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O CINEMA NO BRASIL NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO

1.3 Anos 1970: pornochanchada e o cinema nacionalista

O contexto político brasileiro dos anos de chumbo, que perpassaram as décadas de 1960, 1970 e parte de 1980, ajudou a aumentar o fosso entre cinema brasileiro e público espectador. Parte dos cineastas oriundos dos anos 1960 viu-se obrigada a realizar filmes que, muitas vezes, funcionavam como metáforas audiovisuais, quase sempre pouco compreensíveis ao grande público tão acostumado à narratividade do cinema clássico consagrado pela indústria cultural hollywoodiana.

Os anos 1970 viram, então, nascer uma nova tentativa de cinema industrial-comercial no Brasil, que mesclava os ingredientes “populares” das chanchadas da Atlântida, mas sem a “ingenuidade” daquelas produções. Entre 1970 e 1979, 93 filmes nacionais atingiram o patamar de mais de um milhão de espectadores. Entres estes títulos, encontram-se pornochanchadas, dois filmes estrelados pelo cantor Roberto Carlos, comédias d‟Os Trapalhões, de Mazzaropi, alguns raros dramas, filmes com artistas populares sertanejos. Entre 1970 e 2006, o filme infantil e a comédia foram os gêneros de filmes brasileiros, com maior adesão por parte do espectador, com, respectivamente, 45 e 41 títulos entre as 188 produções com mais de um milhão de espectadores, seguidos de perto pelo filme erótico

(não-explícito), com 32 títulos30. Muito pelo contrário, começava a era das comédias sexuais, chamadas de pornochanchadas, ousadas para os padrões morais da cultura burguesa do Brasil pós-AI-5, mas absolutamente ingênuas para a configuração do erotismo contemporâneo.

Esses filmes - em parte comédias produzidas no Rio de Janeiro e dramas eróticos produzidos em São Paulo na área da Rua do Triunfo, conhecida como Boca do Lixo - em pouco tempo preencheram, em termos de receptividade por parte do público (principalmente da classe média baixa, segundo um conceito da época) a lacuna deixada pela comunicação popular dos filmes da Atlântida, que saíram de moda com a contracultura dos anos 1960 e o advento do cinema novo.

Por uma via extremamente popular (ou popularesca), o cinema brasileiro parecia ter-se reencontrado com o público, basicamente uma classe social não-intelectualizada e pouco exigente, que, de alguma forma, via nos filmes brasileiros a oportunidade de travar contato com certa perversidade sexual que adquirira espaço em todo o mundo, a partir do final dos anos 1960. Estava restabelecida uma quantidade razoável de produção nacional anual, que garantia gordas bilheterias. Observada pelos agentes da crítica cinematográfica como “grosseira e vulgar”, a pornochanchada era conseqüentemente tida como alienada e alienante.

Por outro lado, parte dos cineastas que nasceram com o cinema novo resistiu à década de 1970. Com o quadro político radicalizado, esses diretores tiveram, entretanto, de adaptar-se a uma era que incluiria em meados dos anos 1970 a atuação do Estado brasileiro como produtor e distribuidor de filmes. Com a criação da Embrafilme, o cinema brasileiro considerado sério pôde sobreviver à avalanche de pornochanchadas que sacudiram a década de 1970. Distante dos questionamentos inquietantes demonstrados em filmes como Terra em transe (Glauber Rocha, 1967) e O bravo guerreiro (Gustavo Dahl, 1969), Ismail Xavier (1985) afirma que os cineastas brasileiros aderiram, por questões de sobrevivência, ao

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“cinemão”: “O Estado estimula um cinema „sério‟, ligado às tradições nacionais mais nobres, em contraposição ao que julga baixa cultura da comédia erótica que, curiosamente, avança no mercado com o endurecimento do regime”.

Houve então um natural afastamento estético dos cineastas do movimento cinemanovista às idéias e ideais da década anterior. Ramos (1987) faz um recorte sobre o filme Xica da Silva (Carlos Diegues, 1976). Ele diz que as críticas colocavam o filme como algo próximo à estética estatal adotada pelo regime militar nos anos 1970 com relação ao cinema brasileiro, que incentivava a produção de filmes históricos com recursos retirados diretamente do Tesouro Nacional via Embrafilme. Além de sucesso de bilheteria, o filme de Carlos Diegues era, segundo críticas desfavoráveis, um “casamento do cinema novo com a pornochanchada, tratamento equivocado das relações raciais, folclorização e espetacularização da História”. (RAMOS, 1987).

Curiosamente, Carlos Diegues, um cineasta de formação cinemanovista, faz de Xica da Silva uma emulação da vertente nacional-popular com estética setentista, identificada, inclusive, com elementos da pornochanchada, alcançando público expressivo: 3.183.582 espectadores. Fonte: Agência Nacional de Cinema (ANCINE, 2006). Com isso, tentou superar o ”abismo” entre o habitus intelectual artístico e o habitus narrativo do cinema. Diegues e Arnaldo Jabor são cineastas cinemanovistas que conseguiram algum diálogo com o público nos anos 1970 e 1980. Cada um tem três filmes com bilheterias acima de um milhão de espectadores. Os dois, ao lado de Bruno Barreto e Hector Babenco (Lúcio Flávio – o passageiro da agonia; Pixote – a lei do mais fraco) são exemplos de agentes que adquiriram legitimidade no subcampo por duas vias: a da legitimação da crítica e a consagração do público.

A produção da década de 1970 abrangia a pornochanchada carioca e paulista, os cineastas independentes esteticamente como Carlos Reichenbach, Carlos Hugo Christensen e Walter Hugo Khoury, o cinema marginal, um ainda ativo Glauber Rocha, que foi filmar na Europa, e os cineastas remanescentes do cinema novo aproximados das propostas estéticas e financeiras do Estado brasileiro. Fernão Ramos afirma que Carlos Diegues havia escolhido

a forma fílmica possibilitando o “mergulho no mercado”, libertando-se, assim, das amarras dos tons solenes de seus filmes anteriores: “Outros filmes circularão a partir de então em torno do „respeito‟ ao popular e da „espetacularização‟ do nacional. Ocorre uma atualização da concepção de „nacional-popular‟, sob os influxos da ação estatal na cultura e do crescimento da indústria cultural” (RAMOS, 1987).

Patrocinada por produtores independentes, a pornochanchada retornava às raízes de um cinema popular (do ponto de vista de bilheteria, do agrado de uma parte da população) pouco interessado em um retrato mais aprofundado sobre a vida urbana nas grandes cidades. Em outro pólo, os cineastas brasileiros viam-se na obrigação de aceder ao chamado do Estado para continuar produzindo filmes. O resultado foi um conjunto de vários filmes “históricos” e “literários” que, raramente, recebiam adesão por parte do público espectador.

O Estado passou a subsidiar filmes orientados para uma finalidade. A ideologia nacionalista do regime militar se fez presente na valorização da produção cinematográfica brasileira da época. Assim, nasce a relação mais estreita entre Estado e produção cinematográfica no Brasil. Bernardet (1978) avalia que o filme histórico foi uma “vedete” na produção cinematográfica brasileira dos anos 1970, uma vez que a Embrafilme, a empresa produtora e distribuidora de filmes oficial, deu orientação temática e estética neste sentido, com o objetivo de produzir obras que “sirvam diretamente a seus interesses ideológicos e estéticos”.

Havia um orçamento especial somente para filmes históricos: “instala-se uma comissão em nível ministerial, cuja tarefa é receber e avaliar roteiros, e indicá-los ou não para a produção. A comissão atua em dois pontos: avaliar projetos de diretores estreantes e de filmes históricos”. Nesse sentido, é possível pensar em certa crise criativa do subcampo do cinema, uma vez que se configurava dois ciclos: o da pornochanchada por um lado, e dos filmes históricos e adaptações literárias, por outro, esta institucionalmente incentivada pelo regime político. O novo capital que começara a circular era a proximidade e o favorecimento do Estado, que se colocava como agente de produção do subcampo.

No contexto da década de 70 e, segundo os propósitos de uma política orientada para o subcampo do cinema, os filmes históricos e as adaptações literárias colocavam-se como argumentos de valorização da história e da cultura nacionais. Por parte dos cineastas, havia dois pontos de vistas em relação ao filme histórico: a realização de filmes com intenções meramente “patriotas”, verdadeiras aulas de civismo, como Independência ou morte (Carlos Coimbra, 1972); ou visões críticas e contestatórias da história brasileira, que se remetiam à herança cinemanovista como Os inconfidentes (Joaquim Pedro de Andrade, 1972).

O público espectador mantinha-se menos afastado do cinema brasileiro do que na década de 1960, mas ainda assim longe do projeto de uma indústria cinematográfica brasileira auto-sustentável, apesar do êxito do ciclo da pornochanchada, restrito a certos segmentos de classes médias e baixas. Os filmes históricos e literários, em sua maioria, também não serviam a um propósito de indústria, porque apesar de produzidos continuavam a ter problemas de distribuição e exibição em território nacional.

As exceções eram uma ou outra produção baseada na literatura, como Dona Flor e seus dois maridos (Bruno Barreto, 1976), os filmes eróticos e os filmes do quarteto Os Trapalhões. Pelo menos, mais de uma dezena de filmes d‟Os Trapalhões se encontra entre os maiores sucessos comerciais do cinema nacional, com cada um dos títulos atingindo bilheterias acima de quatro milhões de espectadores entre os anos 1970 e 198031.

Assim, como a pornochanchada, o quarteto de cômicos reverenciava uma narrativa clássica, centrando-se numa mistura de humor e aventura, que seduzia o público já acostumado à linguagem da televisão, mídia que popularizou o quarteto. Para se ter um exemplo, das dez maiores bilheterias do cinema brasileiro em 1975, segundo PAIVA (1989), somente dois pretendiam ter o caráter de produção de “alto nível”: Guerra conjugal (Joaquim Pedro de Andrade, 1974) e O casal (Daniel Filho, 1975): “A renda mais alta foi a de Jeca Macumbeiro, chanchada de Mazzaropi, seguida de uma comédia infantil de Os Trapalhões,

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mais seis pornochanchadas e um dramalhão melódico do cantor-matuto Teixeirinha”.

O filme Dona Flor e seus dois maridos estreou em novembro de 1976, sendo até o momento contemporâneo a produção brasileira mais vista no mercado nacional, com um total de 10.735.524 espectadores, segundo dados da Agência Nacional de Cinema (ANCINE, 2006). Dona Flor e seus dois maridos é exemplo de produção com tentativa de conjugar pretensões estéticas – alude à literatura do e sobre o Nordeste - e apelos comerciais do cinema narrativo. O filme é uma das produções nacionais mais conhecidas no exterior, inspirando, inclusive, versões para musicais da Broadway e filmes de Hollywood, além de ter projetado a atriz Sônia Braga.

É razoável acreditar que houvesse, por parte dos agentes produtores do subcampo, real esforço em conseguir comunicabilidade com o público espectador. De alguma forma isso se concretiza por via de subgêneros que estabeleceram tal diálogo, para além da pornochanchada. Produções que acessavam diferentes habitus de classes sociais, minimizando o distanciamento entre as condições sociais de produção do subcampo e o habitus da recepção cinematográfica. Alguns cineastas que no interior do subcampo do cinema não possuíam legitimidade intelectual e artística, são exatamente aqueles que dirigiram os filmes de maior repercussão juntamente ao público entre os anos 1970 e 1990: nomes desconhecidos atualmente como J. B. Tanko (dirigiu 11 filmes dos Trapalhões com mais de um milhão de espectadores); Pio Zamuner (diretor dos filmes de Mazzaropi, com oito títulos com bilheteria acima de um milhão de espectadores); José Alvarenga Jr e Adriano Stuart (ambos dos Trapalhões, com sete e seis filmes, respectivamente)32.

Na década de 1970, o cinema brasileiro mantinha-se como produto de consumo restrito ou vinculado a uma dada classe média baixa, mediante a adesão à pornochanchada, embora seja a década que, nos últimos 40 anos de cinema brasileiro, apresentou melhores resultados de bilheteria. Além de restrita parcela do público, havia aceitação do cinema nacional por parte dos agentes da crítica e no circuito dos festivais de cinema. Para o

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grande público, além do estigma de “difícil” e “incompreensível” (herança dos anos 1960), acompanhou o cinema brasileiro outro estigma incorporado durante a década de 1970, que não estava relacionada apenas à precariedade técnica. A maior parte do público espectador, notadamente a classe média mais intelectual, passou a década alheia ao cinema brasileiro porque o classificava como um cinema vulgar e pornográfico.

O cinema nacional passou pelos anos 1970 enfrentando o crônico problema da distribuição, apesar da reserva de mercado e abundante produção - entre 1970 e 1979, mais de 800 filmes foram produzidos. Uma confluência de fatores que incluía uma má orientação do Estado no tocante à política cultural, uma produção comercial de baixo nível, o costume do público em filmes convencionais estrangeiros de narrativa tradicional e uma dificuldade dos cineastas em aproximar-se desse público. A Lei de Obrigatoriedade de exibição de filmes nacionais nas salas brasileiras, que imperou nos anos 70-80, mostrou-se falha, uma vez que era apenas propriamente uma legislação de incentivo, mas de imposição ao público do produto nacional.

Entre 1972 e 1982, o cinema brasileiro, através do ciclo da pornochanchada, conheceu o que se poderia nomear como uma fase “quase industrial”, em virtude do grande número de filmes do gênero produzidos (e, mais importante, exibidos, quase sempre com grande sucesso de público) ao longo da década. Tratava-se de um conjunto de filmes financiados e negociados por meio da iniciativa privada, sem a intervenção do Estado, o que curiosamente distinguia os agentes produtores desse subgênero de filme como produtores independentes, que certamente se antagonizavam estética e ideologicamente com outros grupos de agentes do subcampo, a saber, os cineastas herdeiros do cinema novo e aqueles cujas produções recebiam o beneplácito do Estado na produção e distribuição.