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O LONGO PERCURSO ENTRE A ANOREXIA MÍSTICA E A ANOREXIA NERVOSA ACTUAL

1.2. SÉC XVII: OS PRIMEIROS OLHARES CLÍNICOS

Neste século assistiu-se a um aumento de interesse, ao nível da comunidade médica, pelos casos de abstinência alimentar. Este olhar clínico contribuiu para a transformação gradual das mulheres santas e demoníacas, em mulheres doentes com necessidade de tratamento médico. Ou seja, progressivamente o jejum auto-imposto passou a ser considerado um comportamento patológico. No entanto, é importante referir que durante este processo, que se iniciou no séc. XVII e apenas atingiu a sua plenitude em meados do séc. XX, emergiram ainda outros dois fenómenos que efectuaram esta ligação entre as santas medievais e o actual quadro clínico da anorexia nervosa. Vandereycken e Van Deth (1996, p.47,74) definiram um destes fenómenos como o aparecimento das "donzelas miraculosas", patente em pleno séc. XVII, e o outro, caracterizando uma nova forma de anorexia que se desenvolveu no séc.XIX, como os "artistas que jejuavam e os esqueletos vivos". Este último fenómeno será abordado mais à frente a propósito da caracterização do séc. XIX. Por agora iremos centrar a nossa atenção na abstinência alimentar praticada pelas donzelas miraculosas.

Este fenómeno surgiu no séc. XVII e o seu desenvolvimento esteve associado à invenção da imprensa. Com este novo meio de comunicação, o jejum prolongado tornou-se o tema preferencial das notícias sensacionalistas em várias partes da Europa. A difusão dos casos de donzelas miraculosas que sobreviviam comendo muito pouco, ou mesmo nada, atraiu multidões de visitantes que, motivados pela curiosidade de testemunhar este acto milagroso, se deslocavam de cidades longínquas para as visitar6. Frequentemente estas donzelas miraculosas exploravam estas visitas,

recebendo dinheiro ou bens que as pessoas deixavam em veneração ao milagre ou simplesmente como gratidão pelo espectáculo. Não só estas donzelas, bem como todo o meio social envolvente, beneficiavam de todo este fenómeno.

Numa primeira análise, estes casos de donzelas miraculosas podem parecer semelhantes aos das santas medievais na medida em que ambos se reportam a fenómenos sobrenaturais resultantes dos milagres de Deus, mas na generalidade eles revestem-se de características diferentes. Vejamos, em primeiro lugar a abstinência alimentar das donzelas miraculosas não tinha como base a forte inspiração religiosa que se encontrava nas santas medievais; motivações essas que para além da recusa

Um exemplo típico é o caso de Engeltje van der Vlies, uma rapariga holandesa, que num verão recebeu mais de mil visitantes e que figurou como atracção num guia de viagens inglês (Van Deth &

alimentar incluíam rituais de penitência e mortificação do corpo como forma de união com Deus. Em segundo lugar, o contexto em que ambas viviam era bastante diferente, uma vez que o fenómeno das donzelas miraculosas surgiu numa época em que esteve mais difundida e intensificada a oposição ao jejum prolongado (Vandereycken & Van Deth, 1996).

Nesta altura, e apesar da associação destes comportamentos a milagres, vários médicos começaram a expor as suas dúvidas relativamente a este fenómeno. A par da valorização do empirismo que se fazia sentir na comunidade científica, surgiu a ideia de investigar estes casos submetendo-os à observação, medição e experimentação. As raparigas não tinham forma de "escapar", uma vez que esta decisão seria interpretada como medo de serem descobertas (Vandereycken & Van Deth, 1996).

Nalguns casos as observações confirmaram, de facto, o jejum prolongado, aumentando ainda mais a reputação das donzelas. No entanto, a explicação para este tipo de comportamento começou a tomar uma direcção diferente, afastando-se da fundamentação miraculosa com interferência dos poderes sobrenaturais e aproximando-se de teorias especulativas baseadas em causas naturais. Começou a aceitar-se que a sobrevivência destas raparigas era devida a uma capacidade extraordinária de viver sem comida durante muito tempo.

A tendência para este tipo de interpretação é manifesta no relatório de John Reynolds, cujo subtítulo "Proving that without any miracle, the texture of humane bodies may be so altered that life may be long continued without supplies of meat and drink" constitui desde logo uma primeira evidência. Neste, Reynolds sugeriu que os elementos corporais designados por "fermentos" fertilizavam o abastecimento do corpo, renovando o sangue circulante, sem que fosse necessário desenvolver-se um novo ciclo produzido pela ingestão alimentar. Este médico associava este fenómeno às adolescentes entre os 14 e os 20 anos, considerando que neste período os ovários fermentavam o sangue (Sampaio et ai., 1999; Silverman, 1992; Vandereycken & Van

Deth, 1996).

Ainda neste século surgiu o que é hoje considerada a primeira descrição médica detalhada da anorexia nervosa e, para muitos investigadores, o início da história deste síndroma. Este marco foi erguido por Richard Morton, um médico inglês, que descreveu o quadro da atrophia nervosa ou phthisis nervosa. Em 1689 publicou um compêndio de medicina, "Phthisiologia, seu Exercitationes de Phthisi", e neste esquematizou cuidadosamente as particularidades desta doença que causava perda dos tecidos corporais. Morton considerava este problema como uma destruição

nervosa (nervous consumption), de raiz psicossomática, no qual a origem imediata se situava ao nível do sistema nervoso e, cujas causas predisponentes eram definidas como "violentas paixões da mente", que o próprio especificou como "Sadness and anxious Cares" (Morton, 1689 cit in Vandereycken & Van Deth, 1996, pp. 121-122).

Os seus escritos são baseados nas observações clínicas, sendo escassas as referências a outros livros (Silverman, 1990, 1992, 1995). Morton descreveu dois casos; um que designou como "Mr. Duke's daughter" (cf. Silverman, 1992, pp.6-7) que retrata uma rapariga de 18 anos e outro que é conhecido como "The son of Reverend Minister Steele, my very good friend" (cf. Silverman, 1992. pp.7-8) que descreve um rapaz de 16 anos que exibia perda total de apetite devido a uma dedicação excessiva ao estudo. Este último constitui um dos raros registos de abstinência alimentar em homens. Ambos os casos descritos por Morton foram equacionados pelo próprio num quadro de "nervous consumption", após excluir a doença física como possível causa da perda de peso (Silverman, 1995).

Quanto ao tratamento, inicialmente Morton sugeriu o uso da farmacoterapia, mas depois, com o aparente insucesso desta prática, procurou outro tipo de medidas, tais como, exercício físico, conversar com amigos, mudança de residência e dieta de leite (Vandereycken & Van Deth, 1996). No entanto, após a aplicação destas indicações o próprio concluiu: "We do not Know, regrettably, whether this treatment was helpful" (Morton, 1694 cit in Silverman, 1997, p.3).

O trabalho deste autor foi traduzido e difundido em vários países mas nunca teve o impacto suficiente para tornar a atrophia nervosa numa categoria médica específica (Vandereycken & Van Deth, 1996). No entanto, o seu trabalho, bem como o contributo de Reynold, tornaram o séc. XVII num século de transição para as explicações médicas.

1.3. SÉC. XVIII: PROBLEMAS ALIMENTARES COMO SINTOMAS