podem levar a uma certa variação nos resultados. Paralelamente, esta autora não exclui a possibilidade de existirem diferenças culturais e/ou níveis de desenvolvimento distintos entre as três zonas geográficas do país, sugerindo um certo "determinismo regional na prevalência destas perturbações" (p.181).

Na nossa opinião, a extrapolação de conclusões será mais facilitada se os futuros estudos adoptarem uma metodologia mais homóloga e se nesta incluírem uma entrevista de diagnóstico (segunda fase) no processo de detecção de casos. Este procedimento permitirá excluir falsos positivos e definir uma prevalência mais ajustada à realidade. Os estudos de prevalência com base nos registos hospitalares podem também fornecer informações complementares (terceira fase).

Será, também, mais enriquecedor para o estudo epidemiológico da anorexia nervosa em Portugal, a implementação de estudos de incidência. Segundo Stone et ai. (1996/1999, p.70): "A incidência é o parâmetro mais importante em epidemiologia. Diz-nos no tempo quando é que de facto ocorrem novos casos de uma enfermidade particular, e a taxa de incidência diz-nos qual a velocidade dessa enfermidade na população. Sem este conhecimento, não podemos associar directamente os eventos de uma enfermidade com possíveis factores causais, ou medir a importância relativa de uma enfermidade perante outra".

No nosso país, desconhecemos a existência deste tipo de investigação e, em resultado desta, a variação no número de novos casos. Neste momento é difícil apontar uma previsão relativamente à evolução desta patologia. Sabe-se apenas que a anorexia nervosa não tem uma elevada prevalência e que o mesmo não se pode concluir em relação à frequência de comportamentos alimentares desajustados. A partir da elevada frequência da síndrome parcial, da insatisfação corporal e dos comportamentos alimentares perturbados, S. Gonçalves (1998) especula que a anorexia nervosa possa aumentar no futuro.

Carmo et ai. (2001, p. 313) consideram que: "...em Portugal, onde a prevalência da anorexia nervosa é baixa, estão generalizados o ideal de magreza e as alterações do comportamento que levam a uma perturbação da imagem corporal e à prática de dieta". Vários investigadores portugueses defendem que o nosso país atravessa uma situação de transição, na qual a exposição aos valores culturais dos países industrializados é crescente. A comunicação social é apontada como o grande veículo de divulgação e homogeneização destes valores (Carmo, 1998; Carmo et ai, 2001; S. Gonçalves, 1998, L. P. Queirós, 2002).