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Co-ocorrência da anorexia nervosa com outras perturbações mentais

Para facilitar o paralelismo entre os critérios definidos por Russell e os que vigoram na actualidade apresentaremos desde já, nas figuras 3.2 e 3

3.4. CO-OCORRÊNCIA DA ANOREXIA NERVOSA COM QUADROS CLÍNICOS DE DEPRESSÃO E ANSIEDADE

3.4.3. Co-ocorrência da anorexia nervosa com outras perturbações mentais

A investigação tem demonstrado que os sujeitos anorécticos apresentam, com relativa frequência, a presença concomitante de outras perturbações do Eixo I e do Eixo II da classificação multiaxial do DSM-IV28 (Zaider, Johnson, & Cockell, 2000).

Ao nível do eixo I, para além dos quadros de ansiedade e depressão, destaca- se o abuso de substâncias (Holderness, Brooks-Gunn, & Warren, 1994), pese embora a co-ocorrência com a anorexia nervosa não seja muito consistente; as prevalências obtidas com amostras clínicas são relativamente elevadas (Blinder, Blinder, & Sanathara, 1998; Braun et al., 1994; Bulik, Sullivan, Cárter, & Joyce, 1997; Fichter &

28 O Eixo I engloba as perturbações clínicas e outras situações que podem ser foco de atenção médica

(e.g. perturbações do humor, perturbações da ansiedade, esquizofrenia e outras perturbações psicóticas, perturbações relacionadas com substâncias); o Eixo II é relativo às perturbações da personalidade e à deficiência mental.

Quadflieg, 1996; Jordan et ai., 2003; Wiederman & Pryor, 1996)29 mas, as taxas

calculadas em amostras comunitárias, apesar de positivas, são apenas moderadas (cf. von Ranson, lacono, & McCue, 2002).

Contudo, é ao nível dos estudos que utilizam grupos de controlo que os resultados são mais inconsistentes. Convém relembrar que este tipo de investigação é essencial para a análise da comorbilidade, pois é a partir da comparação de amostras clínicas com outros grupos que se pode atribuir significado às frequências de co- ocorrência encontradas (Grilo et ai., 1995; Jordan et ai., 2003). O que se verifica é que algumas investigações observam uma percentagem superior de consumo de substâncias30 nas anorécticas, comparativamente com amostras comunitárias (e.g.

Sullivan, Bulik, Fear, & Pickering, 1998), mas outros trabalhos encontram uma percentagem mais elevada de dependência no grupo de controlo (e.g. Halmi et ai., 1991). Comparando grupos clínicos (com e sem patologia alimentar) há também autores que não detectam diferenças entre eles ao nível dos consumos (e.g. Jordan et al., 2003).

Na realidade, estes resultados não nos permitem confirmar a comorbilidade entre o consumo de substâncias e a anorexia nervosa. Apenas podemos falar duma probabilidade acrescida de co-ocorrência.

Com os dados disponíveis torna-se também difícil definir se algum diagnóstico alimentar está mais associado aos consumos. Tradicionalmente, vários autores defendem que os indivíduos com comportamentos bulímicos apresentam taxas mais elevadas de abuso de substâncias (Garfinkel et ai., 1995; Hatsukami, Eckert, Mitchell, & Pyle, 1984; Hudson, Pope, Yurgelun-Todd, Jonas, & Frankenburg, 1987; Kendler et ai., 1991; Ross & Ivis, 1999). Em consonância com esta posição encontram-se os estudos que associam às anorécticas restritivas as taxas mais baixas de consumos (Braun et ai., 1994; Garfinkel et ai., 1980; Holderness et ai., 1994; Strober, Freeman, Bower, & Rigall, 1996; Wiederman & Pryor, 1996). Em contraste, as investigações mais recentes não concluem uma ligação preferencial à anorexia ou à bulimia nervosa, nem uma diferenciação entre os subtipos de anorexia nervosa (Jordan et ai., 2003; von Ranson et ai., 2002).

Prevalências do uso/abuso de substâncias em amostras de anorécticas: 8.5% (marijuana; Wiederman & Pryor, 1996), 8.6% (cannabis; Sullivan et al., 1991), 12% (cannabis; Halmi et al., 1991), 20% (cannabis; Jordan et al., 2003), 30% (substâncias no geral; Sullivan et al., 1991), 43.8% (substâncias no geral; estudo de follow-up de dois anos, Fichter & Quadflieg, 1996).

Quanto à natureza da co-ocorrência, esta tem sido explicada de diferentes formas. As várias semelhanças da anorexia nervosa com os comportamentos aditivos deram suporte ao desenvolvimento do "Modelo da Adição", levando vários investigadores a considerar ambas as patologias como parte da mesma síndrome (Garry, Morrissey, & Whetstone, 2003).

No entanto, ao constatar-se que outros doentes psiquiátricos também apresentavam problemas de consumo de substâncias, emergiu a crítica ao "Modelo de Adição" e com ela a perspectiva de que as duas perturbações são distintas, têm etiologias diferentes (von Ranson et ai., 2002) e se transmitem isoladamente (Blinder et al., 1998).

Outros autores sugerem a existência de dois mecanismos mediadores da co- ocorrência: um, a vulnerabilidade inata partilhada (Strober et ai., 1996) e outro, a influência dos traços de personalidade na predisposição dos comportamentos (Vitousek & Manke, 1994). Considerando este último ponto, as perturbações alimentares e o uso de substâncias podem então representar diferentes expressões de uma constelação de personalidade, caracterizada pela impulsividade e por défices na regulação dos afectos (Beary et ai., 1986; Lacey & Mourelli, 1986 cit in Grilo et ai., 1995).

Loxton e Dawe (2001) referem que estas duas hipóteses explicativas têm sido consideradas isoladamente e até em oposição, mas que seria desejável a integração de ambas numa teoria de personalidade com bases biológicas.

Por último, o facto da anorexia nervosa ser, tendencialmente, antecedente ao abuso de substâncias (Braun et ai., 1994; Holdemess et ai., 1994; Krahn, 1993; Strober et ai., 1994), tem levantado a hipótese das drogas serem utilizadas temporariamente para controlar o apetite e o peso (Cochrane, Malcolm, & Brewerton, 1998; Garry et al., 2003).

Em conclusão, constata-se um conjunto de perspectivas passíveis de explicar a relação entre a anorexia nervosa e o consumo de substâncias. Como sugestão para uma melhor definição desta co-ocorrência fica a investigação ao nível da neurobiologia, mais concretamente, em torno da análise da convergência e sobreposição dos determinantes neurobiológicos (Blinder et ai., 1998).

Ainda no âmbito das perturbações do Eixo I que têm sido descritas no curso da anorexia nervosa é de mencionar a esquizofrenia. Comparativamente com as patologias descritas anteriormente, esta é bastante menos prevalente; no geral, são poucas as anorécticas que manifestam sintomas psicóticos em algum momento da

doença (Bruch, 1973; Grounds, 1982; Halmi et ai., 1991; Hudson, Pope, & Jonas, 1984). As taxas variam entre 3% e 5% (Grounds, 1980).

Os registos de casos que documentam a presença destes sintomas têm levantado a dúvida sobre qual a relação existente entre a anorexia nervosa e as psicoses. Tal como salientam Hudson et ai. (1984, p.420): "it is difficult to ascertain whether the observed psychotic symptoms were attributable to major affective disorder, schizophrenia, organic disorders, or other aetiologies".

As opiniões dos autores dividem-se, diferenciando-se os que defendem que a sintomatologia psicótica se desenvolve na sequência da inanição (Robinson & Winnik, 1973) e os que consideram a anorexia nervosa secundária à psicose (Andrew & Harris, 1994; Yamashita, Takei, Kawai, & Mori, 1999). Numa terceira linha, surge a perspectiva de que as perturbações alimentares e as psicoses podem co-ocorrer como patologias distintas, mas em interacção (Dymek & le Grange, 2002; Hudson et al., 1984; Hugo & Lacey, 1998).

Em conclusão, e independentemente da relação existente entre ambas, parece claro que elas podem co-ocorrer (Hudson et ai., 1984). Os episódios psicóticos na anorexia nervosa tendem a ser atípicos, únicos, breves e completamente remissíveis (Grounds, 1982).

Analisando agora as perturbações do Eixo II, o estudo desta co-ocorrência surge dos contributos dos modelos conceptuais dominantes (psicanalítico, cognitivo- comportamental e desenvolvimental) que consideram que as variáveis de personalidade constituem causas centrais na emergência e manutenção da sintomatologia da anorexia nervosa.

Uma revisão dos estudos levada a cabo por Vitousek e Mank (1994) concluiu que nas anorécticas restritivas a prevalência de pelo menos uma perturbação de personalidade variava entre 23%-87% e nas anorécticas bulímicas oscilava entre 35%-97%. À semelhança do que verificámos com as perturbações do eixo I, as limitações metodológicas são a tónica principal na explicação da discrepância dos valores encontrados. A acrescentar, a leitura dos dados acarreta algumas dificuldades interpretativas relacionadas com os efeitos da inanição. Isto é, alguns efeitos psicológicos produzidos pela restrição alimentar, tais como a obsessão, rigidez e isolamento social, também são sintomas comuns nas perturbações de personalidade (Vitousek & Manke, 1994).

Considerando a investigação que se tem desenvolvido com a utilização de grupos contrastantes, os resultados tendem a concluir que as amostras de

anorécticas apresentam uma percentagem significativamente superior de perturbações de personalidade (Rástam et ai., 1996; Rosenvinge, Martinussen, & Ostensen, 2000), evidenciando a existência de comorbilidade (Braun et ai., 1994; Gartner, Marcus, Halmi, & Loranger, 1989); Skodol et ai., 1993 cit in Zaider at al., 2000).

No entanto, quando se discriminam as diferentes perturbações de personalidade, surge a dúvida se existe ou não uma relação mais estreita entre a anorexia nervosa e alguma delas em concreto. Alguns investigadores consideram que a perturbação obsessivo-compulsiva da personalidade (POCP) é a mais frequentemente diagnosticada na anorexia nervosa (Matsunaga et ai., 2000; Rástam et ai., 1996; Smart, Beumont, & George, 1976). A reforçar esta ideia, Zaider et ai. (2000), num estudo comunitário com adolescentes, constataram que esta era a única perturbação de personalidade que predizia independentemente a presença de problemas alimentares.

A contrastar, outras investigações não encontram nenhuma relação em particular, quer estudando sujeitos com diferentes perturbações de personalidade (Grilo et ai., 2003; Zanarini et ai., 1998), quer analisando amostras com diferentes diagnósticos alimentares (Gartner et ai., 1989).

Estes dados levantam a dúvida sobre a existência de associações diferenciais entre certas características de ambas as perturbações, mas não contrariam a existência de uma comorbilidade entre elas. Inclusivamente, parece gerar-se consenso quanto ao facto de haver uma probabilidade acrescida de se desenvolver anorexia nervosa num quadro de perturbação de personalidade. Os traços obsessivo- compulsivos, sobretudo o perfeccionismo e a rigidez, quando se manifestam na infância, podem constituir importantes factores de risco (Anderluh et ai., 2003).

Terreno e Sampaio (2000) consideram que a anorexia nervosa tem algumas funções adaptativas31 que equilibram aspectos psicológicos presentes nas

perturbações de personalidade, nomeadamente a baixa auto-estima e o baixo auto- controle Os comportamentos alimentares perturbados podem ainda ser utilizados como formas de auto-punição e podem ajudar a superar a dor emocional.

Esta comorbilidade psiquiátrica está associada a um curso mais severo e a um pior prognóstico no tratamento da anorexia nervosa (Herzog et ai., 1992 cit in Zaider et ai., 2000; Rosenvinge et ai., 2000). Os traços de personalidade podem actuar como

factores de manutenção da patologia alimentar (Anderluh et ai., 2003) e, adicionalmente, aumentar a probabilidade de desenvolvimento duma perturbação afectiva (Braun et ai., 1994) e a concretização de actos suicidas (Wonderlich, 1995).