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As raízes histórico-culturais da anorexia nervosa

O LONGO PERCURSO ENTRE A ANOREXIA MÍSTICA E A ANOREXIA NERVOSA ACTUAL

1.4. SÉC XIX: A GÉNESE DA ANOREXIA NERVOSA

1.4.1. As raízes histórico-culturais da anorexia nervosa

Vandereycken e Van Deth (1996) consideram a influência de cinco factores culturais na transformação do ideal de beleza feminina, contribuindo para a emergência da anorexia nervosa como uma nova doença. Estes autores não defendem, porém, que a cultura seja por si só criadora de quadros clínicos mas, consideram que a devíamos encarar como um importante contexto de atribuição de significado ao comportamento humano.

Um dos factores referidos por estes autores foi a ineficácia do ideal da família burguesa. Este ideal, que figurou entre 1770 e 1870, defendia a existência de três papéis no seio da família: 1) a posição dominante do marido como figura de sustento; 2) a função predestinada da mulher como esposa e mãe; e 3) o papel central das crianças como construtoras de futuro e progresso.

Nesta altura a responsabilidade dos pais na educação dos filhos era muito valorizada e as práticas educativas mais utilizadas privilegiavam as punições mentais e outras formas subtis de manipulação, ao invés dos castigos físicos. Segundo Vandereycken e Van Deth (1996, p.187) os métodos de educação predilectos estavam muitas vezes associados à comida: "... children were supposed to eat everything

mother dished up for them, open aversion to particular foods was punished by an additional portion and violation of the house rules often meant they had to go to bed without food".

No geral, este ideal de contornos marcadamente patriarcais surgiu com o objectivo de implementar uma forte moralidade na qual a repressão da sexualidade, tanto das mulheres como das crianças, constituiu a característica mais relevante. Neste contexto, a liberdade das raparigas em relação à família foi extremamente dificultada. Segundo Selvini-Palazzoli (1985), muitos terapeutas familiares consideram a ineficácia deste ideal, altamente "castrador" da autonomia e do desenvolvimento corporal e sexual das raparigas, como uma raiz histórico-cultural relevante da anorexia nervosa.

Um outro fenómeno associado ao desenvolvimento desta doença surgiu da importância que era atribuída às crianças como seres não adultos. Com toda a atenção investida na educação dos filhos, este processo começou a alongar-se no tempo, desenhando-se uma nova fase desenvolvimental - a adolescência. Este fenómeno sócio-cultural, que se desenvolveu durante o séc.XIX, tinha como função principal permitir a preparação das crianças mais velhas para uma nova vida. Com a noção da adolescência surgiu o reconhecimento da puberdade como processo de iniciação da maturação psicossocial, despertando na comunidade científica o interesse pelo estudo das raparigas púberes, com especial atenção para a definição da idade da menarca e a quantificação do peso através de curvas de crescimento. Nesta altura começou a atribuir-se uma importância maior ao peso e à sua normalização.

No final do séc.XIX, a sociedade sofreu grandes mudanças que favoreceram a emancipação das mulheres e, juntamente com este fenómeno, esboçaram-se outras condições propícias ao aparecimento da anorexia nervosa. Com o desenvolvimento do capitalismo e da expansão do mercado de negócios, a burguesia começou a perder o seu poder e, consequentemente, verificou-se um enfraquecimento das suas pressões sociais. Nesta altura, os movimentos femininos encontraram o momento ideal para se expandirem em prol da liberdade e muitas mulheres aderiram a esta luta; as raparigas da classe média começaram a prosseguir um ideal de auto-realização intelectual.

No entanto, a escolha de uma vida profissional fora da família significava, na época, uma violação da vocação natural das mulheres para a maternidade e, como tal, era considerada contra-natura. Ora, perante a possibilidade de enveredarem por uma vida diferente, as raparigas começaram a sentir um dilema intelectual e emocional entre a escolha da imagem tradicional de mulher e mãe, ou a opção pela carreira e a

emancipação. A este propósito Vandereycken e Van Deth (1996) levantaram a questão da anorexia nervosa ter permitido às mulheres da altura expressar de forma encoberta a sua insatisfação com a vida e escapar temporariamente aos deveres familiares.

A este dilema foi mais tarde acrescentado um outro inerente à descoberta da sexualidade proibida. A partir de 1860 iniciou-se um processo de destruição dos tabus relacionados com a sexualidade burguesa, desafiando-se a moralidade sexual repressiva e a proibição da satisfação sexual. Para esta mudança contribuiu largamente a descoberta da sexualidade das crianças protagonizada por Freud (Gay, 1984, 1986 cit in Vandereycken & Van Deth, 1996). Esta revelação deu origem ao processo de dissociação entre a perversidade e a sexualidade e abriu caminho ao desenvolvimento duma nova ciência: a sexologia (Wettley, 1959 cit in Vandereycken & Van Deth, 1996). A beleza da mulher tornou-se, pela primeira, vez um tema de estudo para os médicos.

No seguimento destes acontecimentos, o conceito de beleza feminina sofreu grandes mudanças no séc.XIX começando a valorizar-se o corpo de cinta estreita ("acentuando o coração") e de nádegas redondas, em oposição à forma encorpada com proeminência do estômago, o "tipo reprodutivo", apreciado desde o séc.XV (Bennett, 1982 cit in Vandereycken & Van Deth, 1996, p.212).

A dieta, um termo até então muito pouco utilizado, emergiu como meio para atingir o corpo perfeito e, portanto, mais magro. Esta noção conduziu, inevitavelmente, a uma alteração de pensamento quanto à restrição alimentar. É importante ter em conta que antes deste período as pessoas trabalhavam com fome e, sempre que possível, procuravam ingerir comida suficiente para se manterem vivas. Ou seja, o objectivo primordial era ganhar peso e nunca perdê-lo. Só uma pequena elite que tinha acesso aos banquetes é que poderia pensar em fazer dieta, pois esta prática era considerada um luxo. Ora, com a implementação de um novo ideal de beleza e, paralelamente, com o acesso gradual da sociedade à comida, o conceito de dieta começou a sofrer alterações. O aumento de alimentos disponíveis reduziu a possibilidade da classe alta se distinguir da burguesia através da quantidade de comida ingerida e, para contornar este facto, a primeira passou a valorizar a qualidade do sabor e da preparação dos alimentos, em detrimento da quantidade, tornando a magreza uma forma de distinção em relação às outras categorias sociais.

Na segunda metade do séc.XIX, o peso tornou-se também num referencial de saúde verificando-se uma tendência para a definição de valores de normalidade, como

já o referimos anteriormente. Elaboraram-se escalas de peso que foram afixadas em locais públicos (Schwartz, 1986 cit in Vandereycken & Van Deth, 1996) e a pesagem tornou-se uma prática corrente nas consultas médicas. Ao nível das teorias surgiram alguns defensores de que o peso corporal constituía um indicador de perturbação mental ou constituição criminal. No geral, o peso começou a ser considerado um traço de personalidade importante, sendo a obesidade claramente depreciada (Schwartz, 1989 cit in Vandereycken & Van Deth, 1996).

O modelo de corpo perfeito alcançou, no final do século, uma ampla divulgação ao nível da comunicação social. Jornais e revistas da época publicaram fotografias com modelos corporais de referência, permitindo que as pessoas estabelecessem uma minuciosa comparação. Em acréscimo, a imprensa começou a apresentar meios que permitiam alcançar este fim (Banner, 1983 cit in Vandereycken & Van Deth, 1996).

Progressivamente os modelos das roupas foram sofrendo alterações; no sentido de criar um vestuário compatível com um estilo de vida mais activo, baniu-se o espartilho optando-se por roupas que permitissem uma maior liberdade de movimentos. Os espelhos, por sua vez, tornaram-se uma peça indispensável de mobiliário.

De facto, a sublimidade da magreza instalou-se na viragem do século e veio para ficar. No entanto, importa salientar que o tipo de pressão exercido sobre os homens e as mulheres era consideravelmente diferente. Nas mulheres verificava-se, essencialmente, uma pressão social e normativa, enquanto que nos homens a pressão firmava-se na argumentação médica sobre a importância da alimentação na evolução da espécie (Vandereycken & Van Deth, 1996).