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Características psicológicas e experienciais

Para facilitar o paralelismo entre os critérios definidos por Russell e os que vigoram na actualidade apresentaremos desde já, nas figuras 3.2 e 3

3.2. QUADRO CLÍNICO 1 Características físicas

3.2.3. Características psicológicas e experienciais

Neste ponto pretendemos expor os traços psicológicos e de personalidade mais comuns na anorexia nervosa, bem como as experiências interiores que caracterizam esta patologia. As características experienciais identificadas resultam, em grande parte, dos trabalhos de Hilde Bruch (1962, 1973). Esta autora revolucionou a concepção da anorexia nervosa no sec.XX reconhecendo a disfuncionalidade de três áreas da experiência psicológica: a imagem corporal, a percepção dos estímulos corporais e o sentido de eficácia.

A distorção da imagem corporal, segundo a qual as anorécticas se percepcionam mais gordas do que são, contribui fortemente para a severidade da doença. No entanto, esta distorção não implica uma verdadeira alteração da percepção, mas sim "uma interpretação do valor da imagem, reavaliada emocionalmente e projectada num Eu ideal que ultrapassa muito a forma e o peso corporais" (Bouça, 2000, p.146)

É no seguimento desta distorção que a doente deixa de ter qualquer preocupação com o seu estado de emagrecimento e passa a defender, com obsessão, a aparência magra como símbolo de saúde e beleza. O corpo passa a ocupar um papel central, permitindo à anoréctica vivenciar a sensação de força e controlo (Bruch, 1962, 1973).

Com o evoluir da doença as experiências internas pautam-se pelo medo e as constantes preocupações em relação ao peso, pela incapacidade de exposição ao risco e por sentimentos como a culpa, a vergonha e o nojo. Apesar disso, algumas

anorécticas vivenciam, ocasionalmente, a euforia em função do emagrecimento alcançado (Crisp, 1995).

Este quadro de perturbação da imagem corporal contribui para a negação da doença. A associação entre a experiência interior e o comportamento é altamente dificultada na anorexia nervosa (Crisp, 1995). A exemplificar esta questão verifica-se que muitas anorécticas não encontram uma explicação para o facto de quererem ser mais magras, considerando apenas que assim se sentirão melhor (Garfinkel & Garner, 1982).

Uma outra dimensão que se encontra afectada é a percepção dos estímulos

corporais. Esta perturbação tem implicações ao nível do reconhecimento das

necessidades nutricionais, que se traduz numa incapacidade para reconhecer a sensação de fome mas, que não significa propriamente a falta de apetite ou falta de interesse pela comida. A percepção da fome e da saciedade constitui todo um mecanismo que engloba, por um lado, a capacidade perceptual para identificar as características da comida e, por outro, a associação entre as consequências bioquímicas dos alimentos e a aparência e o gosto deles. É na conjugação destes factores que é gerada a informação fisiológica da fome e da saciedade (Halmi, 1995).

O que se verifica na anorexia nervosa é que sinais físicos, como dores de fome ou contracções do estômago, não são muitas vezes reconhecidos. De forma semelhante, a ingestão alimentar também não é acompanhada pela saciedade, mas sim por queixas de desconforto e enfartamento mesmo perante a ingestão de pequenas quantidades de alimentos. Com o evoluir da situação e, alcançando estádios mais avançados de inanição, já é comum verificar-se um desinteresse pela comida, que em termos experienciais é muito diferente do que a anoréctica sente no início quando argumenta não querer comer.

Um outro exemplo da falta de consciência do estado corporal é a hiperactividade. Esta dimensão, já citada no ponto 3.2.2, tem a sua base explicativa no não reconhecimento da fadiga e da fraqueza e, como tal, deve ser considerada uma perturbação perceptual e também conceptual. As anorécticas não têm consciência de que estão a submeter-se a demasiada actividade física devido a esta incapacidade para reconhecer estados internos (Bruch, 1962, 1973). Mesmo quando bastante debilitadas fisicamente, as anorécticas mantêm o mesmo grau de actividade (Crisp, 1995). O exercício, motivado por mecanismos endógenos e também pelo desejo de gastar energia (Carmo, 1994) torna-se, em vários casos, uma questão de auto-disciplina levada ao extremo (Garfinkel & Garner, 1982).

Actualmente considera-se que o exercício físico constitui uma estratégia de regulação de afectos na anorexia nervosa, ou seja, um mecanismo que permite compensar ou reprimir o estado emocional. Os níveis de depressão e de ansiedade têm-se revelado mais elevados nas anorécticas com este tipo de comportamento. O exercício excessivo parecer ser mais comum nesta patologia, comparativamente com a bulimia nervosa, provavelmente porque os doentes bulímicos têm outro tipo de comportamentos, tais como a ingestão compulsiva e a purgação, que lhes permite atingir este objectivo com maior rapidez (Penas-Lledó, Leal, & Waller, 2002).

É possível ainda considerar um segundo nível de sobreactividade nestas doentes e que está relacionado com a vivência de uma constante inquietude. Esta dimensão está associada a perturbações do sono e, contrariamente à anterior, não é controlada voluntariamente (Beumont, 1995).

Outras características que podem ser equacionadas como perturbações da consciência corporal são a indiferença às mudanças de temperatura e a dificuldade em identificar estados emocionais e as reacções fisiológicas deles decorrentes.

Analisando agora o sentido de ineficácia identificado por Bruch (1962), este conceito procura definir a sensação que as anorécticas têm de que agem constantemente em função das directrizes das outras pessoas - sentem-se pouco úteis e eficazes, não conseguindo fazer o que querem. Este sentido de ineficácia é geral e paralisante, afectando todos os pensamentos e actividades. Como exemplos desta vivência encontramos o medo de perder o controlo e a desconfiança em relação aos outros. As perturbações abordadas anteriormente (distorção da imagem corporal e a dificuldade na percepção dos estímulos corporais) também constituem expressões parciais deste conceito.

O medo de perder o controlo é uma dimensão muito marcada na anorexia nervosa e, por isso, quando as anorécticas conseguem exercer controlo sobre o corpo retiram uma sensação de alegria e posse que reforça a continuidade dos comportamentos. Neste contexto entende-se porque é que estas doentes resistem à exposição ao risco, ou seja, à ingestão alimentar; na realidade, o acto de comer, constitui uma forte ameaça à sensação de controlo corporal (Crisp, 1995).

Bruck (1962) associa a origem do sentido de ineficácia à adolescência, porque nesta fase surge o conflito entre o perfeccionismo e a sensação de incapacidade resultante das expectativas de responsabilidade e independência.

O perfeccionismo é, efectivamente, um traço de personalidade bastante comum nas anorécticas. Actualmente reconhece-se que grande parte destas apresenta

rigidez estereotipada, ritualismo e meticulosidade. No entanto, não se compreende porque é que estes comportamentos ocorrem, nem tão pouco se eles constituem uma causa ou uma consequência da anorexia nervosa. Estudos nesta área sugerem que apesar da perda de peso aumentar a intensidade das preocupações perfeccionistas, estas persistem a longo-prazo, mesmo após a remissão da doença (Scrinivasagam et ai., 1995; Sullivan, Bulik, Fear, & Pickering, 1998). Possivelmente a hipótese do perfeccionismo ser secundário à perda de peso é, entre todas, a menos provável.

A reforçar esta percepção, McLaren, Gauvin e White (2001) efectuaram um estudo com estudantes universitárias no qual verificaram que o perfeccionismo contribuía significativamente para a predição da dieta restritiva. Concordantemente, Vitousek e Manke (1994) e Scrinivasagam et ai. (1995) consideraram o perfeccionismo como antecedente à anorexia; estes últimos ponderaram a possibilidade de existir uma vulnerabilidade biológica subjacente, sendo a serotonina o sistema neurotransmissor responsável.

E de salientar que o perfeccionismo pode constituir um obstáculo à recuperação da perturbação alimentar. Os sujeitos perfeccionistas são conduzidos pelo medo de falhar e a sua rigidez de pensamento dificulta a mudança psicológica (Sutandar- Pinnock, Woodside, Carter, Olmsted, & Kaplan, 2003).

Paradoxalmente, as anorécticas apresentam com alguma frequência comportamentos impulsivos, tais como tentativas não premeditadas de suicídio, ataques de agressividade, auto-mutilação e abuso de substâncias. A explicação parece residir conjuntamente nos traços de personalidade (e.g. impulsividade, agressividade) e na diminuição da actividade serotonérgica resultante da restrição alimentar (Fessier, 2002).

Ainda no rol das características de personalidade associadas à anorexia nervosa é de destacar a reduzida procura de sensações e o evitamento emocional; as anorécticas têm demonstrado relutância em partilhar e discutir problemas com os outros (Bali & Lee, 2002). O isolamento social, a diminuição de interesses e a inibição, são características que, apesar de poderem existir antes da doença se manifestar, se ampliam com o desenvolvimento da mesma (Garfinkel & Garner, 1982).