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Para facilitar o paralelismo entre os critérios definidos por Russell e os que vigoram na actualidade apresentaremos desde já, nas figuras 3.2 e 3

3.2. QUADRO CLÍNICO 1 Características físicas

3.2.5. Diagnóstico Diferencial

Ao longo da história da anorexia nervosa os investigadores têm polarizado as suas opiniões relativamente à independência desta patologia. Vários têm sido os pontos de vista emergentes: a) a anorexia nervosa como entidade nosológica distinta; b) anorexia nervosa como variante de outras doenças; c) anorexia nervosa como síndrome não específica, podendo ocorrer em várias perturbações emocionais; e d) por último, anorexia nervosa como o último estádio num continuo da dieta (Garfinkel, 1992).

Actualmente a primeira opção - anorexia nervosa como doença distinta - é a que vigora mas, no entanto, com facilidade se reconhece que ela partilha alguns sintomas com outras perturbações, dificultando a diferenciação clínica. Várias doenças podem simular uma anorexia nervosa ou mesmo coexistir com ela tornando- se fundamental abordar o seu diagnóstico diferencial. Seguidamente apresentaremos os quadros clínicos (físicos e psiquiátricos) que mais comummente têm sido confundidos com a anorexia nervosa, devido à sobreposição de sintomas.

Começando pelos estados físicos gerais, são vários os quadros nos quais podemos encontrar uma acentuada perda de peso, mas sem que esta seja devida a

uma perda de apetite: problemas gastrointestinais (Frankel & Halmi, 2003), infecção crónica, colite ulcerosa, doença de Cronh, doença de Addison, doença pulmonar crónica, síndrome da artéria mesentérica superior, tumores cerebrais, neoplasias ocultas, SIDA, diabetes tipo 1, hipertiroidismo e síndromas de malabsorção (APA, 2000/ 2002; Sampaio et ai., 1999).

A maioria destes quadros resulta de anomalias metabólicas e hormonais e, perturbações gastrointestinais (Crisp, 1995). Sendo doenças com causa somática é possível encontrar alguns pontos que permitem realizar um diagnóstico diferencial. Tal como referem Sampaio et ai. (1999, p.94): "Nas doenças primariamente orgânicas e com acentuada perda de peso as pessoas não têm habitualmente distorção da imagem corporal e desejo de continuar a perder peso", contrariamente ao que se verifica na anorexia nervosa.

Mais complicado pode ser distinguir algumas doenças do foro psiquiátrico relativamente à anorexia nervosa, na medida podem existir vários traços psicológicos comuns. As doenças que têm sido mais focadas a propósito do diagnóstico diferencial são a depressão e a esquizofrenia. No quadro 3.1, que apresentamos seguidamente, encontra-se uma descrição comparativa das características destas três patologias. O tom mais escuro das células indica-nos a presença de sintomas típicos na anorexia

Quadro 3.1: Comparação das características clínicas da anorexia nervosa, da esquizofrenia e da

depressão.

Características

clínicas ANOREXIA NERVOSA ESQUIZOFRENIA DEPRESSÃO

Procura intensa da

magreza Marcada Não Não

Restrição auto-

imposta Marcada (devido ao medo de engordar) Marcada (devido a ilusões acerca da comida)

Não

Distorção da

imagem corporal Presente Não Não

Apetite Mantém-se (mas com medo de perda de

controlo)

Mantém-se Falta de apetite

Saciedade Normalmente inchaço, náuseas, e saciedade

precoce

Variável Variável

Evitamento de

certas comidas Presente (para comidas presumivelmente calóricas)

Presente (para comidas que pensam estar

envenenadas)

Perda de interesse pela comida em geral Bulimia Presente em cerca de

50% Rara Rara

Vómito Presente (para prevenir

aumento de peso) efeitos indesejáveis no Raro (para prevenir corpo)

Não

Abuso de laxantes Presente (para prevenir

aumento de peso) Não Não

Nível de actividade Aumentado Sem alterações Reduzido

Amenorreia Presente Pode ocorrer Pode ocorrer

Quadro elaborado por Garfinkel (1992) com base no estudo de Garfinkel, Kaplan, Garner, Darby (1983).

Relativamente à depressão, facilmente se compreende porque é que o diagnóstico se pode confundir com a anorexia nervosa; para além dos sintomas comuns evidenciados no quadro 3.1 existem ainda outros, menos centrais, que podem ser transversais às duas perturbações. Ao nível vegetativo destaca-se a perturbação do sono, a obstipação e a redução da libido; em termos cognitivos, a indecisão, a reduzida concentração, a perda de interesses, o isolamento social e a baixa auto-estima (Garfinkel & Garner, 1982). Apesar de haver uma relação entre estas duas perturbações em termos de risco e de curso, é importante salientar que a persecução da magreza e a imagem corporal distorcida são especificidades da anorexia nervosa.

Estas características aplicam-se igualmente na diferenciação em relação à esquizofrenia. O isolamento social, a indecisão e o negativismo são comuns a ambas, mas na esquizofrenia não há preocupação com imagem corporal e, por outro lado, a perda de peso está associada a ilusões em relação à comida ou a sintomas

catatónicos (Garfinkel & Garner, 1982). No entanto, mesmo concluindo a independência delas, tal não significa que algumas (poucas) anorécticas não possam desenvolver posteriormente uma psicose (Garfinkel & Garner, 1982).

Para além da depressão e da esquizofrenia, existem ainda outras perturbações que têm sido equacionadas no diagnóstico diferencial da anorexia nervosa. A preocupação obsessiva com a magreza tem motivado comparações com a perturbação obsessivo-compulsiva (POC), levando alguns autores a considerar a anorexia nervosa como uma síndrome obsessivo-compulsiva moderna (e.g. Holden, 1990; Rothenberg, 1986 cit in Thiel, Broocks, Ohlmeier, Jacoby, & Schubler, 1995). Os elementos reforçadores desta perspectiva são: a) as semelhanças fenomenológicas entre ambos os quadros, b) a preocupação compulsiva patente nos pensamentos e comportamentos relacionados com a dieta, peso e imagem corporal, c) a presença de compulsão nos doentes com comportamentos bulímicos, associada à perda de controlo; e d) a presença dum estilo cognitivo específico com pensamentos disfuncionais na anorexia nervosa.

Vários investigadores, porém, têm discordado desta perspectiva, considerando a co-existência das duas perturbações distinta entre si (e.g. Cooper, 1995; Kaye, Gwirtsman, George, & Ebert, 1991; Lee, 1990; Serpell, Livingstone, Neiderman, & Lask, 2002). As diferenças observadas ao nível do conteúdo e padrão dos sintomas, bem como a resposta diferencial à intervenção comportamental e farmacológica têm sido os principais argumentos utilizados. Considera-se ainda que a natureza dos sintomas é diferente: na anorexia nervosa a sintomatologia é essencialmente ego- sintónica, sendo a maioria dos sintomas orientados para o corpo e, na POC é ego- distónica, ou seja, mais orientada para o exterior (Garfinkel, 1995; Holden, 1990; Serpell et ai., 2002). Lee (1990) salienta também que os dois tipos de patologia despoletam nos indivíduos uma atitude diferente: a resistente e despreocupada, patente na expressão "let me be" que caracteriza a anoréctica e, a angustiada e que procura ansiosamente ajuda, reflectida na expressão "let me not be" associada ao doente obsessivo-compulsivo.

No rol das perturbações psiquiátricas, a histeria tem sido também associada à anorexia nervosa por alguns autores25. Este quadro, que actualmente é designado por

perturbação de conversão (APA, 2000/ 2002), tem em comum com a patologia alimentar a manifestação de problemas físicos inerentes a uma perturbação

25 A começar por um dos autores associados à descoberta da anorexia nervosa, Lasègue, que a

psicológica (Garfinkel & Garner, 1982). Ao nível dos sintomas propriamente ditos, verifica-se que na perturbação conversiva também podem ocorrer a bulimia, os comportamentos compensatórios, ambos com um significado simbólico normalmente associado a um conflito e, ainda, a amenorreia (Garfinkel, 1992).

No entanto, os doentes com esta psicopatologia não fazem restrição alimentar, não vivenciam o medo de engordar, nem apresentam perturbação da imagem corporal. Normalmente, as pessoas com perturbação de conversão apresentam uma longa história de debilidade em termos de saúde e utilizam os sintomas para chamar a atenção, apesar de não exercerem controlo sobre eles, enquanto que as anorécticas preferem, sem dúvida, a discrição, sendo o seu comportamento deliberado e orientado para a perda de peso.

Alguns sintomas na anorexia são ainda critérios de diagnóstico para outras perturbações tais como a fobia social e a perturbação dismórfica corporal. Estes diagnósticos devem ser respectivamente excluídos, se os medos sociais forem unicamente orientados para o comportamento alimentar e, a distorção for centrada no tamanho e na forma do corpo (APA, 2000/ 2002). Ainda relativamente à fobia social, Brewerton (1993) acrescenta que, apesar da preocupação em relação à aparência física estar presente em ambas as patologias, nas anorécticas predomina a auto- percepção, enquanto que na fobia social o alvo são as percepções dos outros, tanto em relação à sua aparência como em relação ao seu comportamento.

Assim, e a título de conclusão, é possível reafirmar a convicção de que nem todas as perdas de peso com causas psicológicas podem ser consideradas anorexia nervosa. A preocupação e distorção relativamente à imagem corporal constituem dimensões psicológicas singulares desta doença (Garfinkel et ai., 1983).