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Co-ocorrência da anorexia nervosa com a depressão

Para facilitar o paralelismo entre os critérios definidos por Russell e os que vigoram na actualidade apresentaremos desde já, nas figuras 3.2 e 3

3.4. CO-OCORRÊNCIA DA ANOREXIA NERVOSA COM QUADROS CLÍNICOS DE DEPRESSÃO E ANSIEDADE

3.4.1. Co-ocorrência da anorexia nervosa com a depressão

Têm sido descritos vários sintomas da depressão em doentes com anorexia nervosa: humor depressivo, desesperança, sentimento de culpa, inutilidade, irritabilidade, diminuição da concentração e perturbação do sono. No entanto, apesar de frequentes, as taxas de prevalência desta sintomatologia variam amplamente entre

os estudos, reflectindo diferenças metodológicas (Cooper, 1995). Alguns autores encontram taxas elevadíssimas, desde 80%-100% (Braun, Sunday, & Halmi, 1994; Halmi et ai., 1991; Ràstam, Gillberg, & Gillberg, 1996; Yellowlees, 1985); Já outros têm obtido valores mais baixos, entre os 40%-50%, mas espelhando igualmente a elevada ocorrência da depressão (Cooper, 1995; Corços et ai., 2000; Herzog, 1984; Kennedy et ai., 1994).

Usando como referência amostras comunitárias, a presença da patologia depressiva em sujeitos com anorexia nervosa tem sido significativamente superior (68% vs 21% em Halmi et ai., 1991; 96% vs 23% em Rástam et ai., 1996), reforçando a expectativa de comorbilidade.

Mas o que será que contribui para esta elevada comorbilidade? Tal como já referimos, a causalidade desta relação ainda não está totalmente esclarecida. Assume-se que o baixo peso pode provocar sintomatologia depressiva, mas a perda de peso também é considerada um sintoma da depressão. O mesmo acontece em relação à ingestão compulsiva: da mesma forma que ela pode ser provocada pelo humor negativo, o humor negativo também pode ser uma consequência da ingestão compulsiva e dos comportamentos compensatórios (Troop, Serpell, & Treasure, 2001),

Alguns autores defendem que a anorexia nervosa é uma variante da depressão (e.g. Cantwell, Sturzenberger, Burroughs, Salkin, & Green, 1977). Esta posição pressupõe que a perturbação do humor antedata o problema alimentar, apoiando-se em vários factos: a) as anorécticas frequentemente cumprem os critérios de diagnóstico da depressão; b) a depressão é comum nos familiares das anorécticas; c) as anorécticas respondem à medicação anti-depressiva; e d) em ambas as patologias existem anomalias fisiológicas comparáveis, nomeadamente em termos neuroendocrines (Altshuler & Weiner, 1985; Cantwell et ai., 1977; Gershon et ai., 1983; Rivinusetal., 1984).

No entanto, a tendência actual segue na direcção contrária, ou seja, considera a depressão como secundária à anorexia nervosa. Também são vários os motivos que reforçam esta posição. Primeiro, apenas numa pequena minoria de casos se verifica que a perturbação depressiva precede o problema alimentar. Este dado tem sido consistentemente observado em amostras clínicas (Braun et ai., 1994; Laessle, Kittl, Fichter, Wittchen, & Pirke, 1987), comunitárias (Rástam et ai., 1996; Rohde, Lewinsohn, & Seeley, 1991) e de estudantes (Graber & Brooks-Gunn, 2001; Stice, Hayward, Cameron, Killen, & Taylor, 2000).

Em segundo lugar, constata-se que os sintomas depressivos também se manifestam em pessoas sem patologia alimentar quando estas estão sujeitas a estados de fome. Nestes casos, os sintomas depressivos desaparecem com o aumento de peso, indicando-nos que a depressão e o comportamento alimentar podem ter factores bioquímicos associados (Cooper, 1995; Crisp, 1980).

Terceiro, observa-se frequentemente que as anorécticas numa fase aguda da doença estão mais deprimidas comparativamente com as anorécticas em fase de remissão (Laessle et ai., 1987; Troop et ai., 2001), o que permite concluir que a oscilação da depressão está associada à patologia alimentar (Eckert, Goldberg, Halmi, Casper, & Davis, 1982).

Quarto, de acordo com várias investigações, a perturbação depressiva não ocorre de forma invariável nos diferentes diagnósticos alimentares. Manifesta-se com maior frequência na anorexia nervosa tipo bulímico, provavelmente devido à preocupação acrescida com a ingestão compulsiva e os comportamentos purgativos (Braun et ai., 1994; Casper, Eckert, Halmi, Goldberg, & Davis, 1980; Garfinkel et ai., 1980; Laessle et ai., 1987; Willcox & Sattler, 1996). Quando se compara a anorexia nervosa com a bulimia nervosa, verifica-se que a percentagem de deprimidos é superior nas doentes anorécticas (Herzog, 1984).

Quinto, a sintomatologia depressiva em anorécticas é diferente do padrão observado em sujeitos com perturbação depressiva major (Cooper & Fairburn, 1986), levantando-se a hipótese da perturbação distímica27 ser a perturbação do humor mais

associada à anorexia nervosa (Zaider et ai., 2000).

Por último, e a acrescentar a todos estes factos, nem todos os estudos têm concluído que os familiares em primeiro grau das anorécticas apresentam taxas acrescidas de depressão (Biederman et ai., 1985; Garfinkel et ai., 1980; Halmi et ai., 1991; Lilenfeld et ai., 1998). No sentido inverso, a baixa prevalência de anorexia nervosa nos familiares dos deprimidos contraria a hipótese de uma causalidade comum (Strober et ai., 1990 cit in Halmi et ai., 1991).

Em síntese, é possível definir duas propensões nos estudos: uma, é que as duas perturbações têm patogéneses diferentes; a outra, é que na presença associada de ambas, a depressão é secundária, e não antecedente, à perturbação alimentar. Esta última conclusão foi reforçada por um estudo recente, com carácter longitudinal

É caracterizada pelo "humor depressivo, durante mais de metade dos dias, acompanhado por sintomas depressivos adicionais que não preenchem os critérios para Episódio Depressivo Major" (APA 2000 /2002, p.345).

(por um período de 10 anos), implementado com uma amostra de 51 adolescentes anorécticas (Ivarsson, Rástam, Wentz, Gillberg, & Gilberg, 2000). Este trabalho revelou que a depressão surgiu no curso da anorexia nervosa e que evolui em função da patologia alimentar. Estes resultados contrariam a noção de a anorexia nervosa é uma forma de perturbação depressiva.

Actualmente, é ainda possível destacar uma terceira perspectiva, de cariz mais intermédio, elaborada com base no "Modelo Multidimensional" proposto por Garfinkel e Garner (1982). Este modelo considera que a anorexia nervosa resulta da interacção recíproca entre várias forças: biológicas, psicológicas, familiares e sócio-culturais. No seguimento desta concepção, é possível que estas dimensões interfiram na complexa relação entre a depressão e o problema alimentar, proporcionando o estabelecimento de uma variedade de padrões de relacionamento entre eles. De acordo com este modelo, a depressão pode emergir como um sintoma secundário, mas também se pode autonomizar ao longo do tempo (Swift, Andrews, & Barklage, 1986).

Independentemente da perspectiva adoptada para explicar o cariz da relação, é importante ter em conta que a depressão é frequente e acarreta consequências consideráveis. Algumas características típicas da anorexia nervosa, tais como o sentimento de ineficácia, o perfeccionismo, falta de consciência dos sentimentos internos e o medo de maturidade podem estar fortemente associadas à depressão (Bizeul et ai., 2003). Os indivíduos com este quadro tendem a apresentar maiores dificuldades de ajustamento psicossocial e, concretamente, piores relações com os outros. O diagnóstico dos sintomas depressivos torna-se essencial para evitar o agravamento da severidade da anorexia nervosa e o desenvolvimento subsequente de outras perturbações (Gotlib, Lewinsohn, & Seeley, 1995).