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O CINEMA NO BRASIL NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO

2.2 As lutas simbólicas no subcampo do cinema brasileiro contemporâneo

Orientado pela lógica da indústria cultural predominantemente ou hegemonicamente, que se configura e se traduz pela existência do sistema industrial-comercial de circulação de bens culturais audiovisuais voltados para o mercado. Trata-se de uma indústria cinematográfica, ou melhor, audiovisual, com três vetores bem definidos, o da produção, da distribuição, e da exibição. Paralelo a esse último pode-se perceber a existência de um quarto elemento, que é o consumo. Apesar de ser um subcampo orientado pela lógica da indústria cultural, uma outra co-existe com essa, a saber, aquela que segue os cânones do que o campo artístico considera como de qualidade artisticamente superior, e isso inclui obras, artistas (cineastas) e escolas estéticas específicos. Essa segunda lógica está identificada como não propriamente voltada para o mercado.

Em função disso, indica-se a existência no subcampo do cinema de uma luta entre essas duas tendências, onde, no que se refere à esfera comercial, é logicamente vencedora a

primeira, havendo pouco espaço de exibição para a segunda. A primeira é voltada para os grandes públicos, sendo isso um objetivo. A segunda lógica não busca a adesão dos espectadores, necessariamente. É uma opção estética e pode ser desejo de seus produtores que os grandes públicos não os vejam porque estes podem supor que o público não os entenda. Então, a luta, no caso, se situa na esfera daquilo que poderia se entender como “o que o cinema deveria ser”.

A primeira luta

A regra geral, que admite exceções, determina que a lógica da indústria cultural no subcampo do cinema situado historicamente, o cinema narrativo hollywoodiano como um padrão hegemônico a ser seguido, por um lado; e a ser combatido, por outro. Bem entendido, o cinema narrativo hollywoodiano e não o cinema norte-americano em sentido amplo. Há uma distinção entre um e outro.

Entenda-se como “hollywoodiano” aquele cinema produzido em Los Angeles que se encontra situado no cerne das estruturas de produção, distribuição e exibição audiovisual. São aqueles filmes percebidos pelas diversas categorias de agentes do subcampo como produtos de consumo, aí incluídos os espectadores. Hollywood é o centro do cinema norte- americano, mas não é todo o cinema norte-americano. Nos EUA, há tendências não- hollywoodianas, nitidamente minoritárias, e que também se mantêm, no subcampo, em estado de luta com o cinema industrial hollywoodiano.

Cinema independente é a expressão utilizada, no subcampo do cinema, para designar aqueles filmes desvinculados do sistema de grandes estúdios, seja no pólo da produção quanto na distribuição e exibição. Em conseqüência, é também sinônimo de baixo orçamento. Eventualmente, alguns desses filmes conseguem alcançar números de bilheteria que, quase sempre, são restritos a filmes pertencentes a grandes estúdios, por serem capazes de mobilizar investimentos em distribuição e divulgação.

Ocorre que a ocupação majoritária do mercado exibidor internacional de cinema, no Ocidente, é realizada pelo cinema de grande orçamento produzido em Hollywood. Ou seja, em um universo bastante extenso e até heterogêneo no que diz respeito à narrativa

cinematográfica e aos custos de produção, é o produto norte-americano de grande orçamento de produção e distribuição que consegue a melhor e maior ocupação no mercado, gerando pouco espaço de exibição para filmes norte-americanos de produção independente, para as produções brasileiras, européias e latino-americanas, que quase sempre não conseguem exibição comercial de grande circuito.

O cineasta Walter Salles, diretor do filme Central do Brasil, estabelece distinções entre os dois tipos de cinema – o chamado filme comercial hollywoodiano e o filme independente e alternativo:

O panorama do cinema independente é preocupante. Quando o filme do James Gray, a comédia romântica Two Lovers, os dois filmes do [Steven] Soderbergh sobre [Che] Guevara e estréia na direção de Charlie Kauffman [Synecdoche, New York] não encontram distribuição nos Estados Unidos, o sinal vermelho acende. É um lado da questão. É necessário entender que essa crise não atinge só um país, mas atravessa fronteiras. Resta saber se é momentânea ou se vai aprofundar nos próximos anos. Tenho uma posição pessoal em relação a isso. A grande pergunta é: para que o cinema é necessário? Se você parte do pressuposto que o cinema é, antes de tudo, um instrumento de conhecimento do outro e uma ferramenta que possibilita a existência de uma memória coletiva. Então, chega à conclusão que a quantidade de público não pode ser a referência pela qual se julga um filme. A questão do primeiro fim de semana é irrelevante no que diz respeito a filmes que estão aí para falar e oferecer o reflexo de um país e de uma realidade num dado momento de sua história. Então, parte da situação que a gente está vivendo é determinada pela aceitação dos padrões norte-americanos de aferição do que é um sucesso cinematográfico ou não. (GIANNINI, 2008).

Na mesma direção caminha o pensamento de tantos outros cineastas de carreira não- hollywoodiana, a exemplo de Wim Wenders, diretor de Paris, Texas (1984) e Asas do desejo (1987). Segundo notícia publicada no jornal Folha de S. Paulo (2008), sobre palestra proferida pelo diretor alemão na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em Porto Alegre, diante de 1.300 pessoas, Wenders “fez a defesa” de:

um cinema "com forte sentimento de pertencimento local", saído de culturas específicas, distinto de uma produção hegemônica que narra histórias "que poderiam acontecer em qualquer lugar", filmados em um mundo sem identidade, "diante de uma tela azul"... (...) ... "Esse tipo de produção internacional anônima me entedia à morte". (CARIELLO, 2008).

É uma luta clássica no interior do subcampo: o cinema comercial contra o cinema da alternativa estética. Assim como o cinema novo discriminou Anselmo Duarte, no início dos anos 1960, o francês Claude Lelouch, diretor do clássico francês Um homem, uma mulher (1966), filme de forte repercussão junto aos espectadores na década de 1960, sustentou, quando esteve no Brasil por ocasião do Amazonas Film Festival, essa distinção presente no subcampo, e da qual ele próprio foi vítima.

Mas Lelouch nunca fez um filme admirado por críticos. Salvo raras exceções, e o recente Crimes de Autor está entre elas, seus trabalhos faziam ou não sucesso com o público, mas invariavelmente recebiam pedradas da imprensa especializada. Como a turma da Nouvelle Vague era e continua sendo uma espécie de farol para os críticos, natural que ele deixe claro que luta em outra frente: "é bom estar em guerra com a crítica". Sobre a Nouvelle Vague, encerrou o assunto de maneira contundente: "Foi bom porque eles ensinaram como não se fazer filmes". E acrescentou, batendo ainda mais no cadáver: "Hoje em dia, ninguém mais lê a Cahiers du Cinema", referindo-se à revista que abrigava os críticos que deflagrariam o movimento fazendo filmes nos anos seguintes aos seus primeiros escritos nas páginas da revista. (ALPENDRE, 2008).

A segunda luta

No subcampo do cinema há outros embates, para além da disputa – estética e não mercadológica - do cinema não propriamente voltado para o mercado contra o cinema narrativo hollywoodiano. Uma dessas disputas situa, em um pólo, o cinema produzido fora dos EUA, ou seja, os cinemas europeus, os cinemas latino-americanos, os cinemas asiáticos, os cinemas africanos contra o cinema industrial produzido em Hollywood, em pólo oposto.

Ao contrário da primeira luta, essa segunda luta não é exatamente estética e sim primordialmente mercadológica, com o objetivo de tentar conquistar espaços juntamente aos agentes espectadores dentro de seus mercados internos. Em outras palavras, os agentes produtores de cinema da Europa, América Latina (o cinema brasileiro incluído), Ásia, África buscam que seus produtos sejam reconhecidos e recebem adesão dos espectadores locais. Os mercados de cinema nessas regiões são, com algumas exceções, majoritariamente ocupados pelo cinema hollywoodiano35.

Nessa segunda luta é possível ainda incluir no pólo minoritário os cinemas da Inglaterra, Austrália e Nova Zelândia, posto que também possuem seus mercados ocupados pelo cinema hollywoodiano. A única ressalva a ser feita, nesse caso, é que a língua que se fala nesses países é o inglês, tornando seus cinemas nacionais algo mais próximo do cinema hollywoodiano, e, por extensão, mais possivelmente identificados pelo grande público como cinema norte-americano, uma vez que se trata de produções faladas em inglês. Estabelece-se, então, o confronto da exibição comercial das produções brasileiras contra a produção estrangeira, notadamente norte-americana, no mercado interno (nacional).

Walter Salles, que já dirigiu filme nos EUA, retorna à questão do cinema independente e alternativo, que, segundo ele, deve ser considerado de forma diferenciada no universo do cinema, sobretudo quando se coloca o cinema hollywoodiano como parâmetro:

O fato de que o filme do Alain Resnais, "Medos Públicos em Lugares Privados", esteja há mais de um ano em cartaz no Brasil, e o fato do filme da Julie Gavras, "A Culpa É do Fidel", esteja se aproximando dessa marca, são uma prova viva que a cinefilia brasileira e o interesse por filmes que respeitam a inteligência do espectador não morreram. Provam que há um espaço de resistência e sobrevivência para esse tipo de cinema, desde que os filmes dêem ao público o que ele esta esperando. O espaço para esse tipo de cinema não morreu. Passa a impressão que tem um problema estrutural grave à frente. Tenho varias suposições sobre o porquê esta acontecendo e o que precisaria ser feito para modificar o estado de coisas, mas entraríamos na terra de como salvar o cinema brasileiro, o que não parece ser o caso dessa entrevista. (GIANNINI, 2008).

Presente ao 13º Cine PE - Festival Audiovisual do Recife, em 2009, o cineasta Greco- francês Costa-Gavras, diretor do clássico Z (1969) e de Desaparecido – um grande mistério (1982), este realizado por estúdio norte-americano, foi entrevistado pela Folha de S. Paulo (2009). Diretor de filmes abertamente políticos e engajados ideologicamente, o diretor relativiza o papel do cinema como veículo político-ideológico ao assumir que se trata de um “espetáculo”:

É preciso guardar certas liberdades para o cinema. Cinema é espetáculo. Ninguém vai ver um filme como quem vai ter uma aula na universidade ou ouvir um discurso num comício político. As pessoas vão para amar, odiar, chorar etc., sentimentos importantes que definem a nossa vida. Eu venho dessa tradição do cinema em que se falava dos seres humanos de um modo espetacular. De uma escola de grandes filmes que podiam ser ao mesmo tempo populares. Como “O Encouraçado Potenkim” [1925,

dirigido por Sergei Eisenstein], que exige cultura política, porque é um filme que trata de homens frente a uma situação difícil. Bertolt Brecht fez um teatro que fala de política, mas que também trata de sentimentos. (GUIBÚ, 2009).

A terceira luta

No entanto, há também no interior do subcampo do cinema, lutas internas entre os agentes locais do segmento da produção audiovisual, pelo acesso à distribuição de incentivos fiscais, por meio de leis específicas, que possibilitam o incremento da produção nacional, e em ultima analise permite existir um embrião de indústria cinematográfica no Brasil.

As grandes empresas estatais brasileiras, como a Petrobras, e instituições de fomento e desenvolvimento, como o BNDES, respondem por grande parte dos recursos destinados à produção. Como se trata de concorrência, é comum essas empresas privilegiarem artistas e projetos de produção situados no eixo Rio - São Paulo, porque, segundo o julgamento da empresa, possibilitam melhor retorno para as suas marcas em publicidade e promoção.

Há ainda, os recursos oriundos de leis estaduais de incentivo, que deveriam possibilitar um deslocamento de recursos do eixo RJ / SP, para outros estados, mas que, ao final, termina sendo problemático porque esses estados avaliam que a produção situada no Rio e São Paulo costuma trazer mais promoção para os estados periféricos, sobretudo no que diz respeito ao turismo.

Um exemplo hipotético é o do diretor-produtor local, que deseja realizar filme passado em um estado do Nordeste, com enredo ambientado no Nordeste, com grande parte de atores e técnicos locais, mas que é preterido em favor de um diretor de renome nacional, funcionário de uma grande empresa de televisão, que filmará história também ambientada no Nordeste, com nomes televisivos no elenco, termina por conseguir recursos desse estado mais facilmente. É o que reclama o cineasta pernambucano Cláudio Assis, inclusive com relação a financiamento para a distribuição do filme:

O cinema brasileiro perdeu muito. Virou cinema de pintar porcelana. O Nordeste que aparece na tela é aquele cacoete, os caras banalizam a nossa cultura, banalizam tudo. Um negócio terrível. Os cineastas hoje ou fazem cinema por culpa, para resolver seus problemas pessoais, psicológicos, ou

então, simplesmente, porque têm dinheiro. Cinema é uma arte burguesa. Muitos fazem cinema sem compromisso com nada, por puro diletantismo. Muitos também não têm compromisso com as próprias idéias, fazem testes para saber se a montagem do filme está correta, mudam o filme em função disso. Quando é que eu vou fazer um filme desse jeito? Você tem que fazer um filme em que você acredite. Se você se respeitar, você vai encontrar mil pessoas que vão gostar de você... Outro problema são essas

majors poderem investir aqui o imposto que elas pagariam por remessa de

lucros. Elas só aplicam em filmes da Globo Filmes ou similares. Não sou contra filme caro, sou contra filme caro com dinheiro público. Acho que deveria haver um teto. Em torno de R$ 3 milhões, R$ 4 milhões. (STYCER, 2007).

Sobre o sistema de distribuição dos filmes, o cineasta é igualmente crítico:

Precisaríamos ter um bom sistema de distribuição de filmes. “Baixio” passou uma semana no Largo do Machado (no Rio) e saiu. Porque o “Homem-Aranha” precisa de mais salas e está chegando o “Shrek”. Um filme entra com 700 cópias. É um massacre. A falta de público dos filmes brasileiros não é culpa dos filmes, não. Isso quando você consegue lançar. Não é todo mundo que consegue. (STYCER, 2007).

Identificam-se, no discurso de Cláudio Assis, algumas lutas no interior do subcampo:

Produção cinematográfica do Sudeste versus Nordeste e outras regiões;  Cinema de maiores recursos orçamentários contra cinema não-comercial;

 Lutas entre agentes criadores do subcampo de capitais simbólicos distintos: arte contra comércio; que representam correntes estéticas opostas, como o filme de características mais narrativas versus o filme de aspectos mais experimentais;  Produtores / criadores de visibilidade nacional contra agentes produtores / criadores

de reconhecimento local.

Lutas que são confirmadas, involuntariamente, por Walter Salles, que considera a distinção – cinema brasileiro comercial e cinema brasileiro independente:

Eu, por exemplo, adorei o ultimo filme do Beto Brant, "Cão Sem Dono", que fez 20 mil espectadores. Isso pode ser pouco, mas acho que o filme em si supera qualquer possibilidade de quantificação matemática. É preciso transcender essas categorias mesquinhas e ver qual é o legado de um filme. Essa é a grande questão: Qual é o legado de um filme, de uma cinematografia? Pra que ela existe? No Brasil, diria que, se há um cinema que está em crise, é o cinema comercial feito aqui. Não é o cinema de autor que o Beto Brant representa. Há uma necessidade de redirecionar

esse debate que parece estar sendo travado à luz de instrumentos que vêm de fora pra dentro. Há também os exemplos que trazem otimismo. (GIANNINI, 2008).

Cineasta com capital simbólico distinto, o diretor de cinema e televisão Daniel Filho, responsável por alguns dos maiores sucessos de bilheteria do cinema brasileiro contemporâneo, e a propósito da repercussão junto ao público do filme por ele dirigido, Se eu fosse você 2, fez considerações sobre o cinema nacional em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, defendendo o cinema comercial e não poupando críticas a colegas cineastas. Para Daniel Filho, o público espectador quer assistir a “filme bem realizado, que diverte, que te completa. E não é só comédia. Se olharmos as dez maiores bilheterias do cinema nacional em dez anos, vamos ver que existe uma variedade de assuntos. Tem duas biografias, 2 Filhos de Francisco e Cazuza; temos Cidade de Deus e Carandiru”.

Se Eu Fosse Você 2 é um cinema de entretenimento, algo que eu sempre

defendi e defendo. As grandes bilheterias do mundo são ocupadas por entretenimento popular. Até 2 Filhos de Francisco, um melodrama, não deixa de ser apoiado em dois astros sertanejos que falam da vida deles e cantam suas músicas de sucesso. Então fica a indagação para nós, que fazemos cinema: o que o público quer ver? Como a gente faz para tirar alguém de casa para ver filme nacional?... (...) ... Eu vejo muitos diretores fazendo filmes e correndo para ver se pegam o festival de Cannes, o de Berlim. “Ah, eu vou pro [festival de] Sundance, eu vou pra não sei o quê”. É uma preocupação muito grande com o exterior. E eu sou o camarada que acredita no ditado: agrade a sua vila que você vai agradar ao mundo. Você tem que agradar aqui, no Brasil. O público quer ver esse filme? Ou é você que quer fazer esse filme? Queremos ser todos Godard e Glauber Rocha? A crítica aplaude esses filmes meio malditos, que têm pouco público. É uma dicotomia entre o que a crítica pensa e o que o público quer ver. (BÉRGAMO, 2009).