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O LONGO PERCURSO ENTRE A ANOREXIA MÍSTICA E A ANOREXIA NERVOSA ACTUAL

1.6. REFLEXÕES FINAIS

Ao longo deste capítulo expusemos uma série de factos que, de acordo com alguns investigadores, constituem o espólio da história remota da anorexia nervosa. A aceitação desta suposição não implica, no entanto, que consideremos que as descrições e as teorias desenvolvidas no passado tenham por detrás verdadeiros casos de anorexia nervosa. Claramente, a questão central que se levanta é se existirá correspondência entre as diferentes formas de abstinência alimentar ou se elas constituem fenómenos diferentes.

Para abordarmos esta questão deparamo-nos com alguns obstáculos que estão relacionados, sobretudo, com a ausência de vários tipos de informação e a questionável verosimilhança dos factos. Especificando, para estabelecermos um diagnóstico de anorexia nervosa devemos possuir informações sobre os diferentes critérios de modo a podermos avaliar o funcionamento psicossocial da pessoa em questão. Ora esta complementaridade de informação está ausente nos escritos históricos; as descrições são lacónicas. Por outro lado, os factos descritos não podem ser considerados totalmente verídicos uma vez que a imaginação do próprio escritor é uma variável interveniente neste processo. Carmo (1997, p.94-95) comenta a este propósito: "Naturalmente que se teria de investigar o que é que representa a frase 'não comer nada', quando aparecia na descrição destes casos. Também hoje os pais das jovens dizem 'ela não come absolutamente nada". Na realidade, são frequentes as descrições com algum impacto sensacionalista que procuram descrever a inexplicável resistência à alimentação no passado e, como tal, não podem ser interpretadas de uma forma literal.

Outros autores apoiam estas reticências. Vandereycken e Van Deth (1996) consideram questionável o acto de diagnosticar pessoas que viveram noutra época histórica, com uma cultura diferente e com base em documentos que não foram escritos com este propósito.

O estudo da abstinência alimentar no passado, implica a consciência de que as motivações subjacentes a este acto, bem como as interpretações atribuídas pelos sujeitos, variam de acordo com o contexto sócio-cultural (Bell, 1985; Vandereycken e Van Deth, 1996). Ao longo dos séculos, a motivação para o jejum como forma de procurar a perfeição pode ter sido um denominador comum, mas o conceito de perfeição pode ter tido significações diferentes de acordo com o sistema de valores vigente. De facto, na época medieval a perfeição centrava-se ao nível interior, através da fusão espiritual com o sofrimento de Cristo, enquanto que no séc. XIX e também presentemente, a perfeição é equacionada ao nível exterior, através dum corpo magro. A procura da magreza e o medo de ser gordo é um traço fundamental no diagnóstico actual da anorexia nervosa, mas este traço não consta nos casos descritos antes do século XIX. Anteriormente a este período, as motivações para o jejum eram claramente outras.

Apesar de existirem sintomas que apontem para a anorexia nervosa, tais como, comportamento alimentar peculiar, obsessão pela comida, obstipação, amenorreia, insónia, hiperactividade e diminuição do desejo sexual, estes podem ser vistos como efeitos que sobrevêm do jejum prolongado, ou seja, como epifenómenos (Garfinkel & Garner, 1982; Vandereycken & Van Deth, 1996).

Em suma, podemos concluir que, não obstante os traços em comum com a anorexia nervosa, o jejum antes do séc.XIX diferia ao nível da função e do significado. No entanto, Bell (1985) considera que estes fenómenos podem ter causas psicológicas semelhantes, como a procura da auto-identidade e da autonomia. Segundo o mesmo, a possibilidade de perder o controle sobre a persecução destes objectivos incute a vivência de um medo intenso.

Sampaio et ai. (1999, p.21) concluem este ponto de uma forma bastante clara e com a qual estamos em concordância: "De acordo com os conhecimentos actuais, o que podemos dizer é que o enquadramento sócio-cultural, as motivações, os caminhos, são bem diferentes para a anorexia medieval e para a anorexia nervosa, mas o estado físico e psicológico a que chegaram umas e a que chegam outras tem muito de comum, pelo que poderemos compreender melhor a antiga anorexia através do conhecimento da moderna anorexia".

Na nossa opinião, o estudo do paralelismo entre ambas permite-nos compreender melhor a relação que o ser humano tem tido com a alimentação e o corpo. Nesta relação as emoções emergem como factores invariavelmente salientes. Seja por sentir culpa pela morte das irmãs, descrita no caso de Catarina de Siena, seja pela procura de autonomia, associada à sociedade repressiva, seja pela vivência do conflito emocional entre a escolha da maternidade ou a emancipação, descrita no séc. XIX, várias são as descrições que nos realçam o cunho motivador das emoções. Mesmo nos escritos, a dificuldade em modulá-las surge habilmente referenciada (e.g. Lasàgue). Repare-se na expressão utilizada por Morton na descrição da origem do problema alimentar - "violentas paixões da mente".

Mesmo equacionando estes pontos de intercepção, é de concluir que as condições propícias para o florescimento da anorexia nervosa tal qual a conhecemos, só surgiram na viragem para o séc.XX. Foi fruto de profundas alterações sócio- culturais que emergiu a "nova mulher" e com ela as novas preocupações. A busca da liberdade, da emancipação e da perfeição tornou-se, para muitas, a maior prisão de sempre...

Seria difícil terminar este capítulo sem reconhecer o mérito que Van Deth e Vandereycken (1996) tiveram ao entrelaçar minuciosamente todos os dados históricos, permitindo-nos compreender com inteligibilidade a importância da cultura na génese da anorexia nervosa. Com as suas palavras terminamos esta primeira abordagem com uma visão mais clara do desenrolar dos factos que construíram a seu passado: "This journey among fasting saints, miraculous maidens, living skeletons and hunger artists has made it clear that the currently obvious connection between food abstinence and illness is a time-bound phenomenon" (Van Deth & Vandereycken, 1996, p.96).

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A "EPIDEMIA" DA ANOREXIA NERVOSA:

MITO OU REALIDADE?

No capítulo anterior contextualizamos histórica e culturalmente os diferentes fenómenos alimentares emergentes ao longo dos séculos, salientando o impacto dos mesmos ao nível da sociedade vigente. Este olhar retrospectivo afigura-se incompleto se não se não se analisar, na actualidade, a magnitude da anorexia nervosa.

Num rápido olhar sobre as últimas décadas, podemos referir que tem aumentado visivelmente o número de publicações referentes a esta patologia. A anorexia nervosa tem-se revelado um problema de saúde significativo, atraindo a atenção de muitos investigadores e da comunidade em geral. A morbilidade severa que se manifesta a longo-prazo e a substancial mortalidade associada estão na base deste visível interesse (Lucas, Beard, O'Fallon, & Kurland, 1991; Pawluck & Gorey, 1998). É deste misto de preocupação e curiosidade que surge a proliferação dos estudos epidemiológicos, isto é, dos estudos que examinam a distribuição da doença na população (Szmukler, 1985). Este tipo de análise avalia a frequência de um determinado problema de saúde, indicando quando, onde e quem é preferencialmente afectado.

Existem duas medidas básicas de avaliação da frequência dos fenómenos: a incidência e a prevalência. A incidência mede a força de ocorrência da patologia e é definida como o número de novos casos que surgem numa dada população e num determinado período de tempo (normalmente um ano). A prevalência refere-se ao número actual de casos (novos e em curso) na população, num determinado momento {prevalência pontual8) ou período de tempo (prevalência de período9). Este

valor é geralmente expresso em percentagem e permite definir a proporção da população que apresenta a doença (Garb, 1996; Hoek et ai.,1995; Stone et ai., 1996/1999).

A aplicação dos métodos epidemiológicos às perturbações alimentares teve início há aproximadamente 30 anos atrás e foi motivada pela especulação de que a anorexia nervosa estaria a aumentar consideravelmente. Desde então as características epidemiológicas têm sido vastamente estudadas, essencialmente, na Europa e na América do Norte (Szmukler, 1985). No entanto, várias décadas de investigação não têm sido suficientes para definir os verdadeiros números da doença (Hardy & Dantchev, 1989). O possível aumento da anorexia nervosa, fortemente

8 Tradução do termo "point prevalence" (Stone, Armstrong, Macrina, & Joseph, 1996/1999; traduzido por

H. Barros).

reforçado pelo acréscimo de novos casos nas admissões hospitalares, tem sido diferentemente definido pelos autores desde um "aumento agudo" (Russell, 1985), até à dimensão "epidémica" (Epstein, 1986 cit in Williams & King, 1987). Ao invés, outros investigadores refutam claramente estes dados justificando a inexistência de evidências que suportem um verdadeiro aumento desta patologia (e.g. Fombonne, 1995; Williams & King, 1987).

Neste capítulo propomo-nos a analisar os estudos epidemiológicos desenvolvidos na área da anorexia nervosa com o objectivo de definir, com maior clareza, a amplitude da doença. Na redacção destas páginas deparamo-nos inevitavelmente com duas questões fundamentais: uma é a procura da resposta à pergunta "existe ou não um aumento da anorexia nervosa ao longo do tempo?"; a outra é a consciencialização das limitações metodológicas subjacentes a este tipo de estudos. Propomo-nos, então, começar por este último tema, na certeza porém de que nele estão enraizadas as principais discrepâncias encontradas ao nível dos resultados.