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CAMPO, HABITUS E CINEMA: REFERENCIAL TEÓRICO E METODOLOGIA

2.3 Estudos culturais

Em um passo adiante com relação ao tratamento teórico destinados à figura do espectador, o modelo dos Estudos Culturais ingleses, a partir do conceito de hegemonia de Antonio Gramsci, situa os meios de comunicação no centro da sociedade moderna. Os estudos culturais admitem haver um sistema cultural dominante que se manifesta e atua pela interposição dos meios de comunicação, com atitudes, usos e costumes dos agentes sendo afetados pelo sistema. Assim como propunha a Escola de Frankfurt (HORKHEIMER; ADORNO, 1982), os conteúdos midiáticos são ideologicamente codificados e guardam um sentido preferencial.

No entanto, o avanço teórico proposto pelos estudos culturais ingleses em relação aos receptores concentrou-se, basicamente, nos usos que os diversos segmentos sociais (por classe, etnia, gênero) fazem da programação televisiva. Sobre a recepção de filmes, o modelo codificando / decodificando, sustentado por Hall (2003), pelo menos no caso do cinema, não dá conta, completamente, da particularidade da relação entre o filme e seu espectador. Assim, pensando numa realidade do cinema no Brasil, que, sob o ponto de vista da estruturação de campo transnacional, é periférico no sentido da existência de um padrão cultural hegemônico, oriundo dos EUA, são os estudos culturais latino-americanos que fazem a articulação com a teoria praxiológica de Bourdieu, através das pesquisas empíricas coordenadas por Néstor García Canclini, em torno da temática do consumo cultural na América Latina.

Há entre os dois autores convergência teórico-metodológica (o interesse em aferir empiricamente pressupostos teóricos e vice-versa). Ambos admitem a existência e hegemonia do padrão cultural hegemônico, mas Canclini, através da categoria de “americanização dos espectadores” (CANCLINI, 1995, p. 175-199), posiciona-se politicamente para contestar tal estado de coisas, definindo que ações podem ser

desenvolvidas no sentido de reversão desse quadro, uma vez que há uma tradição de cinema em países como México e Brasil, que construíram um imaginário próprio de representações das culturas locais entre os espectadores de cinema. Bourdieu, em seus últimos anos de vida, também se alinha à perspectiva culturalista, pelo menos no que diz respeito à crítica a hegemonia midiática norte-americana19 (BOURDIEU, 1999).

Os estudos culturais latino-americanos avançam na reflexão sobre a questão espectatorial no cinema, sobretudo quando se pensa na existência de um espectador periférico latino- americano. Tal agente é aquele situado geográfica e culturalmente na América Latina, região sistematicamente ocupada pelo produto audiovisual gerado na indústria cultural norte-americana. Sobretudo, em três países da região latino-americana encontram-se cinematografias já de longa tradição (Brasil, Argentina e México), com registro de ciclos e fases de produções nacionais em cada um desses. Alguns desses ciclos, inclusive, contaram com forte adesão dos públicos espectadores locais, a exemplo do que aconteceu no Brasil com o período do gênero chanchada, na década de 1950, e no cinema mexicano, entre os anos 1940 e 1950.

Néstor García Canclini apresenta a categoria de “americanização dos espectadores” como forma de compreender e sintetizar o processo pelo qual o espectador do subcontinente latino-americano, sobretudo em países como México, Brasil e Argentina recepcionam e consomem a produção cinematográfica hollywoodiana20. Ao longo do século XX, nos três países, os espectadores oscilaram, por um lado, entre a adesão total ao habitus narrativo do filme hollywoodiano, e por outro, a uma considerável flexibilização desse habitus narrativo hollywoodiano, incluindo o consumo de filmes nacionais, ainda que os ciclos de sucesso comercial nesses países remontem à inspiração narrativa consagrada pelo cinema de Hollywood, pois, é importante destacar, que o habitus narrativo possui duas acepções: a primeira diz respeito ao cinema comercial produzido em Hollywood; a segunda diz respeito

19 BOURDIEU, P. Questions aux vrais maîtres du monde. L’Humanité (13.10.1999), Libération (13.10.1999) et Le Monde (14.10.1999).

20 Ver Canclini, N. G. Consumidores e cidadãos – conflitos multiculturais da globalização. O livro é resultado de extensa pesquisa de recepção e enfatiza o consumo cultural, o cinema e outros meios de comunicação incluídos, na América Latina, sobretudo em países como Brasil, Argentina e México.

ao cinema produzido em qualquer parte do mundo, cuja inspiração seja a narrativa hollywoodiana.

A partir de estudo com os espectadores de filmes no México, Canclini conclui que tal espectador prefere um tipo de filme de puro entretenimento, ou seja, opta pela produção mais comercial, na qual narrativa e linguagem são submetidos a um ritmo de edição de imagens mais intenso, seguindo uma típica estética do filme de ação hollywoodiano, que induz à fraca concentração no filme. O autor se depara com o espectador / consumidor mais interessado no ritmo da narrativa e menos na trama.

O processo de “americanização” do espectador em curso nos países da América Latina, segundo Canclini, atingiu aqueles cinemas nacionais de forte tradição na cultura cinematográfica (Brasil e México). É verdade que o espectador médio de cinema, nesses países, é o grande consumidor do filme hollywoodiano, expressamente comercial, mas admite existir uma considerável demanda por filmes que tratam de problemas sociais contemporâneos, que identifica uma parcela minoritária do conjunto dos espectadores de cinema, para os quais o entretenimento mais digestivo não é a única motivação pela qual os agentes vão ao cinema. E isto se deve à tradição cultural, inclusive popular, do cinema brasileiro e mexicano.

Muito antes do surgimento da televisão, o subcampo do cinema, por meio de seu habitus narrativo, formou-se e firmou-se ao longo do século XX como o espaço social do lazer, por excelência, mas não apenas do mero entretenimento social, pois o cinema, sobretudo o cinema hollywoodiano, é o responsável por certos atributos para além dessa simples qualificação. O cinema, no passado, era considerado como uma atividade de entretenimento tradicional, sendo quase única. Atualmente, outras alternativas são proporcionadas aos consumidores.

3 Aplicação do conceito de campo à realidade do cinema