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BREVE HISTÓRIA SOCIAL DO CINEMA

2 Formação do subcampo do cinema

3.1 O naturalismo hollywoodiano e a linguagem da transparência

Em uma determinação mais ou menos consensual entre os especialistas teóricos do subcampo do cinema, chama-se de cinema clássico o período normalmente compreendido entre o surgimento da linguagem cinematográfica até meados da década de 1940, com o fim da segunda guerra mundial. Nesse período floresceu o que se convencionou classificar como o cinema narrativo clássico, surgido em Hollywood, nos EUA, e que se expandiu pelo resto do mundo ocidental, especialmente na Europa e na América Latina.

O marco originário do cinema clássico diz respeito não ao surgimento do cinema como técnica / tecnologia, mas ao aparecimento da sistematização de elementos de linguagem que permitiram compreender o cinema como uma narrativa independente de outras existentes no início do século XX. Assim, é nos EUA, com o norte-americano David Wark Griffith (1875-1948), e não na França, que a narrativa do filme de longa-metragem é estabelecida, a partir da contribuição de descobertas de vários pioneiros do cinema, inclusive franceses como Georges Méliès (1861-1938).

O marco final do cinema clássico, segundo a historiografia do cinema, está situado em meados da década de 1940, com o surgimento de escolas cinematográficas na Europa, que rompem, relativamente, com o padrão narrativo desenvolvido e firmado pelo cinema hollywoodiano da grande indústria cinematográfica. Então, é na Itália, com o neo-realismo, e posteriormente na França, com a nouvelle vague, que os especialistas teóricos do cinema costumam definir o fim de um período, simultaneamente ao início de uma nova fase, chamada de cinema moderno. É importante lembrar que, mesmo nos EUA, em 1941, com Cidadão Kane (Orson Welles), é iniciada uma etapa de renovação estética, narrativa e da linguagem cinematográfica clássica. Pode-se afirmar que o cinema de Orson Welles, o neo- realismo e a nouvelle vague são narrativas esteticamente contrapostas à narrativa hollywoodiana clássica.

O cinema neo-realista italiano é profundamente marcado e influenciado pela mudança social ocorrida entre os anos 1930 e 1940, com a derrocada da Itália, na segunda guerra mundial. A sua estética vai refletir uma sociedade desestruturada socialmente e economicamente falida. “Nova onda” seria uma tradução literal para nouvelle vague. Ao final desta segunda parte são abordadas as disposições estéticas da nouvelle vague e do neo- realismo.

Essa relativa flexibilização estética no interior do subcampo do cinema é, entretanto, restrita à atividade cinematográfica nos países europeus, como Itália e França, porque embora tenha, de alguma maneira, influenciado até mesmo o cinema mainstream hollywoodiano, tal influência só pode ser mensurada pontualmente: alguns cineastas hollywoodianos, notadamente os imigrados europeus do pós-guerra, incorporaram as novidades estéticas difundidas na Europa. O subcampo do cinema, gerador do habitus narrativo, primado do cinema comercial de entretenimento, permanece quase inalterado em relação às suas disposições estéticas, apenas “suavizando” seus filmes com as “novidades” estéticas trazidas pelos seus agentes da criação cinematográfica.

É do conceito de cinema narrativo clássico que surge o conceito derivado de narratividade. Os especialistas teóricos do subcampo do cinema arbitram o conceito de narratividade com aquele cinema instituído por Hollywood ou consagrado por ele e distribuído para o mundo ocidental como o cinema em que os elementos de linguagem e narrativa são dirigidos no sentido de estabelecer com o espectador médio profunda identificação, capaz de fazer com que o público se reconheça na tela e vivencie os dramas que são encenados pelos atores como sendo possíveis de serem vivenciados por si.

Para isso, um código narrativo foi estabelecido, quanto à fotografia:  A centralização do objeto humano nos enquadramentos dos planos.

 A distribuição equilibrada de planos abertos, médios e fechados ao longo das narrativas fílmicas.

 A iluminação dos objetos segundo uma lógica de identificação com a platéia, ou seja, privilegiando os elementos humanos e os primeiros planos.

Quanto à montagem e à edição:

 A preocupação de editar e montar o filme em uma sequência lógica, narrativa, de eventos, possibilitando o acesso mais imediato dos espectadores à informação posta em imagens e sons.

 A montagem dos planos de forma a privilegiar uma duração equilibrada dos mesmos, que possibilite a assimilação eficaz da informação audiovisual;

 Permitir que o sentido proposto pela narração seja exatamente aquele que o espectador terá,

 A relação de espaço e tempo deve ser cuidadosamente pensada para que não haja mal-entendidos em relação ao que se narra, onde e em que tempo a ação se desenrola. Por isso, o cinema induz a uma lógica temporal e continuidade que se aproxime das referências espaciais e temporais do mundo real, embora isso de fato não aconteça por razões óbvias: um filme de longa-metragem tem entre 90 e 150 minutos, em média. É apenas uma tentativa de iludir o espectador.

O cinema narrativo clássico é, muitas vezes, identificado como o naturalismo hollywoodiano. Isso faz todo o sentido, posto que foi Hollywood a indústria de cinema que primeiramente se estabeleceu como uma produtora de audiovisual voltada para os grandes públicos já na primeira década do século XX. O naturalismo hollywoodiano é o esforço empreendido para que a informação contida nos filmes seja perfeitamente assimilável pelo público como algo que é verdadeiro e real. Mesmo em narrativas de ficção-científica ou em filmes do gênero fantasia, o cinema naturalista hollywoodiano pretende que os espectadores vejam aquilo como algo naturalizado. Para isso, existe o esforço secular no investimento em técnica e tecnologia cinematográfica, cujo objetivo é exatamente a naturalização das narrativas.

No entanto, a narratividade, em si, não é uma invenção do cinema clássico norte- americano. Em verdade, o cinema praticamente pouco criou em termos narrativos, uma vez que é uma forma de expressão artística ou comunicacional que se apropriou de diversas narrativas e linguagens já pré-existentes, juntando-as e fazendo nascer a sua própria narração. Sendo assim, o cinema deve ao teatro (os diálogos, a representação dos atores), à

literatura e ao folhetim (os enredos), à música (trilhas sonoras), à própria fotografia (pois o cinema foi uma tentativa de aperfeiçoá-la).

Nesses termos, a narratividade já estava posta em praticamente todas as narrativas encontradas na literatura, no teatro, no romance, no folhetim, na ópera. Enfim, em todo tipo de espetáculo popular ou erudito, o sentido do enredo e da história estavam bastante sedimentados. Tudo o que o cinema fez foi se apropriar dessa fórmula, investindo tão fortemente nelas, a ponto de orientar e formar um habitus na estrutura de suas narrativas, consolidando um padrão existente até a atualidade, a despeito de toda tecnologia posterior ao cinema, que, eventualmente, fragmentou essa narrativa.

As novas tecnologias e mídias surgidas no final do século XX, como a internet, fragmentam a narratividade, mas, curiosamente, o subcampo do cinema comercial de longa-metragem, no pólo da produção, ainda está à margem dessa nova realidade, persistindo o habitus narrativo, que co-existe, culturalmente, com as narrativas mais fragmentadas presentes na internet. No entanto, as novas tecnologias, com seus modos de produzir imagens e suas formas de consumo não são objeto desta tese porque são compreendidas como expressões de outros subcampos derivados do campo da indústria cultural e/ou do campo artístico.

A busca da reprodução do real, no cinema narrativo, é mais identificada com a questão do naturalismo e menos com o realismo em si. O naturalismo se preocupa mais com a técnica perfeita, como trunfo para estabelecer com mais realce a identificação com a platéia, enquanto o realismo é uma proposição mais subjetiva da relação da narrativa com o espectador, tendo pouco interesse na perfeição técnica / tecnológica e na verossimilhança. Ao que parece, o naturalismo busca se aproximar do vivido pela mimese, tentando naturalizá-lo, enquanto o realismo apenas aproveita aspectos do vivido e recria uma representação do real. Assim, Hollywood estaria para o naturalismo enquanto as escolas modernas do neo-realismo e da nouvelle vague estariam para o realismo25.

25 Ver DELEUZE, G. A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 2005; e DELEUZE, G. Imagem- movimento – cinema 1. Portugal: Assírio & Alvim, 2004. A relação com o real estabelecida tanto pelo cinema clássico quanto pelo neo-realismo italiano são objeto de estudo de Gilles Deleuze, que desenvolveu duas categorias para distinguir essas narrativas cinematográficas. As expressões / conceitos “imagem-ação” e/ou “imagem-

O naturalismo hollywoodiano empreende esforços em todos os setores da técnica cinematográfica para que essa se aproxime ao máximo da desejada identificação com a platéia. Então, o roteiro é peça fundamental no processo. É a base que vai definir uma história e um enredo para o filme. Enredo é algo de relevância para a propositura da identificação com a plateia: define personagens, protagonistas e antagonistas, herói e vilões, trajetórias. O roteiro é criterioso: deve prever a jornada e ação dos heróis, artimanhas dos vilões, ajuda e auxílio dos personagens coadjuvantes, redenção e recompensa para os heróis, punição e castigo para os vilões.

São todos fundamentos essenciais da narratividade e do naturalismo hollywoodiano, que existem como estruturas fílmicas de formatos e moldes mais ou menos invariáveis. No naturalismo, é absolutamente imprescindível que haja identificação entre plateia e personagens, a ponto de essa identificação dever emocionar os espectadores. Os atores são peças fundamentais no processo de identificação das plateias. Não apenas os personagens, contextualizados em um enredo, devem promover a identificação, mas, sobretudo, o carisma dos atores que os representam é elemento de relevante contribuição no processo. È necessário que os espectadores se identifiquem com as qualidades e virtudes do herói, ao mesmo tempo em que os vilões lhes causem a devida rejeição. A polarização herói / vilão se mostra como aspecto decisivo nos processos identificatórios e é o que justifica a existência de uma jornada a ser empreendida pelo herói. Sendo assim, é igualmente interessante que os atores escolhidos para darem vida aos vilões / antagonistas sejam escolhidos de forma a convencer os espectadores das suas maléficas intenções para com o herói / protagonista.

Uma das questões mais clássicas do cinema narrativo diz respeito aos finais felizes trazidos pelos filmes. O objetivo da jornada do protagonista é a solução de seus problemas; suas conquistas serem realizadas; e eternizado o encontro com a mulher amada. Tudo isso impregnou a evolução do cinema narrativo clássico ao longo do século XX, de tal forma

movimento” designam o cinema narrativo clássico hollywoodiano, enquanto a “imagem-tempo” se refere ao cinema europeu e neo-realista italiano, uma das escolas cinematográficas que se contrapunham ao cinema narrativo clássico produzido nos EUA, amplamente estudado por Deleuze.

que é marca desse cinema o final feliz como solução para os enredos. O público assim o espera. Ou o cinema narrativo assim espera que o público deseje. Não é à-toa que no sistema industrial hollywoodiano, os filmes, antes de serem lançados, são exibidos para platéias-teste, formadas por espectadores comuns que darão a palavra final sobre a adesão ou a recusa ao filme. Filmes podem ser remontados em função do gosto desses espectadores, normalmente escolhidos dentro de um perfil que os produtores crêem ser do público-alvo potencial daquele determinado filme.

Os filmes narrativos são classificados por gêneros basilares (MARIE; AUMONT, 2003, p. 141-143): o drama e a comédia, romance, que se subdividem em subgêneros: drama romântico, melodrama, western, ação, policial, ficção-científica, épico histórico, fantasia etc. É pressuposto da indústria cinematográfica a variedade de gêneros cinematográficos. Quanto maior e mais rica ela for, mais diversificada será em relação aos gêneros, permitindo um amplo espectro de possíveis identificações com os espectadores, a partir do gosto segmentado das platéias. Alguns filmes são categorizados como apenas pertencentes a um gênero, mas é bem comum que uma mesma produção possa ser classificada como de gêneros variados. Assim, um filme pode ser um drama histórico e romance, simultaneamente.

Como nas outras artes, o gênero cinematográfico está fortemente ligado à estrutura econômica e institucional da produção. Os gêneros cinematográficos nunca foram tão claramente definidos como no cinema “clássico” hollywoodiano, em que reinava uma divisão do trabalho particularmente bem organizada (a ponto de certas empresas terem sido às vezes identificadas com a produção de gênero bem preciso, como os filmes de gângsteres da Warner, na década de 1930). Eles foram, em seguida, transformados, seja pelo excesso e pela paródia (o “supra-

western”, depois o western-spaghetti, como herdeiros do western

clássico), seja pela extinção ou pela decrepitude (a comédia musical tornou-se muito rara, o faroeste, por fim, quase inexistente), seja ainda pelas próprias modificações do referente aos quais eles estão ligados (é o caso do gênero policial). (MARIE; AUMONT, 2003, p. 142).

Os autores prosseguem na elucidação da questão do gênero cinematográfico, e de seus subgêneros e derivações de gênero, como aspecto de especial relevância para o cinema, sobretudo para o cinema narrativo:

Ao contrário de uma opinião muitas vezes emitida, não parece que o fenômeno do gênero tenha enfraquecido; mas é verdade que vários

gêneros evoluíram bastante, que outros apareceram (o filme de sabre de Taiwan, o filme de kung fu, a reconstituição “retrô” etc.), que frequentemente os filmes de gênero mostram certa ironia pra com seu pertencimento de gênero, e que vários cineastas importantes (De Palma, Ferrara e até mesmo Carpenter ou Wong Kar-wai) procuraram dar, no interior mesmo dos gêneros, uma redefinição ou, ao menos, uma reflexão que institui, também ela, uma espécie de distância. (MARIE; AUMONT, 2003, p. 142).