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O CINEMA NO BRASIL NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO

2.1 A tradição não-industrial

O cinema é atividade altamente complexa, pois diz respeito a etapas distintas de produção, distribuição e exibição, cujas variáveis se modificam entre uma e outra etapa. Além de expressão artística, o cinema é atividade econômica de lazer e entretenimento. Depende do público para sobreviver enquanto indústria. A não-continuidade no mercado da distribuição dessa produção não traz o hábito da aproximação, condição e pré-requisito para estabelecer uma identificação de um povo com o seu cinema. O subcampo do cinema no Brasil, no que diz respeito ao sistema de produção, distribuição e exibição do filme nacional, apresenta razoável nível de regulação, permitindo a existência de estruturas estatais de fomento e controle, materializados por dispositivos legais variados. A partir de Pierre Bourdieu, é possível afirmar que o Estado no Brasil exerce um papel fundamental na sistematização e agenciamento do subcampo.

Os ciclos de produção pelos quais tradicionalmente o cinema do Brasil atravessa é o grande entrave no processo de estabilização de um habitus receptivo em relação ao cinema nacional. A base para a transformação disso está na alteração do sistema de distribuição e exibição dos filmes nacionais e dos filmes estrangeiros. O atual sistema ainda permite o beneficiamento do produto hollywoodiano. O desafio, para os agentes da produção, é pensar numa forma razoável que permita o advento de uma indústria audiovisual no Brasil sem que isso prejudique o direito do espectador de assistir ao filme estrangeiro.

Embora a produção nacional cresça anualmente, os agentes da produção nacional avaliam que há pouco progresso na questão da distribuição e exibição dos títulos nacionais. E isso não se deve apenas à maciça ocupação de filmes norte-americanos nas salas de cinema do país, mas também à distribuição monopolizada, às cadeias de exibição serem, na grande maioria, de grupos multinacionais, e ao reduzido número de cinemas em relação à população do país (ver anexos). A tese defendida pelos agentes do subcampo é a de que não

adianta apenas investir na produção e deixar de lado os pólos da distribuição e exibição, havendo necessidade de novos investimentos nessas etapas.

Em termos da produção contemporânea, os filmes nacionais alcançaram maturidade narrativa e de linguagem e também qualidade técnica, no que diz respeito ao trato da imagem e som, alçando-se ao nível da produção globalizada internacionalmente, se observados (os filmes) sob a perspectiva do cinema narrativo de excelência. Os roteiros, antes considerados deficientes, estão mais adequados ao meio e à linguagem do cinema, com a profissionalização crescente de toda uma geração de roteiristas: João Emanuel Carneiro, Marco Bernstein, Victor Navas, Fernando Bonassi, entre outros, fazendo crescer um grupo antes bem reduzido que incluía uns poucos como Leopoldo Serran e Doc Comparato.

Sob o ponto de vista de sua recepção geral, o cinema brasileiro possui uma característica singular. Guardadas as devidas proporções, é um cinema que costuma ser melhor apreciado em festivais de cinema internacionais do que em seu próprio mercado interno. Se, por um lado, constitui-se uma característica positiva, afinal os festivais são, por princípio, uma abertura para a divulgação dos filmes; por outro lado, tem-se a impressão que essa bem- sucedida carreira em festivais internacionais não sensibiliza ou não repercute nos espectadores, que se constitui na maioria de um público médio. Assim, como existem mostras e festivais espalhados pelo mundo afora durante toda a temporada de um ano cronológico, o cinema brasileiro costuma se fazer presente e, não raramente, premiado em alguns desses.

Além do número reduzido de salas, o mercado brasileiro recebe um grande número de produções estrangeiras, notadamente filmes produzidos em Hollywood. Os agentes de produção do subcampo do cinema consideram uma concorrência desigual com o produto nacional. Para eles, não se trata de adotar uma postura protecionista e xenófoba, algo que em tempos de globalização, é seguramente tido como uma espécie de fundamentalismo cultural e mercadológico. Esses agentes consideram urgente a adoção de uma política publica para o cinema que possibilite o incentivo e o fomento para a criação de novos

espaços destinados à exibição de filmes, em geral, e de filmes brasileiros, em particular. Seria possível ao Estado desenvolver mecanismos de incentivo para que a iniciativa privada construa espaços destinados à exibição da produção nacional.

No Brasil, há algumas produções com orçamentos de US$ 6 a 8 milhões. Se, para a indústria hollywoodiana, são valores insípidos, tais cifras são muito altas para a realidade nacional. É muito dinheiro concentrado em uma produção, que, na maioria das vezes, será pouco assistida. Numa estimativa do campo, produtores e diretores argumentam que, no máximo, uma produção brasileira deveria custar US$ 2 milhões, teto este já considerado alto para o mercado da produção nacional. Há produções pequenas e médias com orçamentos que variam de US$ 60 mil a 300 mil.

Esta produção de baixo orçamento necessita de novos espaços de exibição. Espaços que sejam diferenciados do padrão das multi-salas dos grandes centros comerciais. O acesso de filmes brasileiros de baixo orçamento às salas de exibição é extremamente restrito, normalmente às salas do circuito alternativo, que são em número reduzido, ficando com horários igualmente alternativos ou até mesmo em único final de semana. Uma potencial flexibilização do habitus da recepção do espectador brasileiro com relação ao consumo do produto nacional passa por essa parceria do público-privado na formatação desses novos espaços de exibição, questão ainda em aberto.

Sabe-se que há enorme carência na periferia das grandes cidades brasileiras com relação aos espaços de exibição de filmes, ou seja, há grande demanda de um público que sequer tem o costume de ir ao cinema, como prática de lazer cultural. Há abertura de novas salas, mas isso acontece majoritariamente nas zonas residenciais das classes médias. O mercado de exibição e consumo se situa basicamente em bairros de classe média, que conseqüentemente exclui o público das periferias dos grandes centros. Os moradores da periferia não têm acesso a tal consumo cultural não apenas porque não existem cinemas em seus bairros, mas porque o ingresso das salas de bairros de classe média é alto, bem como o transporte e o eventual consumo de alimentação que acompanha o consumo cultural.

Para um agente de classe média, assistir a um filme no shopping, no final de semana, não sai por menos de R$ 30,00 / R$ 35,00. Tal valor é impraticável para quem mora na periferia. Além disso, há a exclusão simbólica, subjetiva, de não freqüentar o espaço do shopping center porque o agente da periferia se sente socialmente deslocado e excluído. Salas mais baratas e preços acessíveis podem ser a articulação que poderá permitir a inclusão de parcelas da população socialmente excluídas do lazer cultural que o cinema proporciona, dizem os agentes da produção.

No Brasil, o cinema é prática espectatorial restrita às classes médias, embora grande parte dos filmes nacionais centre suas narrativas em universos de sertão, favela e periferia, os agentes oriundos desses microcosmos não têm o cinema como parte de suas práticas cotidianas. Se considerarmos os espaços alternativos de exibição públicos ou privados, os chamados “cinemas de arte”, a parcela de espectadores de cinema ainda é mais reduzida numericamente e socialmente restrita. Os próximos capítulos abordam os aspectos mais elitistas e distintivos do universo espectatorial em tais espaços sociais.