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BREVE HISTÓRIA SOCIAL DO CINEMA

2 Formação do subcampo do cinema

3.2 O habitus narrativo não linear e a linguagem da opacidade

O subcampo do cinema, por meio do cinema industrial, narrativo, clássico, que floresceu em Hollywood e em outros lugares pelo mundo, existe vinculado fortemente ao campo da indústria cultural, mas, por via indireta, guarda relações com os movimentos estéticos de escolas cinematográficas, cujo padrão narrativo se afasta e se contrapõe ao cinema clássico, vinculando-se ao campo da produção erudita. Em outras palavras, já na década de 1920, escolas cinematográficas se opunham à narratividade clássica construindo padrões narrativos de oposição, uma contraposição ao modelo hegemônico do habitus narrativo, especialmente em países europeus.

Na década de 1920, registram-se pelo menos três grandes movimentos: na Rússia (já como a URSS), com o construtivismo da chamada Escola da Montagem; na Alemanha, com o expressionismo; na Espanha, com o surrealismo. Posteriormente à segunda guerra mundial, outras escolas aparecem: na Itália, com o neo-realismo; e na França, com a nouvelle vague. São considerados os mais importantes movimentos de renovação estética no subcampo do cinema.

De um modo geral, todos esses movimentos se opuseram à narratividade clássica em três aspectos fundamentais:

Nos modos de produção, pois são ciclos cinematográficos (que se constituem como doxas,

em uma terminologia de Bourdieu) de países nos quais os seus respectivos subcampos do cinema não dispunham dos recursos financeiros, tecnológicos e materiais comparáveis à indústria de cinema hegemônica, produzida em Hollywood.

Na narrativa e na linguagem de seus filmes, posto que recusavam os aspectos narrativos

do cinema naturalista hollywoodiano, como a linearidade dos enredos; a concepção maniqueísta dos personagens divididos em heróis / mocinhos, de um lado, vilões / bandidos, de outro; a forçosa identificação desses com os públicos espectadores; a utilização da montagem meramente como recurso para dar sequência à linearidade. Trata-se de uma recusa ao habitus narrativo perpetrado pelo subcampo do cinema.

Na relação com o público médio de espectadores de cinema. Trata-se de movimentos

intelectuais, alguns funcionando como apêndices de movimentos artísticos de vanguarda nas artes plásticas, que não tinham preocupação de se fazerem inteligíveis para as camadas médias do público, que considera o filme naturalista narrativo produzido em Hollywood como expressão de cinema “de qualidade”. Sendo, numa acepção bourdieusiana, movimentos internos do subcampo, nos quais os agentes produtores / diretores realizavam filmes para seus iguais; novamente o conceito de doxa está presente, vinculando-se ao campo da produção erudita ou ao campo artístico e não ao campo da indústria cultural. Claramente, observa-se uma divisão de poder e luta simbólica no interior do subcampo do cinema.

São características estéticas dos movimentos citados:

Construtivismo / Escola da Montagem soviética: surgida nos anos 1920, como parte do

projeto soviético de propaganda do regime comunista, a dogmática da Escola da Montagem preconizava o aspecto absolutamente primeiro da montagem como fundamentação da narrativa, de onde o sentido e o significado do filme emanam. O objetivo da montagem não é o de dar sequência ao desenvolvimento do enredo, mas sim despertar o espectador para que este busque a verdade. A montagem visa possibilitar ao espectador o questionamento e a reflexão, tornando-o criticamente consciente do mundo real. O encouraçado Potemkin, de Sergei Eisenstein, é a obra de referência dessa escola.

Expressionismo alemão: os cânones expressionistas determinam que a construção

procura expressar visualmente subjetividades interiores dos indivíduos, materializadas em cenários não naturalistas, não realistas, que juntamente com a fotografia produzem expressões plásticas distorcidas, afastando-se da visualidade clássica, reforçadas em atuações igualmente não naturalistas dos atores. Trata-se de uma estética que repercutiu e influenciou o cinema hollywoodiano clássico, quando cineastas oriundos do movimento migraram para o cinema norte-americano na década de 1940, imprimindo ao subgênero do filme policial, o noir, a concepção visual do expressionismo nos filmes narrativos hollywoodianos. O gabinete do doutor Caligari (Robert Wiene, 1919) e Nosferatu (Murnau, 1922) são clássicos do expressionismo alemão. Há fortes vinculações com o campo artístico.

Surrealismo na Espanha: pode ser entendido como a expressão cinematográfica mais

radicalmente desatrelada da narratividade clássica, com alinhamento à arte de Salvador Dali que inspirou o maior nome do movimento, Luis Buñuel. Este cineasta realizou filmes, sobretudo nos anos 1920, que renegavam o real, tendo na montagem o recurso fundamental de descontextualização da relação entre imagem naturalista e tempo linear, cara ao cinema clássico. Ao invés disso, o surrealismo desconstrói o sentido de continuidade temporal e da lógica racional narrativa. Suas imagens metaforizam os aspectos subjetivos, as pulsões do inconsciente, estimulando que o espectador construa o sentido e o significado das imagens. Por isso, não há enredos lineares, apenas imagens que se sucedem, emergindo do inconsciente. O surrealismo, recorrentemente, é identificado com a linguagem dos sonhos: caótica e descontínua. Um cão andaluz (Buñuel, 1928) é o paradigma, embora o cineasta tenha realizado filmes mais ou menos surrealistas ao longo de sua bem-sucedida carreira, que se estendeu até os anos 1970. Também aqui são percebidas relações profundas com o campo artístico.

Neo-realismo italiano: surgido nos anos 1940 como uma resposta artística e estética do

cinema italiano à realidade social adversa vivenciada pela Itália, durante e depois da segunda guerra mundial, este movimento cinematográfico inaugura a fase moderna do cinema europeu. Entre suas principais características narrativas, a linguagem dos filmes neo-realistas buscava, através da fotografia e da montagem, expressar o tempo real da dor e

sofrimento causados pelos tempos de guerra. Para isso, havia o princípio do plano- sequência, que objetivava filmar um real sem cortes (edição e montagem), como recurso de linguagem recorrente nos filmes. Além disso, as obras neo-realistas eram filmadas em cenários naturais, totalmente fora de estúdio, com atores amadores em sua grande maioria. O neo-realismo recusava a conclusão tradicional dos filmes clássicos, com finais felizes e definitivos dos enredos. Roma, cidade aberta (Roberto Rossellini, 1945) e Ladrões de Bicicleta (Vittorio De Sica, 1948) são duas das maiores referência neo-realistas.

Nouvelle vague francesa: o princípio fundamental é o da liberdade narrativa. Isso

equivalia filmar sem muitas relações com um roteiro pré-estabelecido, o que distanciou os filmes franceses pertencentes a este movimento, nos anos 1950 e 1960, do cinema dito comercial. Em termos de fotografia, o uso da câmera na mão. Na interpretação, era facultado aos atores a improvisação, sobretudo porque as temáticas da nouvelle vague exploravam com freqüência relações interpessoais, aproximando-se dos questionamentos existenciais do período pós-guerra. È claramente um cinema intelectual, de idéias, profundamente autoral, que elevou a figura do diretor / cineasta ao status de “autor cinematográfico”. Hiroshima mon amour (Alain Resnais, 1959) e Alphaville (Jean Luc Godard, 1965) são, entre outras, obras eloquentes do movimento da nouvelle vague.

Todos são movimentos que influenciaram a narrativa cinematográfica por um viés intelectual, que se distinguia e se distingue, atualmente, do cinema comercial que, majoritariamente, é referência e padrão para os espectadores. Esses ciclos de renovação estética estiveram sempre presentes ao longo do século XX, com variações e derivações de maior ou menor visibilidade, que ocorreram em outros países, inclusive no Brasil, com o cinema novo, na década de 1960, que buscou inspiração nas obras do neo-realismo italiano e na nouvelle vague da França, conforme será demonstrado mais adiante.