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CAMPO, HABITUS E CINEMA: REFERENCIAL TEÓRICO E METODOLOGIA

3.1 O subcampo do cinema

A opção pela escolha da nomenclatura “subcampo do cinema” no lugar de “campo do cinema” possui três implicações: a primeira diz respeito à influência que o universo do cinema sofre do campo da indústria cultural, que, por sua vez, compreende não apenas a atividade cinematográfica, mas também a fonográfica, editorial, televisiva etc.

A segunda implicação é o recorte metodológico decorrente da primeira – vinculação ou influência do campo da indústria cultural -, para fins didáticos porque a abordagem deste trabalho reconhece a relativa autonomia e a especificidade do subcampo cinematográfico, com suas disputas internas que independem totalmente do campo da indústria cultural, funcionando como um microcosmo no interior de um macrocosmo.

A terceira implicação se refere ao recorte histórico que define o subcampo do cinema como espaço majoritariamente nacional, embora não totalmente, uma vez que foi construído ao longo das décadas do século XX como espaço transnacional de repercussões locais, embora com interesses próprios específicos. Afirma Bourdieu:

Por exemplo, as variáveis nacionais fazem com que mecanismos genéricos tais como a luta entre os pretendentes e os dominantes assumam formas diferentes. Mas sabe-se que em cada campo se encontrará uma luta, da qual se deve, cada vez, procurar as formas específicas, entre o novo que está entrando e que tenta forçar o direito de entrada e o dominante que tenta defender o monopólio e excluir a concorrência. (BOURDIEU, 1983, p. 89).

Como se observa, campo em Bourdieu possui um viés histórico por conta de sua formação como espaço social, não sendo apenas e tão somente um conceito ou uma categoria de análise. O campo é o espaço onde se desenvolvem condições de possibilidade e de concorrência entre agentes, estabelecendo-se como idéia de sistema e espaço estruturado de posições. No seu interior há dominação e, consequentemente, dominantes e dominados (agentes produtores de filmes comerciais e agentes produtores de filmes autorais ou alternativos), havendo luta para que haja inversão dessas posições. A disputa gira em torno de um capital que lhe é próprio (a presença no mercado e o capital simbólico que

representa, para além do econômico), mas a disputa entre os agentes objetiva a perpetuação do campo.

Na teoria dos campos, Bourdieu reafirma a existência do habitus, como o sistema de disposições necessarias que permite a ação no interior do campo, uma lógica geral que orienta e organiza seu interior. No caso do subcamp do cinema, o habitus dominante é o do cinema narrativo comercial. Essas disposições (o habitus) são próprias, específicas, duradouras e referenciais do campo. Tal definição de campo e habitus se adequa à realidade social do cinema.

Assim, o subcampo do cinema, percebido nesta tese, é influenciado, embora independente, pela lógica que rege o campo da indústria cultural, sendo mesmo um apêndice deste, embora autônomo e com regras próprias de funcionamento. No entanto, devido a complexidade de sua formação e a diversidade de seus agentes, o subcampo do cinema mantém, ainda que em menor escala, relações com outros campos sociais, para além do campo da indústria cultural, especialmente aqueles contidos no campo maior da produção cultural erudita21, a exemplo do campo artístico. Isto se deve ao fato de que, embora o cinema seja uma atividade de características industriais e comerciais, cujo objetivo é basicamente o entretenimento destinado a muitas camadas sociais, seu processo de legitimação sócio-cultural foi mediado, em grande parte, pela influência que, de alguma maneira, o campo artístico e o campo erudito exerceram (e exercem, ainda que minoritariamente) sobre o subcampo do cinema.

Tal correlação de forças entre agentes sociais no interior do subcampo do cinema acontece, em boa medida, porque esses agentes ora são orientados pelo habitus do campo da indústria cultural ora pelo habitus do campo artístico ou do campo da produção cultural erudita. Ao longo de todos os capítulos desta tese, essa disputa no subcampo estará sendo explicitada porque, de fato, nunca deixou de existir, embora a lógica do campo da indústria cultural quase sempre tenha prevalecido. Todo o campo social existe em função de um habitus. E

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tal estado de coisas não é diferente com o subcampo do cinema, que, ao longo de quase um século de existência, sustenta-se por meio da consagração daquilo que nesta tese é nomeado de habitus narrativo, conforme é abordado no segundo capítulo.

O cinema, como técnica, existe desde finais da última década do século XIX, mas só começa a se configurar como estrutura de campo em meados da primeira década do século XX, com a disputa pelo mercado norte-americano, que nesta época era ocupado majoritariamente pelo cinema francês. Ainda assim, apenas nos anos 1910 é que a narrativa cinematográfica dos filmes de longa-metragem define o subcampo completamente, com o processo de formação se efetivando com a legitimação artística do cinema entre os anos 1910 e 1920. A partir daí, o subcampo do cinema evolui progressivamente alcançando dimensões internacionais.

As categorias e noções de Pierre Bourdieu, abordados na primeira parte deste capítulo, são explicitados e adequados à compreensão da realidade social da atividade de cinema inserido numa lógica do campo da indústria cultural. Tais conceitos servem para o entendimento da atividade do cinema tanto no pólo da produção (onde se configura o subcampo do cinema, com suas lutas entre grupos distintos de agentes) quanto no pólo da recepção, que diz respeito às formas pelas quais os agentes espectadores significam e dão sentido àquilo que lhes apresenta o subcampo cinematográfico.

De acordo com a lógica bourdieusiana de explicação das estruturas sociais e de seus agentes, a pesquisa abrange a realidade estrutural do cinema enquanto campo e o habitus criado pelos agentes do subcampo do cinema conforme suas posições específicas. Neste capítulo observa-se a macro-estrutura do cinema, orientada pela lógica da indústria cultural. Assim, os conceitos mais fortemente presentes são o de campo e habitus, embora estes permaneçam ao longo de toda a tese. As categorias de habitus individual, capital cultural, distinção social, gosto e violência simbólica – desdobramentos teóricos do pensamento bourdieusiano – são inseridas na realidade do subcampo do cinema, de forma mais detida, no decorrer dos capítulos seguintes desta tese.

Esta pesquisa trata do cinema não especialmente como expressão artística, ou seja, o subcampo do cinema é um espaço que contempla a perspectiva de que os filmes de longa- metragem, exibidos em circuito comercial de salas de cinema, são ora expressão artística (em menor escala) ora produtos culturais gerados por uma indústria, mas majoritariamente este estudo compreende o segundo aspecto como sendo o mais forte do subcampo do cinema. E essa ambivalência – indústria e arte – estará muitas vezes como tema de algumas das lutas do subcampo.

Conforme foi abordado anteriormente, considera-se que o valor atribuído às obras de arte decorre de um conjunto de fatores social, histórica e culturalmente condicionados. É essa perspectiva que se adota também neste trabalho com relação ao subcampo do cinema. Assim, todas as vezes que a questão axiológica se pronuncia nesta tese, esta é realizada a partir do entendimento e da percepção dos próprios agentes do subcampo envolvidos.

A noção de campo, válida para a esfera da cultura e da arte, encontrada no pensamento bourdieusiano, proporia, teoricamente, a configuração do subcampo do cinema, centrada basicamente na lutas internas dos agentes da produção artística e cultural por um recurso escasso, com esses agentes ocupando posições distintas e diversas. Assim, um hipotético subcampo do cinema existiria basicamente funcionando na esfera da produção do subcampo, que reúne cineastas, produtores e diretores. Acontece que o universo do cinema apresenta peculiaridades e complexidades que tornam necessário compreender o subcampo no sentido de um sistema de relações mais amplo que extrapola a esfera da produção, adentrando as esferas da distribuição e exibição, por uma vinculação bastante acentuada com o campo da indústria cultural. A explicação é relativamente simples: a razão de muitas das lutas internas entre produtores e diretores no subcampo do cinema está relacionada não apenas à esfera da produção, mas também (e diretamente) às da distribuição e exibição.

O “recurso escasso” em disputa no subcampo pode ser compreendido como a presença no mercado interno nacional do produto nacional, mas não apenas sob o ponto de vista econômico-financeiro que proporciona aos produtores nacionais, mas a dimensão simbólica acarretada pela ocupação desse mercado, em relação aos espectadores brasileiros. Ou seja,

uma produção nacional que torna visível a representação das identidades individuais e coletivas dos diversos espaços e segmentos sociais brasileiros, alcançando aquela máxima defendida pelo acordo geral, oriundos das doxas, nas quais “o cinema deve ser espelho de sua própria realidade, argumento sempre utilizado e presente em qualquer um dos ciclos de cinema nacional, existentes ao longo da formação do subcampo do cinema no Brasil, conforme será visto nos próximos segmentos da tese.

Assim sendo, a estruturação do subcampo do cinema correlata ao conceito de campo de Bourdieu proposta neste estudo deve compreender:

 A primeira, a esfera de produção do filme, que reúne os agentes de produção (os cineastas, produtores e diretores de cinema). Uma observação importante é que, no caso brasileiro, o papel do Estado como fomentador / produtor da atividade cinematográfica é de especial relevância, fazendo com que se inclua na esfera da produção os gestores das instâncias e dispositivos estatais de incentivo à produção cinematográfica e regulação do setor cinematográfico, a saber, o Ministério da Cultura e as leis de incentivo à atividade cinematográfica).

 A segunda, a esfera de distribuição do produto audiovisual, que congrega os agentes de distribuição de filmes (empresas nacionais e internacionais privadas e públicas).

 A terceira, a esfera da exibição, que reúne os conglomerados de salas de cinema, que são organismos nacionais e internacionais, de médio, grande e pequeno porte, podendo ser privados e públicos.

Além dessas três esferas, uma quarta dimensão, a esfera do consumo, que teoricamente não se enquadraria em uma rígida aplicação do conceito do campo bourdieusiano, necessita ser ao menos investigado porque se refere ao destinatário da produção do conteúdo do subcampo do cinema - a figura do espectador. Na esfera do consumo há ainda os agentes intermediários, como jornalistas, críticos, especialistas em marketing, publicitários e, de um

modo geral, a mídia, que serão encarregados de fazer a intermediação e a divulgação, através da comunicação, do produto audiovisual com o seu destinatário, que é o espectador.

Em cada uma dessas esferas do subcampo cinematográfico, há diversos interesses em jogo, muitos deles contraditórios e divergentes, gerados pelo caráter de competitividade que existe inerente à atividade cinematográfica, pois no mercado há muitos filmes lançados semanalmente lutando pela atenção do espectador. No caso do Brasil, há a competição do produto estrangeiro, notadamente o norte-americano, que costuma ocupar esse mercado de exibição, não deixando muito espaço para o filme nacional ser reconhecido pelo público. Há, como se observa, uma constante luta entre os diversos agentes, o que define a questão do mercado como fundamental para o entendimento da relação do espectador com o filme brasileiro.

O contexto da estrutura do cinema é abordado na tese como um subcampo que guarda vinculação ao campo maior da indústria cultural, ou seja, a orientação dominante do subcampo do cinema é a das relações industriais e comerciais que regem a produção, distribuição, circulação, exibição e consumo do produto cultural filme, sendo o subcampo do cinema, como espaço social, uma estrutura estruturada e, ao mesmo tempo, uma estrutura estruturante, além de ideologia. O campo da indústria cultural, mais abrangente e que funciona pelo regramento do sistema de produção, distribuição e exibição de bens simbólicos e também materiais, contém, em seu interior, o subcampo do cinema, que possui como espaço social uma configuração de dimensões específicas.

Desta forma, o subcampo cinematográfico é percebido como gerador de um habitus narrativo, que remonta ainda início do século XX. Ou seja, ao ser configurado como um sistema complexo de relações inserido na realidade da indústria cultural, o subcampo cinematográfico forma, como disposição geral, um habitus narrativo, consagrado, por sua vez, no predomínio das disposições dos agentes que fazem do cinema uma atividade predominantemente comercial, sobretudo pelo cinema pioneiro no sentido da atividade cinematográfica industrial, que corresponde ao cinema produzido em Hollywood, a partir do início do século XX. O habitus do cinema é consubstanciado, em grande parte, como

estrutura estruturante, porque possui características por vezes moldáveis e flexíveis, a depender dos interesses dos agentes envolvidos. Assim, o habitus surge a partir da ação dos agentes no interior do subcampo, das definições e estratégias de produtores, cineastas e artistas criadores, embora estejam em grande parte, quase sempre, sob a lógica industrial- comercial, que é gerada a partir do campo da indústria cultural. O conceito de habitus narrativo é abordado e aprofundado na segunda parte desta tese.

4 Aspectos metodológicos

A pesquisa sociológica focada na figura do espectador cinematográfico, situado como um agente inserido em um campo social, parte de alguns pressupostos valorativos que dizem respeito (MASCARELLO, 2004):

 Qual é o público que julga a obra ou o produto cultural (enfim, sobre qual classe social se fala);

 Qual a função que se espera que a obra ou o produto cultural cumpra (entretenimento, elevação estética, sensibilização política etc.);

 Quais as circunstâncias da fruição dessa obra ou produto cultural (cinema alternativo, sala do multiplex). Em outras palavras, a atribuição de valor depende sempre de três variáveis: é bom para quem? È bom para quê? É bom em que circunstâncias?

A tradição sociológica abrange as duas vertentes metodológicas, qualitativa e quantitativa. A teoria praxiológica de Pierre Bourdieu se caracteriza, sob o ponto de vista metodológico, por um forte amparo na pesquisa empírica. A utilização de dados quantitativos em procedimentos teórico-metodológicos das ciências sociais, e, sobretudo, na sociologia da cultura, deve se caracterizar muito mais como ilustração do que como definição de verdades científicas. A metodologia qualitativa é compatível com o auxílio do uso de dados quantitativos, com o objetivo de demonstrar certos elementos que são importantes, geralmente elementos que são subsidiários ou dão suporte à análise geral, esta sim qualitativa.

Por outro lado, o discurso mais consistente e aprofundado dos agentes sobre a realidade do cinema brasileiro é mais rico quanto mais qualitativo for, pois há dificuldade em traduzir numericamente a fala do agente, posto que a riqueza da interpretação hermenêutica seja prejudicada pela mera quantificação de dados. Assim, o esforço metodológico desta pesquisa é o de articular tanto a perspectiva qualitativa quanto a quantitativa, incluindo diversas técnicas de coleta de dados, a saber:

Dados primários:

I - Entrevista em profundidade com 07 (sete) espectadores, após terem assistido aos 30 minutos iniciais dos filmes: Central do Brasil (1998), Lavoura Arcaica (2001), Cidade de Deus (2002) e Tropa de Elite (2007). Os entrevistados são homens e mulheres de diferentes idades e distintas áreas de atuação profissional. O conteúdo da entrevista focou a experiência do agente como espectador de cinema e sobre a temática e a linguagem dos filmes em questão.

II - Entrevista com aplicação de questionário estruturado com os espectadores do Cinema da Fundação. Escolheu-se o método não probabilístico intencional (um grupo específico de indivíduos com um objetivo comum – ir ao Cinema da Fundação – para saber sua opinião sobre cinema e filmes). Os 300 espectadores foram entrevistados aleatoriamente no hall do Cinema da Fundação antes e/ou depois de iniciadas as sessões, por seis entrevistadores, estudantes de graduação de ciências sociais, comunicação e serviço social, em 2005. A amplitude amostral mínima necessária é de 272 questionários. Este valor foi estimado considerando um intervalo de confiança de 90%, e um erro de cinco pontos percentuais. Entre os entrevistados, 53,7% eram homens e 46,3% eram mulheres. Os cálculos estatísticos para o dimensionamento de amostras são elaborados de maneira tal que o pesquisador tenha informações bastante significantes do fenômeno analisado com um número reduzido de amostras, baixo custo e em pouco tempo.

III - Análise de informações anotadas no diário de campo, oriundas de observação não- participante realizada nas salas de cinemas do Recife, antes, durante e depois da exibição de filmes, observando o comportamento, a fala, as práticas e os gostos dos espectadores. Pesquisa realizada entre 2007 e 2009.

Dados secundários:

I - Utilização de dados das pesquisas quantitativa e qualitativa: Hábitos de consumo no mercado de entretenimento e Projeto Cinema – Dados qualitativos, ambas realizadas pelo Instituto de Pesquisas Datafolha, para o Sindicato das Empresas Distribuidoras Cinematográficas do município do Rio de Janeiro, em 2008.

II - Utilização de dados da pesquisa quantitativa Atributos que influenciam na escolha de cinemas e os hábitos de consumo de seus freqüentadores: um estudo de caso no Recife expandido, coordenada pelos professores Walter Moraes e Pierre Lucena, do curso de Administração da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), em 2008.

III - Utilização de dados quantitativos sobre bilheterias do cinema brasileiro entre 1970 e 2006, oriundos de levantamento realizado pela Agência Nacional de Cinema (ANCINE), em 2007.

IV - Utilização de dados quantitativos sobre produção, distribuição e exibição de filmes no Brasil, oriundos do banco de dados Database Brasil do Portal Filme B (www.filmeb.com.br).

V - Análise do conteúdo dos comentários de internautas reunidos no Grupo de Discussão da Seção Cinema do UOL, no fórum O que você acha da polêmica criada em torno de Tropa de Elite, lançado no dia 02 de outubro de 2007, semanas depois do lançamento pirata em DVD do filme e três dias antes do lançamento do filme nos cinemas do Rio - São Paulo e dez dias antes do lançamento no Recife. O fórum bateu um recorde de comentários enviados, em torno de 1000 (mil) mensagens.

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