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Para facilitar o paralelismo entre os critérios definidos por Russell e os que vigoram na actualidade apresentaremos desde já, nas figuras 3.2 e 3

3.3. COMPLICAÇÕES E CONSEQUÊNCIAS A LONGO-PRAZO

3.3.1. Dimensão física

As complicações médicas na anorexia nervosa resultam da acentuada restrição alimentar e dos comportamentos artificiais adoptados para controlar o peso, ou seja, a indução do vómito e o abuso de laxantes e diuréticos; algumas complicações podem também advir dos próprios tratamentos de reabilitação do peso - a realimentação (Fisher, Simpser, & Schneider, 2000; Garfinkel & Garner, 1982). Genericamente pode-

se considerar que são diversas as possíveis áreas afectadas, tal como enfatizam Goldbloom e Kennedy (1995, p.266) "...it is indisputable that no other psychiatric disorder manifests as many medical complications as does anorexia nervosa". Contudo, a presença e a gravidade dos sintomas é variável de caso para caso (Kaplan & Woodside, 1987).

No quadro 3.2 estão resumidas as complicações médicas mais frequentes.

Quadro 3.2: Complicações médicas na anorexia nervosa

Endócrinas Respiratórias

Hipogonadismo hipogonadotrópfico (que conduz à Enfisema pulmonar amenorreia)

Diminuição da função tiroideia Gastrointestinais

Aumento do Cortisol Atraso do esvaziamento gástrico

Aumento da hormona do crescimento Obstipação

Pancreatite aguda

Ósseas e musculares Síndrome da artéria mesentérica superior

Atraso na maturação óssea

Osteoporose Renais

Cãibras, tetania e fraqueza muscular Insuficiência na capacidade de concentração da urina Fibrose intersticial

Metabólicas Insuficiência renal

Hipotermia e desidratação Edema

Complicações electrolíticas (hipocaliemia, Cálculo renal hipomagnesiemia, hipocalcemia e hipofosforemia)

Hipercolesterolemia e hipercarotinemia Dentárias

Hipoglicemia Erosão do esmalte

Aumento de cáries

Hematológicas Perda de dentes

Anemia Erosão bucal

Leucopénia, e mais raramente trombocitopénia

Hipoplasia da medula óssea Neurológicas

Pseudoatrofia do cérebro

Cardiovascular Alterações ao nível do EEG

Volume cardíaco reduzido Encefalopatia metabólica

Bradicardia Névrite periférica

Hipotensão Compressão de nervos

Arritmias Actividade autonómica afectada

Resposta diminuída ao exercício

Elaborado com base em Beumont, Russell e Touyz (1993), Garfinkel e Garner (1982), Herzog e Copeland (1985) e Sampaio et ai. (1999).

Deste rol de possíveis complicações iremos apenas salientar algumas, de acordo com sua gravidade e elevada frequência. Assim, a primeira a destacar é a amenorreia, pois é de todas as complicações a mais consistente. A ausência de ovulação constitui uma reacção adaptativa do organismo à inanição e resulta de alterações hormonais relacionadas com a disfunção hipotálamo-hipofisiária (Fichter, 1992; Galvão-Teles & Reis, 1994; Pirke, Philipp, Scheiger, Broocks, & Wilckens, 1992). Nos rapazes, denota-se uma redução da testosterona, dando origem ao hipogonadismo e, consequentemente, ao desinteresse e à disfunção sexual (Galvão- Teles & Reis, 1994; Goldbloom & Kennedy, 1995).

O desequilíbrio hormonal diminui mas não elimina definitivamente a possibilidade de reprodução. A recuperação ponderal e nutricional restabelece a capacidade reprodutiva na maioria dos casos. Contudo, um estudo recente verificou que 88% das anorécticas necessitavam de um índice de Massa Corporal (IMC) de 20 para alcançar a maturidade reprodutiva (Key, Mason, Allan, & Lask, 2002), reforçando a ideia de que o peso deve sofrer um aumento considerável para que esta função seja restabelecida.

Apesar da amenorreia estar fortemente relacionada com a desnutrição, verifica- se a ocorrência de dois tipos de situação-excepção: 1) a amenorreia pode surgir antes da perda significativa de peso, constituindo a primeira manifestação da doença (Galvão-Teles & Reis, 1994; Garfinkel & Garner, 1982; Goldbloom & Kennedy, 1995); e 2) este sintoma pode persistir por vários meses ou até anos, após a normalização do estado nutricional (Galvão-Teles & Reis, 1994; Garfinkel & Garner, 1982; Hsu, Crisp & Harding, 1979; Kaye, 1992).

Estas duas situações indicam-nos que os mecanismos subjacentes aos problemas endócrinos são complexos e que ainda não estão totalmente esclarecidos. Actualmente, pondera-se a hipótese de existirem outros factores determinantes neste processo, para além da perda do peso e da má alimentação (Fichter, 1992), tal como a gravidade do estado geral do sujeito, a depressão (Galvão-Teles & Reis, 1994), o stress e a perturbação emocional (Garfinkel & Garner, 1982; Kaplan & Woodside, 1987).

As alterações hormonais são também responsáveis pela alteração da vivência da sexualidade, através da redução da libido (Kaplan & Woodside, 1987). A frequente rejeição da actividade sexual e a ausência de ovulação constituem assim dois factores explicativos da baixa percentagem de gravidezes durante este período (Rutherford & Russell, 1990).

Ao nível endócrino, é ainda acrescentar que se observa um aumento do Cortisol e uma diminuição da função tiroideia nestas doentes (Stoving, Bennedbask, Hegedus, & Hagen, 2001), esta última activada pelo próprio organismo com o objectivo de reduzir o seu gasto energético e procurar compensar os poucos recursos nutricionais (Galvão-Teles & Reis, 1994; Zwaan, Aslam, & Mitchell, 2002).

A má nutrição, o elevado Cortisol e a deficiência de estrogénios contribuem para a diminuição dos níveis de cálcio, fósforo e magnésio no sangue. Destas alterações podem resultar outras consequências bastante comuns na patologia alimentar, como a perda de massa óssea, a diminuição do crescimento do osso e, a longo-prazo, a

osteoporose (Galvão-Teles & Reis, 1994; Rigotti, Nussbaum, Herzog, & Neer, 1984; Turner et ai., 2001).

A osteoporose e o atraso de crescimento são das consequências mais sérias da anorexia nervosa e estão relacionadas com a cronicidade da patologia alimentar. Uma perda significativa da massa óssea raramente surge nos primeiros 12 meses da doença (Wong, Lewindon, Mortimer, & Shepherd, 2000), mas após o seu desenvolvimento os danos causados podem ser irreversíveis (Hartman et ai., 2000; Mehler, 2003; Rigotti, Neer, Skates, Herzog, & Nussbaum, 1991; Vestergaard et ai., 2002). Em termos de prevalência estima-se que mais de 50% das raparigas com anorexia nervosa desenvolvam osteoporose (Treasure & Serpell, 2001 cit in Mehler, 2003), apesar de muitas destas não terem consciência da existência deste problema. O aumento de peso e o reiniciar do período menstrual são factores importantes no seu retrocesso (Hartman et ai., 2000; Key et ai., 2002).

A inanição está também na origem de várias manifestações metabólicas, tal como nos especifica o quadro 3.2. A este nível é de sublinhar que o baixo nível de glicose associado à ingestão deficitária de alimentos gordos e de carbohidratos, apesar de ser reversível com a re-alimentação, pode originar uma mudança no metabolismo corporal nos casos mais extremos, passando a anoréctica a responder de forma anormal à insulina (e.g. resistência à insulina ou sensibilidade à insulina) (Kaplan & Woodside, 1987).

Os problemas cardiovasculares são também frequentes e podem acarretar sérias complicações. Os doentes com anorexia nervosa têm o volume cardíaco reduzido e a função ventricular esquerda diminuída e com menor capacidade de contracção (Sampaio et ai., 1999), implicando uma diminuição na capacidade de exercício físico e de consumo de oxigénio (Beumont et ai., 1993). Em grande parte dos casos estas mudanças normalizam-se com a recuperação ponderal e nutricional (Sampaio et ai., 1999), mas mesmo assim muitas das mortes relacionadas com o défice alimentar são devidas a estas alterações cardíacas (Goldbloom & Kennedy, 1995). Especificamente, a incidência da angina de peito é bastante elevada (Birmingham, Stigant, & Goldner, 1999).

Ao nível gastrointestinal, o enfartamento, o inchaço do estômago e a dor abdominal são as queixas mais frequentes. A redução da actividade do intestino, da qual resulta uma demora no esvasiamento gástrico, é a principal causa destes sintomas, bem como do aparecimento da obstipação. Normalmente estas queixas

subjectivas são transitórias, melhorando com a terapia nutricional (Goldbloom & Kennedy, 1995; Sampaio et ai., 1999).

Ao nível neurológico, em termos estruturais, os estudos de imagiologia revelam uma dilatação dos ventrículos cerebrais, dilatação esta que tem sido interpretada como uma pseudoatrofia cerebral, possivelmente reversível (Sein, Searson, & Nicol, 1991), secundária à subnutrição e em particular à redução das proteínas (Datlof, Coleman, Forbes, & Kreipe, 1986). Um estudo mais recente detectou défices no processamento de percepções e na integração somatosensorial, resultantes de lesões ao nível do córtex parietal, mesmo depois da recuperação do peso. Grunwald e seus colaboradores (2001) consideram que estes défices podem influenciar a percepção da imagem corporal, cuja adequada representação requer a integração perceptivo- cognitiva de informação sensorio-motora complexa.

Mais associados aos comportamentos purgativos existem ainda outros problemas médicos que se sobressaem. As anorécticas que vomitam ou utilizam laxantes apresentam frequentemente desidratação e diminuição dos níveis de potássio. A desidratação crónica e a hipocaliemia podem causar fibrose intersticial e conduzir à insuficiência renal; a perda de potássio pode originar outras complicações como palpitações, arritmias e até mesmo a morte súbita (Beumont et ai., 1993; Kaplan & Woodside, 1987). O uso continuado de laxantes tem sido também apontado como o principal responsável pelas lesões verificadas ao nível do pâncreas (Brown, Treasure, & Campbell, 2001). Por sua vez, o vómito está na origem de sequelas observadas ao nível dentário, tais como a erosão do esmalte, o aumento de cáries, a erosão bucal e a perda de dentes (Garfinkel & Garner, 1982).

Por fim, convém apenas esclarecer que algumas destas complicações e, sobretudo as alterações endócrinas e metabólicas, são possíveis de avaliar laboratorialmente, traduzindo o grau de perturbação e o mecanismo de adaptação do organismo. No entanto, elas não constituem um perfil laboratorial que permita a realização do diagnóstico da anorexia nervosa (Galvão-Teles & Reis, 1994).