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BREVE HISTÓRIA SOCIAL DO CINEMA

2 Formação do subcampo do cinema

3.4 Segundo fundamento da linguagem cinematográfica: a montagem

Uma definição abrangente e genérica sobre a função da montagem no processo de construção da narrativa cinematográfica diz respeito a um recurso técnico de seleção e organização de imagens (ou planos) cujo objetivo é contar uma história em determinado tempo, cuja ordem está explicitada no roteiro do filme. Certamente, tal definição – objetiva - não está incorreta, mas seguramente está incompleta. Claramente, é necessário selecionar e organizar imagens que foram filmadas quase sempre em ordem não cronológica, obedecendo ao cronograma de filmagem de produção do filme, cuja conveniência de filmagem tem uma lógica própria, notadamente a lógica industrial de otimização de recursos financeiros. O trabalho do montador começa, quase sempre, quando a filmagem é finalizada.

Assim, selecionar os melhores planos filmados e organizá-los numa seqüência narrativa determinada pelo roteiro é apenas o começo da aventura que é construir a linguagem e a narrativa de um filme. E também apenas uma perspectiva, pois, para além da organização e seleção das imagens, a montagem terá que definir aspectos menos objetivos, tais como o movimento, o ritmo e o dinamismo que as seqüências terão. Trata-se de um trabalho de construção de sentido e significado, a partir da visão que os agentes da produção e o diretor desejam para a obra.

Dziga Vertov (1896-1954), cineasta soviético “que recusa todo conluio do cinema com a ficção, em prol de uma crença em um poder de veridicidade de que ele (o cinema, nota do autor) seria dotado” (AUMONT; MARIE, 2003, p. 297), supunha a câmera é mais competente que o olho humano para captar a realidade de forma imparcial. Mas, além da fotografia – entendida como a potência de iluminar os objetos e enquadrá-los conforme uma perspectiva subjetiva do diretor -, a montagem é a etapa que complementa o trabalho de captação do real, conforme afirmava Vertov. Sem fotografia não há cinema; sem montagem também não há cinema. Ou quase. É possível fazer um filme de longa-metragem em único plano-sequência26, mas tal empreitada tornaria os custos de produção muito mais altos. Como se sabe, o plano-sequência é um fundamento do neo-realismo italiano; enquanto a montagem é o pressuposto da Escola russa.

Como se observa, há elementos objetivos e subjetivos na proposição do trabalho de montagem. O objetivo diz respeito à primeira função da montagem: selecionar e organizar imagens em função do roteiro. A isso poderia se chamar edição ou ajuste do corte, aquele momento em que os planos são unidos na ilha de edição.

O segundo momento, mais complexo, é propriamente o trabalho mais criativo a que se permite a montagem. É o momento do diálogo entre diretor e montador. O primeiro explica

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Arca russa (Aleksandr Sokurov, 2002) é exemplo recente de filme produzido em único plano-sequência. Por ser realizado em vídeo digital, possibilitou-se essa pretensão, uma vez que o filme película tem um limite de duração de um rolo, ou seja, um plano sequência em película pode durar em torno de 30 minutos, para que outro rolo de filme seja colocado na câmera. O cineasta inglês Alfred Hitchcock (1899-1980) realizou Festim

diabólico (1948) em três planos sequências, com duração total de 80 minutos. O cinema neo-realista italiano

a sua visão sobre o filme, ou seja, aquilo que efetivamente ele deseja e sonha que a obra audiovisual seja. De um modo geral, o gênero do filme costuma ditar o tipo de montagem que se determina para o filme.

Um filme dramático, intimista ou uma comédia terá, provavelmente, planos mais longos (com maior duração) e mais fechados (mais aproximados dos objetos), permitindo que o trabalho dos atores e o enredo contado sejam destacados. Um filme de suspense terá cortes secos e rápidos. Um filme de ação terá montagem paralela (aquele em que dois ou mais eventos acontecem simultaneamente, a exemplo da ação dos bandidos e a perseguição policial). Um filme épico mostrará planos mais abertos, que destacam o cenário e a ambiência da narrativa contada. Bem entendido, isso acontece de uma maneira geral porque vai caber ao diretor inclusive subverter esses cânones que determinam que um gênero deva ser de um forma ou outra.

Neste ponto se definem os rumos que deve ter a narrativa audiovisual e, por extensão, o tipo de narrativa que se pretende: linear, não-linear ou não-narrativa. Há diretores que objetivam na montagem a busca de linguagem, montando seus filmes com uma decupagem menos clássica, que possibilite que o espaço de montagem seja de fato o momento da construção da narrativa. Além dos gêneros, as temáticas propostas e, sobretudo, a vinculação externalista do filme (produto para o mercado ou obra mais experimental) definirá ou permitirá a participação mais criativa da montagem para além do roteiro do filme.

Até chegar à sala de montagem, um filme não é mais do que um copião, ou seja, a reunião bruta, sem cortes, de todo o material filmado, acumulado ao longo de até meses de filmagem. Reúne várias tomadas de uma mesma seqüência, de uma mesma cena, ou de um mesmo plano. São muitas horas filmadas e quilômetros de rolos de filmes que chegam até o profissional da montagem, para que este, juntamente com o diretor, dê forma àquilo que os espectadores assistirão nas salas de cinema como um produto finalizado e bem acabado. Assim, o montador não é apenas um editor que junta partes do copião que foram filmadas

em separado e que precisam estar na ordem prevista pelo roteiro. O montador constrói a narrativa com o diretor.

O montador é o profissional que entra no filme no período de pós-produção, ou seja, depois de encerrada a produção do filme propriamente dita e as filmagens. Ao contrário do set de filmagem, que é local de grande agitação, subjetividades múltiplas e problemas diversos, a sala de montagem é o exato oposto: lugar tranqüilo e de reflexão. Dessa forma, o montador traz um olhar “neutro” em relação àquilo que aconteceu na filmagem.

Ao montador, teoricamente, não interessa se determinado plano custou muito dinheiro à produção ou mesmo toda uma cena, nem mesmo se esses planos e cenas foram bem filmados e dirigidos. O montador pensa aquele plano ou conjunto de planos como a parte de um todo. Ele vai se perguntar se aquele material é adequado ou não, que contribuição aquilo traz para a estrutura do filme ou para a forma que o filme deve ter. A montagem leva em consideração três aspectos em conjunto: imagem, som e música e se a junção desses elementos está de acordo com o conceito proposto para o filme.

Em passado não muito distante, os filmes eram montados, ou seja, cortados e colados, plano a plano, manualmente, de uma forma artesanal pelo montador na moviola (equipamento utilizado para se realizar a montagem dos filmes antes do aparecimento das ilhas de edição eletrônicas e digitalizadas, que persistiu ao longo de praticamente todo o século XX). Na era digital, os filmes são montados em ilhas de edição eletrônica, eliminando o trabalho físico de guardar filmes em latas, abri-las, colocar a seqüência de negativos na moviola, e fazer o corte manualmente. Era um momento bastante reflexivo e de maior duração, por motivos óbvios. A tecnologia veio suprimir essa etapa, com as modernas ilhas de edição, que armazenam todo material no computador, permitindo que a localização das partes do filme a serem montadas em seqüência seja dotada de mais agilidade e fluidez.

A ilha de edição permite armazenar várias versões do filme e, com isso, possibilita haver maior aprimoramento da relação imagem – som – música, cuja sincronia é atribuição do

montador. Em compensação, essa agilidade diminuiu o tempo de reflexão sobre o processo de montagem. Por ser processo mais lento, a montagem na moviola permitia maior tempo de reflexão sobre o filme e maior interação entre diretor e montador. A montagem deve ser conseqüência do processo de amadurecimento do filme que o diretor subjetivamente visualizou.

A montagem é a construção da narrativa, enquanto a edição é o ajuste do corte. Posto dessa forma, o editor seria um auxiliar passivo do diretor, esperando ordens para realizar os cortes. A idéia de edição limita o processo criativo do filme que nasce na sala de montagem porque a edição é somente a materialização do proposto pelo roteiro e story board (processo de pré-produção do filme, quando o diretor ou o desenhista de produção concebe o filme em desenhos seqüenciados plano a plano a ser materializado na filmagem pelo diretor de fotografia).

Cada filme tem um tempo. Um filme não pode (ou não deve) ser montado a partir de um menu de edição proposto por um programa de computador, tornando o processo mecânico e desprovido de vida. A montagem tem que estar a serviço do filme. Somente esse processo da montagem, que não é apenas técnico, mas marcadamente subjetivo, tem potencial criativo para dar feição a um filme.

Ismail Xavier (2005, p. 32) explica o caráter elementar da montagem, no qual a descontinuidade espaço-temporal no nível do mundo representado motiva e solicita o corte (seria impossível um mundo representado em ato contínuo), sendo a montagem um procedimento inevitável e que só acontece quando a descontinuidade é indispensável para a representação de eventos separados no espaço e no tempo, não se violando a integridade de cada cena em particular.

A platéia aceita esta sucessão não-natural imediata de imagens porque esta sucessão caminha ao encontro de uma convenção da representação dramática perfeitamente assimilada. Tal convergência redime o salto, que permanece aceitável e natural porque a descontinuidade temporal é diluída numa continuidade lógica (de sucessão de cenas ou

fatos). Na decupagem clássica, deve haver uma manipulação dos suportes para imprimir o efeito de continuidade desejado e para a manipulação exata das emoções. Essa convenção assimilada no processo de percepção e compreensão dos filmes é a expressão do habitus narrativo, proposto pelos agentes da criação cinematográfica, agora se manifestando no pólo da recepção. Em outras palavras, no processo de decodificação da mensagem audiovisual, o estatuto narrativo deve estar presente para que haja a adesão do espectador à naturalização dos fatos narrados pelo filme.

O que caracteriza a decupagem clássica é seu caráter de sistema cuidadosamente elaborado, de repertório lentamente sedimentado na evolução histórica, de modo a resultar num aparato de procedimentos precisamente adotados para extrair o máximo rendimento dos efeitos da montagem e ao mesmo tempo torná-la invisível. (XAVIER, 2005, p. 32).

No procedimento da montagem, a edição do corte, diz Ismail Xavier, vai libertar a prisão espaço-temporal e o limite do ponto-de-vista que a câmara parada, os planos fixos e planos costumam (ou costumavam) imprimir às narrativas cinematográficas. O corte era raro em 1908. Os planos eram gerais, abertos e o corte para o primeiro plano se dava por uma necessidade denotativa de informar algo que era essencial à narrativa. A montagem marca uma transição entre o “teatro filmado” e o filme de perseguição. Mas, o cinema narrativo foi mais adiante na intenção do ilusionismo e na impressão de realidade com o advento da montagem paralela, que define acontecimentos simultâneos, cujo modelo clássico é a montagem de perseguições e o filme de comédia. Um dos pólos de desenvolvimento da narração cinematográfica.

A montagem paralela estabelece uma sucessão temporal de planos correspondentes a duas (ou mais) ações simultâneas que ocorrem em espaços diferentes, com um grau de contigüidade que pode ser variável. Um elemento é constante: no final, será sempre produzida a convergência entre as ações e, portanto, entre os espaços. Há manipulação emocional na imagem paralela que, via de regra, inventa pretextos para o adiamento da ação. O célebre exemplo é o do vilão que fala demais antes de atirar (XAVIER, 2005, p. 34).

O que caracteriza a decupagem clássica é seu caráter de sistema cuidadosamente elaborado, de repertório lentamente sedimentado na evolução histórica, de modo a resultar num

aparato de procedimentos precisamente adotados para extrair o máximo rendimento dos efeitos da montagem e ao mesmo tempo torná-la invisível, ou seja, o ideal da transparência, ou toda uma movimentação técnica destinada a imprimir realidade à narrativa fílmica, mas que deve parecer invisível enquanto técnica. Esta estruturação lógica, natural, convencional da narrativa dramática não foi inaugurada pelo cinema, é encontrada em outras expressões artísticas, conforme já foi mencionado anteriormente.

Então, na decupagem clássica, deve haver ritmo na sucessão das imagens e esse ritmo deve corresponder à intensidade dramática e promover uma compatibilidade entre as imagens. Na decupagem clássica, deve existir uma manipulação dos procedimentos para imprimir o efeito de continuidade desejado e para a manipulação exata das emoções. São estes: 1. Shot

/ reaction shot. Um novo plano explicita o efeito (em geral psicológico) dos acontecimentos

mostrados no comportamento de alguma personagem; 2. Combinação dos dois anteriores: campo / contra-campo. (XAVIER, 2005, p.34).

Para Ismail Xavier, a decupagem clássica é a verdadeira conquista da especificidade cinematográfica e que sob a observância dos princípios clássicos, décadas de cinema ficaram marcadas pelo predomínio absoluto desse método de narração no nível da produção industrial em escala mundial. Assim, o cinema clássico é um período simbólico longo e extenso, podendo-se afirmar que, embora costumeiramente situado na primeira metade da década do século XX, seu legado é atemporal e extra-espacial posto que a indústria do cinema contemporânea deve a esse período, produzindo filmes, atualmente, que ainda seguem rigorosamente o modelo clássico do início do século passado.

A decupagem clássica é uma conquista do cinema norte-americano, sedimentada no período de 1908 a 1916, determinando uma estética dominante para além das fronteiras norte-americanas. Pode-se afirmar que, em função de tal hegemonia, surgiram ao longo do século XX e ainda em suas primeiras décadas, escolas estéticas que se opuseram ao procedimento da decupagem clássica. Ao mesmo tempo em que a narratividade da decupagem clássica é identificada, por Ismail Xavier como a linguagem da transparência, a oposição estética ao cinema clássico é identificada como a linguagem da opacidade.

A construção do método clássico significa a inscrição do cinema (como forma de discurso) dentro dos limites definidos por uma estética dominante, de modo a fazer cumprir através dele necessidades correlatas aos interesses da classe dominante. As afinidades do cinema de Griffith com certo tipo de literatura popular e com um conceito de representação do século XIX tornam-se gradualmente mais relevantes para a reflexão crítica. (XAVIER, 2005, p. 38).