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O LONGO PERCURSO ENTRE A ANOREXIA MÍSTICA E A ANOREXIA NERVOSA ACTUAL

2.1. OS OBSTÁCULOS NO ESTUDO DA EPIDEMIOLOGIA

As taxas na epidemiologia são a base que permite estabelecer comparações entre os grupos populacionais (Szmukler, 1985). No entanto, verifica-se que os estudos existentes apresentam uma extensa amplitude de resultados, em consequência dum sem número de limitações metodológicas, comprometendo seriamente a interpretação fidedigna dos dados e também a tão frutífera correspondência entre as diferentes investigações.

Numa tentativa de sub-divisão destes obstáculos metodológicos podemos encontrar 3 grandes categorias: 1) escolha da amostra, 2) definição de caso e 3) detecção de caso.

2.1.1. Selecção da Amostra

A dificuldade encontrada a este nível incide, essencialmente, na não representatividade das amostras estudadas. A anorexia nervosa é uma doença pouco comum e como tal dificulta a escolha de um grupo representativo (Patton & King, 1991). Em consequência, as investigações utilizam amostras dissemelhantes (Heatherton, Nichols, Mahamedi, & Keel, 1995), desde estudantes do ensino secundário a estudantes universitários (de escolas privadas ou estatais), desde

doentes dos cuidados de saúde gerais a doentes psiquiátricos (de instituições públicas ou privadas), e desde amostras comunitárias recolhidas em zonas rurais a amostras urbanas (incidindo em diferentes faixas etárias).

Heatherton et ai. (1995) salientam que os métodos de amostragem constituem procedimentos relevantes que não deveriam ser descurados, na medida em que existem grupos com risco acrescido. Estes autores referem ainda a escassez de estudos que utilizam amostras aleatórias.

Esta variabilidade de amostras para além de dificultar a comparação dos dados, introduz um forte viés na tentativa de generalização dos resultados à população geral.

2.1.2. Definição de "Caso"

Este ponto remete-nos para os critérios de diagnóstico utilizados nos estudos epidemiológicos que permitem definir um "caso" de anorexia nervosa. Numa análise geral facilmente se conclui que os critérios utilizados têm variado de estudo para estudo, de país para país e, também, ao longo dos diferentes períodos de tempo nos quais as investigações se enquadram. Uma explicação para este facto é a progressiva redefinição dos critérios que se tem verificado ao longo das últimas décadas. Veja-se o caso do "Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders" (DSM, American Psychiatric Association) desde o DSM-III até ao DSM-IV. Com o DSM-III-R (APA, 1987) alterou-se o critério de perda de peso de 25%, que figurava no DSM-III (APA, 1980), para perda de 15% do peso corporal e introduziu-se o critério da amenorreia. Obviamente que as mudanças nos critérios de diagnóstico podem levar a variações nas taxas de incidência e prevalência encontradas nos diferentes estudos. Por outro lado, mesmo estando definidos os critérios, os investigadores utilizam diferentes graus de rigor na aplicação dos mesmos (Fombonne, 1995).

Independentemente da discussão sobre as vantagens e desvantagens da flexibilização dos critérios importa concluir que a não uniformidade no uso destes interfere com a contabilização do número de casos, constituindo um grande obstáculo à análise da tendência (crescente, decrescente ou constante) da anorexia nervosa. Dificilmente se poderão comparar valores de incidência e prevalência obtidos a partir de critérios de diagnóstico diferentes.

No entanto, se por um lado é desejável a constância dos critérios, por outro lado, e segundo Szmukler (1985), é fundamental que estes sejam adaptados ao objectivo do estudo. Este autor exemplifica que os critérios de diagnóstico utilizados no contexto hospitalar têm um grau de precisão razoável, mas quando aplicados a

amostras comunitárias frequentemente se revelam insatisfatórios, na medida em não distinguem com clareza os sujeitos afectados dos não afectados. Neste sentido, Szmukler considera que o objectivo do estudo deve ditar a definição a usar. Se, por exemplo, uma investigação epidemiológica pretender analisar o papel causal de determinados factores pode ser contraproducente analisar apenas os casos rigorosamente definidos, inviabilizando o estabelecimento de associações. Por este motivo, vários investigadores (cf. Hardy & Dantchev, 1989; Heatherton et al, 1995; Patton, Johnson-Sabine, Wood, Mann, & Wakeling, 1990; Mitchell & Eckert, 1987; Rástam, Gilbert, & Garton, 1989) têm defendido a inclusão de casos de anorexia nervosa parcial nos estudos epidemiológicos. Contudo, a relação entre síndromes parciais e síndromes clínicos completos não está totalmente definida em termos de evolução e perturbação fisiológica, o que implica um certo cuidado na leitura dos resultados.

2.1.3. Detecção de "Caso"

A dificuldade em detectar os casos é outra constante nos estudos epidemiológicos da anorexia nervosa, seja qual for a amostra escolhida. A compatibilidade desta patologia com o valor cultural da magreza nas mulheres é um factor influente, tal como nos salientam Jones et ai. (1980, p.555): "Because of the cultural pressure for slimness, exercise and dieting have become a rather routine and highly commercialized part of everyday life. In such a milieu, anorexia nervosa may not be detected, at least during its early stages, because of its similarity to nonpathologic dieting".

As investigações que se baseiam nos registos hospitalares deparam-se ainda com outro entrave: a resistência das anorécticas em procurar tratamento (Jones, Fox, Babigian, & Hutton, 1980; Santonastaso, Zanetti, Sala, Favaretto, Vidotto, & Favaro, 1996). Devido à insistência em permanecer magra, o número que doentes que recorre ao tratamento hospitalar pode ser significativamente inferior ao número de doentes que efectivamente existe na população.

Quanto às investigações que se baseiam em amostras comunitárias estas, por sua vez, encontram limitações inerentes à utilização de medidas de auto-registo. Em primeiro lugar é importante considerar que os instrumentos de avaliação são construídos com base nos critérios de diagnóstico definidos em contexto clínico, podendo não estar adaptados para a comunidade, tal como já referimos anteriormente. Em segundo lugar, muitos estudos estão dependentes das respostas

aos questionários para identificar características-chave da doença, características essas que por vezes são difíceis de definir e interpretar. Em terceiro lugar, a utilização de medidas de auto-registo pode proporcionar baixos níveis de participação. Com facilidade, os sujeitos podem contornar as respostas ou mesmo não responder, enviesando os resultados (Fairburn & Beglin, 1990). À semelhança de outros autores, Santonastaso et ai. (1996) concluíram que as perturbações alimentares estão sobre- representadas nos sujeitos não-respondentes, levando a estimativas de prevalência mais baixas. Numa patologia pouco prevalente, como é a anorexia nervosa, não é necessário uma grande população de não-respondentes para falsear totalmente os resultados epidemiológicos (Hardy & Dantchev, 1989).

Deste modo, é possível concluir que a utilização exclusiva deste método de avaliação apresenta algumas lacunas. Mais à frente analisaremos as opções metodológicas adoptadas por vários autores para contornar algumas destas limitações.

Até aqui abordámos os principais obstáculos que se colocam à fidelidade dos resultados epidemiológicos da anorexia nervosa. Num primeiro olhar, esta opção de iniciar o capítulo apontando de antemão as críticas aos trabalhos pode soar a um "começo pelo final". Esta opção pareceu-nos ser uma boa orientação para o leitor, pois permite entender melhor os tipos de estudos que são efectuados neste domínio e as dificuldades que todos eles encontram. Se não procurássemos condensar todas estas limitações correríamos o risco de nos repetirmos continuadamente ao longo da exposição. Por outro lado, também se torna mais claro, logo à partida, o porquê dos resultados serem tão díspares.