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CAMPO, HABITUS E CINEMA: REFERENCIAL TEÓRICO E METODOLOGIA

2.1 Teoria disposicionalista: a crítica a Pierre Bourdieu

Sob o ponto de vista da recepção do produto cultural, Bourdieu define que a relação entre produção e consumo é mediada pela riqueza e o gosto a ela relacionado, o que traz como consequência que escolhas e preferências estéticas entre os diferentes grupos sociais são mutuamente distintas e distintivas uns em relação às outras em função do capital cultural adquirido na socialização dos agentes. Tal percepção distingue hierarquias reconhecíveis entre o “gosto e a cultura legítimos”, por um lado, e “gosto bárbaro”18

(BOURDIEU, 2007, p.34) e cultura média”, por outro. Além disso, as escolhas se dão distintivamente: para as classes populares, o critério de julgamento é embasado por pressupostos éticos e morais, enquanto para as classes cujos agentes são dotados de maior capital cultural, o critério de julgamento é estético.

Trata-se, sem dúvida, de uma visão estrutural, conjuntural e institucional da sociedade formada por classes sociais, sendo uma percepção passível de questionamentos por parte da sociologia, a exemplo da obra mais recente de Bernard Lahire, mais afeita à ação criativa individual (LAHIRE, 2006) e pelos estudos de recepção alinhados aos estudos culturais ingleses, norte-americanos e latino-americanos, sobretudo em Staurt Hall (HALL, 2003) e Néstor García Canclini (CANCLINI, 1995). Estes reforçam o papel político do consumo, enfatizando a manifestação das identidades subordinadas (Hall) e periféricas (Canclini) no sentido da resistência à chamada cultura dominante e da valorização da dita “baixa cultura”.

No entanto, as categorias de Bourdieu permanecem válidas, uma vez que, mesmo nas sociedades contemporâneas, aspira-se que as classes socialmente menos favorecidas tenham acesso, por meio de políticas públicas, à chamada “alta cultura”. A formação de platéia em teatro, cinema e música nada mais é do que uma tentativa de trazer para a esfera popular um consumo qualificado por especialistas como de uma esfera superior: o teatro

18 BOURDIEU, P. A distinção: crítica social do julgamento. 1. ed. São Paulo: Edusp; Porto Alegre: Zouk, 2007.

shakespereano sendo representado nas ruas das grandes cidades, o acesso incentivado em cinemas mantidos pelo poder público com ingressos de baixo valor ao cinema de autor europeu, a realização de concertos de música clássica em parques etc. É claro que, paralelamente a isso, uma gama de ações oriundas igualmente de políticas públicas permitem o reconhecimento e a valorização da produção cultural advinda de universos sociais populares. Uma perspectiva não elimina a outra. E certamente no senso comum, no imaginário popular ou nas estruturas mentais de muitos indivíduos de variados estratos sociais ainda persistem vivamente categorias distintivas e distintas que separam “cultura superior” de “cultura inferior”.

A teoria disposicionalista preconizada por Bernard Lahire (LAHIRE, 2003; 2004) destaca o estudo da ação social, a partir do conhecimento da multiplicidade e de níveis consideráveis de heterogeneidade no universo das disposições incorporadas pelos agentes em seus diversos processos de socialização. Assim, o trabalho desenvolvido por ele pode ser compreendido como extensão e desdobramento da teoria praxiológica difundida por Pierre Bourdieu, uma vez que Lahire parte de conceitos e categorias já desenvolvidos por Bourdieu, como campo e habitus, redimensionando-os para dar conta das distinções sociais da sociedade comtemporânea, múltipla e multifacetada. Esta diferenciação social é tema comum e recorrente na sociologia. Para atingir tal objetivo, Lahire destaca a necessidade de deixar de lado a grande teoria de lado, utilizando os conceitos com cuidado para a compreensão do detalhamento dos aspectos individuais dos agentes sociais.

Assim, embora reconheça a importância da divisão da sociedade por classes sociais, Bernard Lahire vai dar ênfase ao estudo da sociedade formada por indivíduos, deixando a problemática da divisão da sociedade em classes sociais em segundo plano – embora, em A cultura dos indivíduos destine um capítulo para acada classe social-, uma vez que o autor está mais interessado nas tendências individuais que resaltam em escolhas pessoais e percursos individuais. Lahire acredita que o indivíduo não é objeto de estudo restrito apenas ao campo da psicologia, ao mesmo tempo em que a sociologia, enquanto ciência social, não deve abordar apenas as questões coletivas como referências de estudo. Sua tese é a de que a experiência social “fabrica” o indivíduo, definindo-o, sem, entretanto, engessá-lo como

agente criativo de seu próprio destino. Sendo assim, o interesse teórico do autor se debruça sobre as questõs interiores desse indivíduo - não por acaso, Lahire utiliza a nomenclatura de indivíduo ao invés de agente, no sentido de ressaltar as caracterísitcas subjetivas de cada um -, no percurso da homogeneidade para heterogeneidade encontrados na esfera da diferenciação social

Para além do interesse nas trajetórias individuais, Bernard Lahire direciona seu olhar para casos específicos e atípicos de indivíduos considerados marginais em grupos sociais populares (LAHIRE, 2004), considerando que o conceito ou as categorias relacionadas às classes sociais existem objetivamente, mas as representações simbólicas de tais classes desaparecem quando se observa certas escolhas e padrões de comportamento que destoam de um habitus originário de determinada classe social. Considera ele que há uma multiplicidade de propriedades sociais na subjetividade individual relativas à estética, à moral, à religião etc. Para o sociólogo, essa multiplicidade de variáveis tendem a problematizar a análise sociológica que se dedica apenas às categorias de classes sociais, uma vez que as condições de socialização dos individuos são mais complexas.

As variadas esferas do mundo social tendem, por vezes, a serem contraditórias quando vistas em um indivíduo, determinando que a explicação para a ação daquele agente extrapole o mero habitus de classe. Assim, as diversas esferas simbólicas repercutem e são representadas diferentemente, de acordo com um grande número de variáveis e não apenas em relação à classe social a qual o indivíduo pertence, incluindo idade, gênero, posições religiosas e políticas etc. Tudo isso, conjuntamente, explica a visão de mundo e as práticas cotidianas dos indivíduos. São o que o autor chama de variações individuais ou diferenças intra-individuais, que ora resultam em dissonâncias intra-individuais, ou seja, trajetórias individuais improváveis, quando se observa o universo ou classe social a qual esse indivíduo pertence.

Enquanto Pierre Bourdieu define o habitus como um sistema de disposições, Bernard Lahire vai considerá-lo apenas como disposições (o produto resultante do social incorporado), reconhecendo, entretanto, como Bourdieu, que essas disposições são

duradouras, levando tempo considerável para se constituir. No entanto, embora duradouras, são mutáveis porque, em certos casos, podem sofrer atualizações ou flexibilizações. Isso explica a razão pela qual indivíduos socialmente próximos na escala social podem até mesmo realizar escolhas estéticas diferenciadas entre si sobre qualquer aspecto ou esfera da vida social, constituindo e construindo identidades individuais, para além do pertencimento de classe, embora o considerando. Em Lahire, os indivíduos fazem parte de grupos sociais, mas não estão circunscritos exclusivamente a esses.

As variações inter e intra-individuais dizem respeito às múltiplas percepções e apreciações contidas nas práticas culturais dos indivíduos, consequências das disposições (habitus) adquiridas nos processos de socialização, que irão determinar as diferenças intra-classes (individuo) e inter-classe, em função de trajetórias de vida distintas. Lahire admite que há condições de socialização que definem um padrão heterogêneo nas diversas classes sociais, recusando a homogeneização nas socializações das diversas classes sociais, mas reconhecendo que o habitus, em um sentido bourdieusiano, é mais adequado para compreender os extremos da escala social (ricos e pobres). Para o autor, as classes médias ficam à mercê de disposições muito mais flexíveis porque, eventualmente, transitam em esferas do universo social ora mais próximo dos dominantes ora dos dominados, definindo um padrão mais diverso de práticas culturais.

Se Bourdieu já definira o habitus não apenas como dimensão de certa reprodução social, mas como possibilidade da expressão individual, Lahire igualmente reconhece que as disposições individuais supõem alguma coerência entre a classe social de pertencimento e a prática cultural a ela relacionada, embora admita que não haja, necessariamente, tal correspondência. Os indivíduos, para Lahire, possuem internalizadas subjetivamente diversas classes sociais e têm noção da “hierarquia” social entre estas, mas podem adotar padrões distintos de seu habitus de classe, gerando disposições diferentes para o consumo, perfis culturais dissonantes e distinções intra-classes. Este é o mecanismo de funcionamento das disposições sociais nos indivíduos, que permite compreender a razão pela qual há variações individuais no interior de um mesmo grupo. Claramente, essas

disposições flexíveis e mutáveis não se dão ao acaso, sendo resultado de processos de longo prazo.