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BREVE HISTÓRIA SOCIAL DO CINEMA

2 Formação do subcampo do cinema

3.5 Classificação das narrativas segundo o habitus do campo

Os agentes do subcampo do cinema podem ser classificados segundo seu papel, suas funções e o grupo a grupos de pertencimento no interior do subcampo. Assim, para efeitos de categorização dos tipos de narrativas cinematográficas, a partir do conceito de habitus narrativo, é necessário retornar à classificação de grupos e de agentes, no que concerne especialmente aos agentes responsáveis pela criação das obras cinematográficas, vistas anteriormente na Parte III do Capítulo 1 desta tese. A primeira esfera do subcampo do cinema abrange, entre outros, os agentes criadores ou criativos (os diretores, produtores, roteiristas e cineastas).

A existência e permanência do cinema é a eles devida, a partir do momento em que na formação e evolução do subcampo, movidos por razões artísticas e/ou comerciais, instituíram o habitus narrativo como a lógica própria da sistematização criativa do campo a que pertencem. Tal lógica narrativa se impôs e adquiriu valor social e cultural como espetáculo de entretenimento voltado para grandes parcelas da sociedade (lógica do campo da indústria cultural) e também porque ao longo das primeiras décadas de sua formação e estabelecimento adquiriu certa legitimidade artística. Tanto a função de espetáculo de entretenimento quanto à função de expressão artística foram reconhecidas, externamente, pela sociedade em relação aos agentes criadores (ou criativos) pertencentes ao subcampo do cinema.

No plano interno ao subcampo, é possível afirmar que a distinção entre cinema de espetáculo de entretenimento, por um lado, e cinema como expressão artística, por outro, define a mais importante das lutas simbólicas empreendidas no interior do subcampo e da qual todas as outras são derivadas, em maior ou menor escala. Embora socialmente

valoradas, a perspectiva industrial-comercial da narrativa cinematográfica adquire um status diferenciado no interior do subcampo do cinema em relação à perspectiva artística do cinema.

Em outras palavras, esse status social pode ser superior ou inferior em relação à obra cinematográfica artisticamente considerada, dependendo do grupo que a valora, segundo o grau de pertencimento ao subcampo. Um festival internacional de cinema, como Veneza (Itália), por exemplo, pode valorar um dado filme, que, por sua vez, pode ser desconsiderado, por uma cadeia distribuidora interessada em adquirir filmes para lançamento mundial, exatamente em função de sua narrativa ser palatável ou não ao grande público espectador.

O embate tradicional de arte versus espetáculo é a fundamentação da classificação das narrativas cinematográficas, que aproximam o quanto mais da narratividade linear e do cinema clássico, na medida em que se situam alinhadas à lógica industrial e comercial do subcampo do cinema. Em outro pólo, as narrativas não lineares ou as não narrativas não se coadunam com a lógica comercial do subcampo do cinema e o campo da indústria cultural, sofrendo mais influência do campo artístico e do campo da produção cultural erudita.

Na evolução do subcampo do cinema, existe uma relação quase dialética entre o habitus narrativo e o habitus perceptivo (ou receptivo) dos espectadores em relação aos filmes narrativos. De um modo geral, salvaguardadas as exceções, é possível afirmar que existe uma adesão e identificação dos agentes espectadores ao habitus narrativo linear na justa medida em que as narrativas não lineares não conseguem atingir o objetivo da adesão com tanta “facilidade”. O habitus narrativo do subcampo do cinema é a síntese dos apelos de comunicabilidade já existentes em todas as artes, espetáculos, linguagens e narrativas anteriores ao cinema: folhetim, espetáculo de circo, teatro etc., conforme já foi abordado neste capítulo.

Que o século XX é marcado por profundas transformações tecnológicas, inclusive na produção de filmes, não há dúvidas. Igualmente não há polêmica em torno da tese de que o

campo da indústria cultural é profundamente caudatário de tais transformações e sua sobrevivência existe em função delas. Por extensão, o subcampo do cinema permanece existindo ao longo de mais de cem anos em função também dessas mudanças, mas somente a lógica estrutural do subcampo permanece inalterada: o habitus narrativo é o fundamento das narrativas cinematográficas dos filmes de longa-metragem exibidos em salas públicas de cinema que buscam a adesão dos espectadores. Assim, o subcampo do cinema é capaz de acomodar as transformações tecnológicas e submetê-las ao habitus narrativo, princípio gerador do subcampo do cinema.

Assim, é possível classificar, sinteticamente, as narrativas cinematográficas em três categorias, a saber: narrativas lineares, narrativas não lineares e não-narrativas.

Narrativa linear: é o tipo de estrutura narrativa mais comum no cinema comercial de

ficção em longa-metragem, correspondendo a imensa maioria dos filmes que são produzidos pelas indústrias cinematográficas em todo o mundo. De um modo geral, é sempre desenvolvida a partir de um roteiro escrito anteriormente, onde história e enredo são dois paradigmas de sustentação da narrativa. Histórias com início, meio e fim, preferencialmente com um final que solucione em definitivo o conflito abordado. Os filmes narrativos devem conter enredo, preferencialmente narrando uma história sem simbolismos ou metáforas, com personagens bem delineados e identificados para o reconhecimento e a adesão do público espectador, sequência temporal de fatos, ritmo com certa agilidade que permita a compreensão do todo da história. Nesse sentido, a montagem ocupa uma função narrativa que auxilie no processo de identificação entre personagens e espectadores. Para aderir ao filme não é necessário que o espectador empreenda esforço intelectual, posto que a narrativa trata de dar sentido àquilo que se observa na tela. Trata-se de filmes naturalistas, com interpretações naturalistas, fotografia tradicional, no que tange aos enquadramentos e a luz; direção de arte, cenários e figurinos que recriam a época exata onde se passa o enredo do filme e proporcionam impressão de realidade. Engloba praticamente todo tipo de gênero cinematográfico: drama, comédia, policial, suspense, épico, romance etc. A narrativa linear coincide com o cinema clássico e a narratividade, sendo conceitos correlatos. Exemplos: E o vento levou (1939), Casablanca (1943), Ben-Hur (1959), A noviça rebelde (1965), Um

estranho no ninho (1975), Amadeus (1984), Shakespeare apaixonado (1998), Uma mente brilhante (2001) etc.

Narrativa não-linear: é uma variação ligeira ou mais complexa da narratividade. Ou seja,

é possível identificar no cinema narrativo linear um enredo, embora não seja de fundamental importância o reconhecimento de uma história com uma cronologia de fatos fixa, contendo início, meio e fim. A narrativa não linear não está preocupada propriamente com algo que seja completamente inteligível pelo espectador. O sentido do filme é mais ambíguo, solicitando do espectador um esforço maior de reflexão sobre o que assiste. Embora haja por parte do cineasta um sentido preferencial que este atribui ao seu filme, a adesão com o espectador s e encontra em um nível mais subjetivo por parte deste, posto que lhe é solicitado não apenas compreender o que assiste, mas sentir. As narrativas não lineares não são comuns na realidade do cinema industrial e comercial, em virtude da formulação secular do habitus narrativo empreendido pelo cinema desde o seus primórdios no início do Século XX. Mesmo a sua classificação engloba filmes esteticamente diversos, pertencentes a cinematografias e movimentos diversos, mas de um modo geral é característico daquelas escolas cinematográficas que se contrapunham ao padrão narrativo do cinema hollywoodiano, ao longo do Século XX. Sendo assim alguns dos filmes pertencentes aos ciclos da nouvelle vague, cinema novo, escola russa, entre outros, são tidos como narrativas não-lineares, embora muitos filmes desses citados movimentos também possam ser analisados sob um prisma da narratividade. Um exemplo de filme da indústria com características não-lineares é a produção 21 gramas, vinculado a uma vertente de cinema independente na indústria cinematográfica dos EUA.

Não-narrativa: é um tipo de cinema não comercial, desatrelado da indústria cultural e, por

isso, não contemplado por ela. São tidos como filmes experimentais porque quase sempre dispensam roteiro e por extensão enredos e histórias. Estão muito ligados a movimentos das artes plásticas, buscando com essas uma interrelação. São filmes considerados artísticos estrito senso, dispensando, além disso, produção no que diz respeito à direção de arte, cenografia, figurinos, como recriação literal de épocas. Contempla uma visão extremamente subjetiva, fortemente atrelada ao pensamento de seu diretor / cineasta, onde

basicamente os dois pilares da linguagem, a fotografia e a montagem, funcionam como instrumentos de criação artística, desenvolvendo um sentido aberto para a percepção de quem os assiste. Nesse sentido, os filmes do ciclo surrealista de Luís Buñuel, como O cão andaluz, produzido na década de 1920, são paradigmáticos da não-narrativa.

Em resumo, há no subcampo do cinema uma pluralidade de narrativas e de desdobramentos e adaptações dessas narrativas, muitas vezes originárias de outras linguagens, como a literatura, sempre uma fonte de forte referência para o cinema, como afirma Anna Maria Balogh (2005) -, justamente porque a lógica que orienta o subcampo do cinema não pode prescindir do fato de que entre os espectadores há variações intra-individuais e intra- classes, no sentido de que fala Bernard Lahire, que acarretam múltiplos modos de recepção que correspondem em maior ou menor grau à pluralidade das narrativas cinematográficas no âmbito de criação do subcampo

QUADRO 2 As narrativas cinematográficas dos filmes de longa-metragem e a sua inserção no subcampo do cinema

1. O habitus narrativo define as narrativas lineares que constituem a lógica do