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SÉC XX: A HISTÓRIA RECENTE DA ANOREXIA NERVOSA

O LONGO PERCURSO ENTRE A ANOREXIA MÍSTICA E A ANOREXIA NERVOSA ACTUAL

1.5. SÉC XX: A HISTÓRIA RECENTE DA ANOREXIA NERVOSA

Foi apenas no séc.XX que a anorexia nervosa adquiriu um carácter nosológico independente, difundindo-se ao nível da psiquiatria e da psicologia. A sua terminologia começou a ser amplamente utilizada e, em consequência, assistiu-se ao desenvolvimento de diferentes teorias explicativas. Durante este século foi evidente o aumento do número de casos diagnosticados.

Em termos culturais este século caracterizou-se pela clara reprovação do excesso de peso, tanto a nível médico como estético, abrangendo não somente as mulheres jovens, mas ambos os sexos e em todas as idades. Instituiu-se o exercício físico como forma de evitar o excesso de peso e nas revistas verificou-se um aumento do número de artigos sobre este tema, bem como o número de fotografias de raparigas magras. O design das roupas sofreu também alterações, entrando em voga os modelos justos, tubulares e sem grande saliência do peito (Vandereycken & Van Deth, 1996). E esta moda veio para ficar...

Quanto aos fenómenos sociais associados ao jejum, neste período as "donzelas miraculosas" ou mesmo os "artistas que jejuavam e os esqueletos com vida" foram praticamente inexistentes, mas registou-se a emergência de um outro fenómeno que ainda hoje se mantém: a greve de fome. Este acto, acompanhado pela deterioração física, cuja responsabilidade é totalmente atribuída à própria pessoa que o leva a cabo, tem tido na sua base fortes motivações políticas ou sociais, constituindo uma forma de protesto, de aquisição de poder ou de pressão sobre algo (Van Geuns et ai., 1977 cit in Vandereycken & Van Deth, 1996). No entanto, este comportamento não constitui propriamente uma doença. Na nossa opinião ele não é, tão pouco, comparável à anorexia nervosa e constitui uma espécie de continuação de outros fenómenos sociais evidentes em séculos anteriores, nos quais a função apelativa foi notória. De cultura para cultura, a alimentação tem assumido outros papéis que ultrapassam a mera manutenção da subsistência e o séc. XX não foi excepção.

No início deste século verificou-se um acréscimo de interesse pelo estudo do comportamento alimentar dando continuidade à curiosidade manifestada no final do séc. XIX. As opiniões multiplicaram-se dando origem a conflitos entre várias escolas psiquiátricas de diferentes países.

O primeiro trabalho que se destacou na viragem para o séc. XX foi o de Pierre Janet (1907 cit in Vandereycken & Van Deth, 1996). Este autor considerou que a hiperactividade nas anorécticas tinha como função reforçar a perda de peso ou compensar a comida ingerida. A sensação de cansaço era suprimida pela dissociação extrema entre o lado psicológico e a regulação emocional do cérebro que, desta forma, levava a uma perda de memória da função nutricional.

Janet (1911 cit in Silverman, 1997) definiu a anorexia nervosa como uma perturbação puramente psicológica e considerou a existência de dois subtipos: o histérico e o obsessivo. O primeiro, designava um tipo de anorexia menos comum e cujo factor desencadeador era a perda total de apetite; o segundo fazia referência a uma forma de restrição alimentar que tinha como causa o medo de engordar e o medo de atingir a maturação sexual. O grande contributo de Janet centrou-se, precisamente, no reconhecimento da repugnância que as anorécticas desenvolviam em relação ao corpo. Esta característica é actualmente aceite como um factor importante na doença. Mais ainda, a obsessividade e perfeccionismo que observou, também hoje se mantêm como características de personalidade comuns nestas doentes (Vandereycken & Van Deth, 1996).

Em 1914 nasceu uma nova fase na história da anorexia que se pautou pela desvalorização das interpretações psicogénicas. Este passo foi dado por Morris Simmonds que descreveu o caso dum doente que tinha falecido com um grau extremo de emagrecimento e cuja autópsia tinha revelado uma atrofia ao nível do lobo anterior da pituitária. Simmonds (1914 cit in Silverman, 1997) atribuiu a este quadro a designação de "pituitary cachexia" e considerou o ponto de partida para a descoberta da causa da anorexia. Esta hipótese levantada por Simmonds atraiu a atenção de muitos investigadores que ansiavam uma explicação somática e científica para este fenómeno, e em consequência desta adesão a anorexia nervosa deixou de figurar nos livros de psiquiatria, passando para o domínio da medicina interna.

A aceitação desta relação causal teve também impacto ao nível dos tratamentos administrados. A partir do momento em que esta doença foi equacionada como um problema endócrino, o tratamento passou a ter uma única vertente: a administração de hormonas. Durante muitos anos estes doentes foram submetidos a extractos e implantes da pituitária, independentemente de se constatarem resultados ou não, sem que fosse dada qualquer atenção às variáveis psicológicas.

A partir de 1930 esta hipótese explicativa começou a ser posta em causa através dum número crescente de publicações que realçaram o carácter psicogénico da anorexia nervosa. Levantou-se a hipótese da insuficiência pituitária ser causada por uma trombose, no geral associada a uma grande hemorragia na infância, não sendo a subalimentação um sintoma típico desta (Lucas, 1981).

Em 1936, destacou-se o trabalho de Ryle ao publicar uma descrição microscópica do quadro da anorexia nervosa, revelando uma notável perspicácia clínica. As noções de Ryle sobre o tratamento são o espelho disso mesmo: ele considerou essencial explicar ao doente e aos pais, em separado, a natureza não orgânica da doença, o curso prolongado do tratamento e a importância deste ficar a cargo de uma enfermeira se o acompanhamento em casa não prosseguisse satisfatoriamente. O tratamento deveria começar na cama e manter-se até se registar no paciente alguma melhoria em termos físicos e psicológicos. Ryle considerou que os familiares mais próximos poderiam interferir com o referido repouso da mente e, como tal, se algum destes despoletasse fortes reacções emocionais a sua visita deveria ser desautorizada ou pelo menos estritamente racionada numa fase inicial.

Quanto à alimentação, este clínico considerou que a dieta estabelecida para o início do tratamento deveria ser bastante variada e era importante que o médico exercesse controlo sobre as quantidades de comida ingeridas em cada refeição,

certificando-se junto dos doentes. Com sagacidade ele alertou: "It should be remembered that some patients are capable not only of declining food but also of hiding or disposing of it, and even of inducting vomiting in the lavatory when the nurse's back is turned" (Ryle, 1936 cit in Silverman, 1997, p. 6). Neste sentido, Ryle sugeriu que o médico conversasse com o doente depois de cada refeição, mantendo uma postura de firmeza, delicadeza e tacto.

No geral, este autor assumiu uma posição totalmente contra a administração de hormonas (da tiróide e dos ovários), em consonância com a visão psicogénica da anorexia nervosa e, valorizou a intervenção baseada na explicação, na tranquilidade, na distracção e na segurança do médico.

Este e outros investigadores contribuíram para um reajustamento gradual à natureza psicogénica da anorexia nervosa. Em 1945 esta doença passou novamente para os compêndios de psiquiatria, encerrando assim um capítulo negro na sua história caracterizado por cerca de 30 anos de diagnósticos errados, submetidos a todo o tipo de terapias hormonais e a uma constante negligência das necessidades psíquicas.

Os anos subsequentes a esta fase foram fortemente dominados pelo desenvolvimento das teorias psicanalíticas. Depois de 1960 o interesse pela anorexia nervosa multiplicou-se exponencialmente com os trabalhos desenvolvidos por Hilde Bruch (1962). Esta psiquiatra, cujos inquestionáveis contributos analisaremos posteriormente com maior detalhe, introduziu noções como a baixa auto-estima e a distorção da imagem corporal, clarificando alguns processos característicos da doença. Com esta autora iniciou-se uma nova era na história da anorexia: o passado recente. Este período tem acolhido inúmeros trabalhos dos quais têm resultado diferentes correntes teóricas.

Numa tentativa de síntese sobre a evolução do estudo da anorexia nervosa desde a sua descoberta, é possível definir a presença de seis eras (Lucas, 1981), cada uma delas marcada por dados controversos e diferentes opiniões. A primeira - a era descritiva - inclui o período entre 1868-1914 e refere-se à descoberta da anorexia nervosa ao nível da literatura. A segunda foi designada por era biológica, surgiu em 1914 com a descoberta da "pituitária cachexia" por Simmond, e define o período durante o qual os investigadores centraram a sua atenção nos aspectos endócrinos da doença. Em 1930 iniciou-se a era da redescoberta que se caracterizou pelo infirmar da doença de Simmonds e o re-aceitar da componente psicopatológica dos problemas alimentares. A quarta, a era da perspectiva psicanalítica, marcou um período durante o

qual se formularam teorias explicativas baseadas nos medos de impregnação e na negação da maturação sexual. Em 1962 iniciou-se a quinta era com os trabalhos de Hilde Bruch sobre a concepção da doença. E por fim, a sexta era, que surgiu aproximadamente na década de 80, diz respeito ao estudo das perturbações do comportamento alimentar sob o ponto de vista biopsicossocial. Nesta era as teorias psicológicas têm sido fortemente disputadas (Vandereycken & Van Deth, 1996).

De facto, na década de 80 assistiu-se a uma explosão de interesse por este tema, abrindo portas para novas descobertas. Entre elas destaca-se a identificação e divulgação, protagonizada por Russell (1979, p.429), de uma "nova variante da anorexia nervosa" - a bulimia nervosa.