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Para facilitar o paralelismo entre os critérios definidos por Russell e os que vigoram na actualidade apresentaremos desde já, nas figuras 3.2 e 3

3.3. COMPLICAÇÕES E CONSEQUÊNCIAS A LONGO-PRAZO

3.3.2. Dimensão psicológica

Neste ponto pretendemos descrever, essencialmente, os efeitos psicológicos negativos que resultam da vivência da anorexia nervosa. Na nossa opinião delimitar este campo de análise é algo complexo pois muitas das consequências desta doença, por serem bastante comuns, são descritas como suas características - é o que se verifica com aspectos como o isolamento social, a diminuição de interesses e a

incapacidade para experimentar prazer, que ora são enunciadas como características, ora como consequências psicológicas.

Procurando conceptualizar as consequências como alterações, perdas ou problemas psicológicos sentidos pelos sujeitos pelo facto de terem história actual ou anterior de anorexia nervosa, seleccionámos alguns pontos merecedores de atenção. Um destes é o aparecimento de outros quadros psicopatológicos, como a ansiedade e a depressão, ao longo do curso da patologia alimentar. Não obstante a possibilidade destes sintomas poderem ser primários nalguns casos, vários são os autores que consideram que a anorexia nervosa influencia o seu desenvolvimento (Bruch, 1973; Cooper, 1995; Crisp, 1995). Alguns estudos indicam, inclusivamente, que estes sintomas podem persistir mesmo após a recuperação do problema alimentar (Casper, 1990; Matsunaga et ai., 2000; Scrinivasagam et al., 1995)26.

Outra área que pode ser afectada é a área cognitiva. Alguns investigadores têm identificado dificuldades cognitivas nas anorécticas, na sua maioria associadas à memória verbal e visual, à capacidade visuo-espacial, às competências de atenção e ao funcionamento executivo, mas os estudos, contudo, são inconclusivos quanto às suas causas. Colocou-se a hipótese da depressão ser a principal responsável por estas falhas, mas um trabalho recente veio demonstrar a inexistência duma relação significativa entre estes dois factores (McDowell et ai., 2003). Actualmente, pondera- se a possibilidade da sub-alimentação e, mais concretamente a carência de vitamina B1, poder contribuir para as dificuldades cognitivas encontradas (Winston, Jamieson, Madira, Gatward, & Palmer, 2000). Por outro lado, não se sabe até que ponto estes défices funcionais podem estar associados às mudanças estruturais do cérebro (Katzman, Cristensen, Young, & Zipursky, 2001).

Para além de se desconhecerem as causas, também não se sabe ao certo que evolução estas dificuldades cognitivas sofrem a longo-prazo e após a recuperação da anorexia. Katzman et ai. (2001) salienta que, apesar dos dados actuais sugerirem uma recuperação com o aumento de peso, ainda é pouco claro que se esta se estende a todos os domínios e com sucesso total. Pelo menos nas adolescentes há evidência de que nem todas as mudanças são reversíveis.

Outra consequência sentida pelos doentes anorécticos é a perda de interesse sexual. Por detrás deste problema e, para além das alterações hormonais referidas no

26 Este tema da comorbilidade, pela sua complexidade e diversidade de informação existente, será

analisado, separadamente, no ponto seguinte, ficando aqui apenas registada a sua importância ao nível das consequências psicológicas.

ponto anterior (3.3.1), podem estar também outros factores psicológicos como a incapacidade para reconhecer estados internos (Bruch, 1973), o evitamento da maturidade sexual (Crisp, 1970 cit in Crisp, 1995) e a procura de autonomia através de rejeição dos aspectos corporais femininos (Selvini Palazzoli, 1985). As experiências sexuais raramente são vivenciadas como agradáveis, na medida em que há uma reduzida experienciação de sensações de prazer no corpo. Em consequência, estes sujeitos não apenas alteram a sua vivência sexual, como perdem a motivação para os encontros amorosos.

A escassa literatura existente nesta área aponta para um baixo grau de intimidade marital (Broucke, Vandereycken, & Vertommen, 1995), para o predomínio de atitudes sexuais instrumentais e para a presença de uma baixa auto-estima sexual (Raciti & Hendrick, 1992). Em termos evolutivos, o impulso sexual tende a aumentar com a recuperação do peso (Morgan, Lacey, & Reid, 1999), apesar de se verificar, com alguma frequência, a persistência deste problema (Crisp, 1995; Kaplan & Woodside, 1987).

Outra consequência psicológica de referência é a baixa auto-estima. Esta dimensão, até aqui apenas considerada como um factor de vulnerabilidade para a perturbação alimentar, é entendida por Gual e seus colaboradores (2002) como sendo simultaneamente uma causa e uma consequência. Esta conceptualização remete para a existência de um ciclo vicioso entre as duas dimensões, perpetuando a sua existência.

Como se pode concluir, é possível verificar nas anorécticas a persistência de alguns problemas psicológicos mesmo após a recuperação, à semelhança do que se verifica com as complicações médicas. Outros exemplos destes problemas que persistem, mas mais directamente relacionados com a sintomatologia da anorexia nervosa, são a preocupação com o peso e as atitudes em relação à comida. Vários estudos efectuados com doentes recuperadas evidenciam a presença destes sintomas a longo-prazo (e.g. Clinton & McKinlay, 1986; Crisp, 1995; Hsu et al., 1979; Lovell, Williams, & Hill, 1997). Por exemplo, Clinton e McKinlay (1986) verificaram que as anorécticas recuperadas mantinham atitudes distorcidas em relação à alimentação (e.g. ingestão alimentar restritiva), apesar destas serem menos extremas nesta fase. Segundo estes autores, a continuidade destas atitudes, para além de reflectir uma morbilidade geral, pode representar um fenómeno específico não alterável com o tratamento.

Lovell et ai. (1997) obtiveram conclusões dentro da mesma linha relativamente à preocupação com o peso. Os mesmos observaram que estas doentes continuavam com medo de aumentar de peso mesmo após a recuperação da anorexia nervosa. Os autores do estudo levantaram a hipótese desta característica persistir depois do tratamento, mantendo-se um processamento de informação selectiva automático.

No geral, poucos foram os trabalhos que encontrámos e que analisassem as consequências psicológicas da anorexia nervosa a longo-prazo. Alguns estudos demonstram-nos que, para além de haver uma acentuação de traços de personalidade pré-existentes durante o curso da doença, mais a longo-prazo os sintomas depressivos, fóbicos e obsessivos frequentemente se mantêm, apesar de serem mais prevalentes nas doentes não recuperadas. A persistência das preocupações com a alimentação e o peso, bem como dos comportamentos relacionados, indiciam que a perturbação de base pode manter-se por mais tempo (Garfinkel & Garner, 1982).

3.4. CO-OCORRÊNCIA DA ANOREXIA NERVOSA COM QUADROS