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O CINEMA NO BRASIL NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO

1.2 Anos 1960: o cinema novo

Uma parte da produção cinematográfica brasileira começava a se destacar nos círculos intelectuais do Rio de Janeiro, quando novíssimos cineastas, influenciados pelo cinema moderno do pós-guerra na Europa – Itália e França, sobretudo -, com o neo-realismo e a nouvelle vague, pensaram um movimento estético renovador no cinema, que viria a ser conhecido como cinema novo. Um movimento que recusava a chanchada, os filmes “europeizados” da Vera Cruz, o ciclo do cangaço (anos 1950-1960) e toda uma tradição acadêmica do cinema brasileiro.

Esses novos cineastas e seus filmes fizeram com que o cinema brasileiro adquirisse visibilidade e reconhecimento artístico no exterior (especialmente na França), angariando reconhecimento intelectual e prêmios em festivais de cinema importantes, como Cannes. O cinema novo era então uma experiência moderna de cinema, oriunda do terceiro mundo, que rompia com os cânones do cinema-indústria e do cinema narrativo clássico, estabelecido por Hollywood.

O cinema novo trazia à discussão preocupações sociais, questões políticas, a problemática do homem rural e do homem urbano, aspectos que, tradicionalmente, o cinema brasileiro não costumava privilegiar. Neste particular, a temática do Nordeste, vinculada à questão da identidade nacional brasileira (a estética do nacional-popular, preconizada por Glauber Rocha, é fundamental na formulação do cinema novo, sobretudo em relação à primeira fase

do movimento27), ocupou espaço de destaque na produção do período, certamente influenciada pela relevância da literatura moderna (dita regionalista), produzida sobre essa realidade, durante os anos 1930.

As obras literárias de Graciliano Ramos, José Américo de Almeida, José Lins do Rego, Guimarães Rosa, entre outros, são recorrentemente fonte de inspiração para as adaptações cinematográficas, a partir do cinema novo, sendo vinculadas à estética do nacional-popular. Pode-se afirmar que a tradição do cinema brasileiro de retratar o sertão, como pressuposto identitário nacional, é valorizado pela tradição cinemanovista.

Glauber Rocha, cineasta e teórico do cinema brasileiro, propunha um cinema independente estética e comercialmente. Ele renegava, inclusive, qualquer influência do neo-realismo italiano sobre este novo cinema que se fazia no Brasil, desejando, já nos anos 1960, uma integração do Brasil com a América Latina, a quem o país mantinha estreita identidade cultural28. A cultura popular nacional era a sua grande questão intelectual e ideológica. Rocha escreveu o manifesto Estética da fome durante a fase inicial do cinema novo (primeira metade dos anos 1960), considerado texto fundamental para o movimento cinemanovista, pois estabelecia os princípios que deveriam nortear a nova estética cinematográfica.

No documento, Rocha denuncia o “exotismo” com que os problemas sociais são tratados pela arte brasileira e, por isso, propunha uma revolução no cinema, que contemplava o cinema anti-industrial, liberto das implicações comerciais, e o “cinema de autor” - algo bastante em moda nos anos 60. A tese glauberiana pressupunha que o audiovisual é capaz de revelar e interpretar a realidade social, alterando o inconsciente reprimido do público em consciência e no conhecimento racional de si próprio.

27 A este respeito ver: GALVÃO, Maria Rita; BERNARDET, Jean-Claude. O nacional e o popular na cultura

brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1983. 266p.

28 O diálogo de Glauber Rocha com o cinema latino-americano pode ser melhor conhecido em: SARNO, Geraldo. Glauber Rocha e o cinema latino-americano. Rio de Janeiro: CIEC, 1955.112p. Neste trabalho, Glauber renega, inclusive, a influência que o neo-realismo italiano possa ter tido sobre o cinema novo.

Segundo a historiografia, o cinema novo tem seus primórdios na segunda metade dos anos 1950, com Rio, 40 graus (Nelson Pereira dos Santos, 1955). O Homem brasileiro, a realidade social e a cultura nacional - questões dogmáticas do cinema novo - começam a aparecer não apenas na questão temática, mas também na linguagem e na narrativa. O filme de estréia de Nelson Pereira dos Santos foi considerado na época principalmente uma utilização das lições do neo-realismo italiano.

Embora de ruptura, o cinema novo era uma adaptação para a realidade brasileira da formulação estética do neo-realismo italiano e da nouvelle vague francesa. Vidas secas (Nelson Pereira dos Santos, 1963), marco dessa trajetória, é exemplo eloqüente da relação entre um e outro movimento cinematográfico, uma vez que a adaptação do texto de Graciliano Ramos resultou em filme que refletia a condição subumana do homem rural do Nordeste e expunha temática e formalmente a realidade social adversa existente no Brasil. Na sua primeira fase, o cinema novo privilegiou a temática da miséria do povo brasileiro; na segunda fase, o vazio e a perplexidade existencial e política do homem das classes médias brasileiras que viviam nas grandes cidades.

Jean-Claude Bernardet (1978) defendeu ponto de vista diverso sobre o cinema novo e a identidade do “herói” brasileiro retratado nos filmes do movimento. O homem brasileiro desse cinema é, na verdade, um ser pertencente à classe média29. Motivado pela provocação estética do cinema novo, Bernardet questionou o conceito de cinema popular, propondo que cinema popular é algo que agrada ao grande público e não exatamente o cinema produzido a partir da problemática de um povo. É exatamente neste ponto de vista que reside a grande contradição do cinema novo, de modo particular, e a grande luta do subcampo do cinema brasileiro, de uma maneira geral: marcar a identidade do povo como referência estética e temática e, ao mesmo tempo, fazer o público se interessar pelo retrato de si que é oferecido.

29 Trata-se de uma visão um tanto polêmica, criticada posteriormente pelo próprio autor, mas que é o cerne, a espinha dorsal do pensamento de BERNARDET, Jean-Claude. Brasil em tempos de cinema: ensaio sobre o cinema brasileiro 3ed. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1978. 170p.

O habitus narrativo perpetrado no subcampo do cinema pelo cinema produzido em Hollywood explica, mas somente em parte, a rejeição dos espectadores brasileiros a tudo que parece visivelmente ideológico a respeito das condições sociais do povo brasileiro representado pelos filmes cinemanovistas.

No entanto, esse mesmo cinema passou pela experiência mais traumática, quando de sua relação com o público brasileiro. Uma das principais críticas feitas ao cinema novo é que visando se dirigir ao “povo” (um projeto político do movimento cinemanovista) e assumindo um sentido de cinema popular, que era próprio aos cineastas, o cinema novo não conseguiu transpor os seus objetivos para o plano de percepção estética acessível ao público, acostumado ao habitus narrativo do cinema clássico linear.

A barreira da distribuição e exibição dos filmes estrangeiros, especialmente os norte- americanos e de língua inglesa, constituía-se (constitui-se também na atualidade) como barreira para o acesso aos filmes nacionais. Isso foi intensificado, sobretudo, na década de 1960, fazendo com que a idéia de um cinema engajado politicamente e de transformação da sociedade fosse uma linguagem de difícil circulação na realidade sócio-cultural do Brasil daqueles tempos. Certamente, um cinema brasileiro mais convencional, narrativo, seguindo regras do cinema clássico consagrado por Hollywood, co-existia com o cinema vanguardista de Glauber Rocha e com o cinema novo, nos anos 1960.

O mercado formara um habitus no público espectador pelo produto hollywoodiano, considerado pelos cinemanovistas como “alienante”, porque produzido no conteúdo e, sobretudo, na forma como uma narrativa não-reflexiva dos problemas sociais. No entanto, a questão era mais ideológica do que do conteúdo temático dos filmes. Produções como O pagador de promessas (Anselmo Duarte, 1962) e Assalto ao trem pagador (Roberto Farias, 1963) estavam inseridos na vertente de um cinema social e nacional, mas para os cinemanovistas seguiam como reprodução do modelo hegemônico estrangeiro. Já Deus e o diabo na terra do sol (Glauber Rocha, 1964) e Os cafajestes (Ruy Guerra, 1963) alinhavam-se à vertente de conteúdos sociais, como O pagador de promessas, entretanto deste se afastavam na linguagem porque Glauber Rocha compreendia o filme de Anselmo

Duarte destituído de uma visão ideológica do nacional-popular.

A estética do nacional-popular, cara ao cinema novo, não seria suficiente para garantir a todos os cineastas daquele momento o status de “cinema novo”, excluídos desse conceito estavam, além de Anselmo Duarte, com O pagador de promessas, o ciclo dos filmes de cangaço. O cinema popular brasileiro, defendido pelo cinema novo, distanciou-se da estética narrativa clássica, o que certamente contribuiu para afastar, ainda mais, o público brasileiro do cinema nacional, habituada à narratividade imposta desde os primórdios do cinema pela indústria cinematográfica dos EUA. O naturalismo do cinema hollywoodiano se encontrava muito distante do nacional-popular do movimento cinemanovista.

O cinema brasileiro dos anos 1960 retratava os conflitos e as contradições da identidade brasileira e as estruturas sociais, aspectos tão contundentemente visualizados pelos filmes do período, a ponto de o cinema novo mais provocar a rejeição do que se fazer compreendidos pelos espectadores do cinema comercial. Um marco estético, considerado pelos agentes da crítica de cinema, mas um fracasso juntamente ao público espectador médio do cinema. No entanto, a significação cultural do cinema novo foi além da década de 1960, pois se constitui em uma forma de cinema nacional que criou uma identidade audiovisual para o Brasil. É, atualmente, forte referência de um universo audiovisual que contempla sertão, favela e periferia, temáticas e narrativas importantes para a tradição do cinema brasileiro.

O ciclo do cinema novo, que existiu durante toda a década de 1960, não foi o único movimento de cinema acontecido nesses anos no Brasil. Outras formas de expressão audiovisual tiveram lugar na década e ocorreram paralelamente à existência do cinema novo. Inclusive, produções mais alinhadas à orientação comercial da indústria cultural, despreocupadas com rupturas estéticas, tiveram espaço nesses anos 1960. Mesmo no interior do movimento cinemanovista, algumas lutas se travaram no campo da linguagem e narrativa dos filmes. Além disso, o contexto social e político da segunda metade da década de 1960 foi fundamental nessa divisão interna do movimento.

Além do cinema novo, surgiu, ao final da década, o “cinema marginal”, dito udigrúdi (a palavra é uma piada com a estética underground, tão em voga com a contracultura do final dos anos 1960). Tais filmes radicalizavam ainda mais o cinema brasileiro do período porque não se vinculava a temáticas ou cânones formais específicos. Era produzido na área da chamada Boca do Lixo de São Paulo, onde posteriormente iria florescer a vertente paulista da pornochanchada nacional, nos anos 1970. Tratava-se de produções precárias sob o ponto de vista do aparato de produção, temática marginal e anárquica, e uma linguagem e narratividade não-linear. São dessa época alguns clássicos como O bandido da luz vermelha (Rogério Sganzerla, 1968), Matou a família e foi ao cinema (Júlio Bressane, 1969), A margem (Ozualdo Candeias, 1967), Meteorango Kid, herói intergalático (André Luiz Oliveira, 1969), Bang bang (Andrea Tonacci, 1971), Sem essa, Aranha (Rogério Sganzerla, 1970) e Os monstros de Babaloo (Elyseu Visconti, 1971), entre outros.