• Nenhum resultado encontrado

Capítulo III – Mérito e Tríplice Identidade

3.5. Tríplice identidade

3.5.1. Causa de pedir

3.5.1.3. Balanço da polêmica

Menciona-se que as teorias da substanciação e da individualização seriam o verso e anverso da mesma moeda337. Todavia, essa constatação não pode obnubilar as diferentes consequências a que se chega com a adoção de cada uma das teorias, como a limitação do julgado ao fato constitutivo, conforme preconiza a substanciação338. De acordo com essa abordagem o julgado, ao atingir o fato constitutivo, torna irrelevantes quaisquer outros fundamentos jurídicos que poderiam ser invocados pela parte sucumbente. Viu-se que a individualização acarreta situação jurídica diversa. Como a identificação do objeto litigioso ocorre à luz da relação jurídica, serão atingidos todos os fatos constitutivos que o autor poderia ter invocado339. As consequências, como se vê, não são suprimidas com as ideias de que as teorias se complementam.

No Brasil, a redação do art. 282, inc. III, do CPC/1.973 levou a doutrina a apontar o endosso legislativo à teoria da substanciação340. Sob o código vigente, cujo art. 319, inc. III,

336 TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada... Op. cit., p. 75.

337 FAZZALARI, Elio. Op. cit., p. 118: “Mi pare, peraltro, che le contrapposte soluzioni siano poco o punto distante e che, anzi, si possano giustapporre come due face della stessa realtà: propugnare, infatti, l’allegazione dei fatti costitutivi o quella del rapporto giuridico significa porsi, rispettivamente, dal punto di vista della fattispecie (sostanziale) e da quello degli effetti che ne promanano, cioèda due punti di vista perfettamente compatibili, anzi corrispondenti”. Também assim se manifesta Crisanto MANDRIOLI, Riflessioni in tema di “petitum” e di “causa petendi” (1984), p. 473, que após indicar o dilema em que se encontra a doutrina alemã, dividida entre os defensores da substanciação e da individualização, acrescenta: “Ed è altrettanto noto che la dottrina più recente, specialmente italiana, tende a superare il dilemma osservando che queste due teorie non sono che le due facce di una medesima medaglia; nel senso che l’accadimento storico non ha significato, agli effetti della individuazione della domanda, si non riferito ad una fattispecie giuridica e che vice-versa la fattispecie giuridica non può concretare la domanda se non riferita a determinati fatti nel senso di concreti accadimenti storici”. No Brasil, José Rogério Cruz e TUCCI, A causa petendi... Op. cit., p. 122, também aponta para a superação do dilema entre as teorias. Augusto Cerino CANOVA, Comentario... Op. cit. p. 48, posiciona-se contra a teoria da substanciação.

Segundo ele, referida abordagem não permite o debate sobre a definição dos fatos que compõem a demanda, pois o direito é que os define. Assim, quando o debate migrou da estrutura do processo, para a determinação do direito, a teoria da substanciação perdeu seu potencial explicativo.

338 RICCI, Gian Franco. “Individuazione” o “sostanziazione” nella reforma del processo civile, p. 1.232.

339 CORRÊA, Fábio Peixinho Gomes. O objeto litigioso no processo civil (2009), p. 74. Bruno Vasconcelos Carrilho LOPES. Limites objetivos... Op. cit., p. 55.

340 PASSOS, José Joaquim Calmon de. Comentários... Op. cit., v. III, p. 202, filia o CPC/1973 à teoria da substanciação. No mesmo sentido, José Frederico MARQUES, Manual de direito processual civil, v. I (1974), p.

175, Arruda ALVIM, Manual... Op. cit., v. II, p. 227 e Vicente Greco Filho, Direito processual civil brasileiro, v.

I (1981), p. 95. Esses autores e seus posicionamentos foram também indicados por Cruz e TUCCI, A regra da eventualidade como pressuposto da denominada teoria da substanciação (1993), p. 39. No mesmo texto, Cruz e TUCCI refere as posições de José Ignácio Botelho de MESQUITA, A causa petendi ... Op. cit., p. 154 e de Ovídio BAPTISTA, Limites objetivos da coisa julgada no atual direito brasileiro, p. 134, autores para quem o Código Buzaid não havia amparado a teoria da substanciação. Com efeito, para MESQUITA o código encampara posição

reproduz o dispositivo contido no diploma revogado, essa orientação também tem prevalecido341. Com efeito, considerando que segundo a teoria da individualização seria suficiente indicar a relação jurídica, há de se concluir que o código adota a teoria da substanciação, já que exige a indicação do fato e fundamentos jurídicos do pedido. Não basta a exposição da relação jurídica, mas se impõe a indicação do fato constitutivo. Inequívoco, portanto, que o ordenamento jurídico brasileiro adota a teoria da substanciação, ainda que ela seja suavizada pela necessidade de indicação dos fundamentos jurídicos.

Discorda-se da ideia de que a individualização seria mais conforme a um processo efetivo, voltado à pacificação, à medida que seria apta a resolver a integralidade da lide, atingindo todos os fatos constitutivos subjacentes ao pedido342. Se, por um lado, de acordo com a individualização ficam abrigados nos limites objetivos da coisa julgada todos os fatos constitutivos, basta alterar o fundamento jurídico para que a nova demanda escape aos limites anteriormente delineados343.

Sob o ponto de vista do direito positivo, crê-se que o código incorpora forma mitigada da teoria da substanciação. A razão pela qual se esposa esse entendimento, não coincide com o motivo alegado por Ovídio BAPTISTA, para quem a necessidade de narração apenas dos fatos essenciais representaria refutação à forma pura da referida concepção344. Na realidade, como já dito, o código exige que também os fundamentos jurídicos sejam elencados, o que demonstra a insuficiência da mera narração do fato constitutivo para que a demanda seja adequadamente identificada. Tanto é necessário afirmar o fato constitutivo do pedido, que a omissão do autor leva à inépcia da petição inicial (CPC, art. 319, inc. III, c/c art. 321, par. ún.).

Impõe-se, portanto, definir o que são os fundamentos jurídicos. Para MESQUITA, correspondem à “relação jurídica controvertida e o direito particular dela decorrente”345. Não se trata dos dispositivos legais invocados, mas da correlação entre o fato alegado e o pedido,

de equilíbrio entre as teorias, pois tanto o fato constitutivo, quanto o “elemento de direito”, deveriam ser indicados pelo demandante. É importante destacar que MESQUITA concebia os fundamentos jurídicos, aludidos no art. 282, inc. III, do CPC/1973, como “a relação jurídica controvertida e o direito particular dela decorrente” (p. 154).

Ovídio BAPTISTA, por sua vez, sustentava que as exigências do CPC/1973 caracterizavam “atenuação da teoria da substanciação”, à medida que somente a exposição dos fatos essenciais era exigida. Joel Dias FIGUEIRA JR., Comentários... Op. cit., v. IV, t. II, p. 43 e ss., reconhecia que a teoria da substanciação era mais acatada na doutrina. Para o processualista, contudo, referida concepção seria incapaz de resolver a lide sociológica, de modo que a teoria da individualização seria superior (p. 46).

341 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio; e MITIDIERO, Daniel. Novo curso... Op. cit., v. 2, p.

154. Com idêntico posicionamento, Luiz Rodrigues WAMBIER e Eduardo TALAMINI, Curso avançado de processo civil, v. I (1998), p. 213 e Fredie DIDIER JR., Curso... Op. cit., v. I, p. 560.

342 FIGUEIRA JR., Joel Dias. Comentários... Op. cit., v. IV, t. II, p. 46.

343 LOPES, Bruno Vasconcelos Carrilho, Limites objetivos... Op. cit., p. 56/57.

344 SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Limites objetivos da coisa julgada no atual direito brasileiro, p. 134.

345 MESQUITA, José Ignácio Botelho de. A causa petendi... Op. cit., p. 154. Com o mesmo entendimento, Joel Dias Figueira Jr., Comentários... Op. cit., v. IV, t. II, p. 48.

indicando-se os motivos pelos quais o fato leva à concessão da tutela jurisdicional requerida346. Em outras palavras, compete ao autor alegar o fato e relacioná-lo com o efeito jurídico almejado, o qual, por sua vez, vincula-se à tutela pleiteada347. Os fatos afirmados em juízo são denominados causa de pedir remota, ao passo que os fundamentos jurídicos constituem a causa de pedir próxima348.

A questão é de grande relevância. Quando ocorrerem os fatos previstos no suporte fático do dispositivo legal, diz-se que ele incidiu349. A incidência acontece independentemente da vontade das partes. São fatos essenciais, correspondentes à causa de pedir remota, aqueles que incidirem no suporte fático. Atente-se, todavia, para a profunda imbricação entre os planos fático e jurídico. O fato não é ontologicamente essencial ou secundário. Sua classificação depende do dispositivo invocado na qualificação jurídica350. Mas a causa de pedir remota sempre corresponderá, no caso concreto, ao fato essencial invocado pelo demandante.

Tome-se como hipótese o corriqueiro requerimento de condenação do réu ao pagamento da prestação contratual inadimplida. O fato constitutivo – causa de pedir remota – é a celebração do contrato. Por sua vez, o fundamento jurídico – causa de pedir próxima – é o inadimplemento. Na petição inicial o autor correlaciona esse fundamento ao pedido de tutela jurisdicional, pleiteando que o devedor seja condenado. No tocante à demarcação das causas de pedir próxima e remota, o cenário não muda perante os direitos reais. Ocorre que também no âmbito dos direitos absolutos, por força do art. 319, inc. III, do CPC, é necessário indicar o fato constitutivo351. Assim, na ação possessória de reintegração, o autor invocará a posse – causa de

346 PASSOS, José Joaquim Calmon de. Comentários... Op. cit., v. III, p. 200.

347 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio; e MITIDIERO, Daniel. Novo curso... Op. cit., v. II, p.

154. Araken de ASSIS, Cumulação de ações, Op. cit., p. 149: “Em síntese, entre a causa petendi e o pedido há de existir nexo de causa e efeito”.

348 FIGUEIRA JR., Joel Dias. Comentários... Op. cit., v. IV, t. II, p. 46 e ss. O processualista assinala que em uma demanda ressarcitória assentada em acidente de trânsito, o fundamento jurídico – causa de pedir próxima – vem a ser o dano originário do ato ilícito, ao que se pode acrescentar que a causa petendi remota é o sinistro do qual o dano se origina. Do mesmo modo, FIGUEIRA JR. afirma que em uma demanda reivindicatória o fundamento jurídico é a violação do direito de propriedade em decorrência do injusto desapossamento do proprietário, de forma que o fato constitutivo – causa de pedir remota – é a ocupação do réu. Com idêntico entendimento quanto ao ponto, caracterizando a causa de pedir remota como o fato jurídico e a próxima como fundamento jurídico, Araken de ASSIS, Cumulação de ações, Op. cit., p. 149 e Milton Paulo de CARVALHO, Do pedido no processo civil (1992), p. 94.

349 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito privado, t. I, Op. cit., p. 3: “Há o fato de legislar, que é edictar a regra jurídica; há o fato de existir, despregada do legislador, a regra jurídica; há o fato de incidir sempre que o ocorra o que ela prevê e regula”. Na mesma linha se manifesta Marcos Bernardes de MELLO, Teoria do fato jurídico, plano da existência (1985), p. 148: “O efeito fundamental da incidência consiste em criar fatos jurídicos. Sempre que incide, a norma cria fato jurídico que corresponde a seu suporte fático”.

350 DOMIT, Otávio Augusto Dal Molin. Op. cit. p. 265 e ss. Miguel Teixeira de SOUSA, Op. cit., p. 145, afirma que na causa de pedir devem constar fatos capazes de individualizar determinada pretensão de natureza processual.

Para o processualista, a causa de pedir não exerce qualquer função na fundamentação da demanda.

351 MESQUITA, José Ignácio Botelho de. A causa petendi... Op. cit., p. 153: “Ainda que a relevância do fato constitutivo residisse, apenas, na sua data, isto já seria definitivo para que não se pudesse dispensar, para o efeito

pedir remota – e o esbulho praticado pelo réu – causa petendi próxima. As alegações de posse e de esbulho são componentes da causa de pedir.

É possível que diante dos fatos articulados pelo autor o juiz perceba a incorreção da qualificação jurídica. Ocorre que os fundamentos jurídicos não se confundem com a qualificação jurídica, de modo que essa circunstância não ocasiona a improcedência, sendo possível alterar o quadro jurídico descrito pelo demandante352. Sequer haverá modificação da demanda. Nesse caso, o juiz, em atenção ao princípio da colaboração, deve reenquadrar juridicamente os fatos, intimando as partes353.

Esse entendimento, contudo, não é pacífico. Em sentido contrário, aponta-se que o princípio da demanda limita a máxima iura novit curia, de modo que o juiz não poderia alterar o enquadramento jurídico, modificando com isso a situação jurídica deduzida em juízo. Desse modo, se um escritório de contabilidade processar determinada empresa e certo advogado, alegando a prestação de serviços, a não comprovação da participação da empresa no negócio jurídico impõe a improcedência da demanda, sendo vedada a condenação motivada na responsabilidade extracontratual. Da mesma forma, se proposta demanda declaratória, não poderia o juiz corrigir a postulação e condenar o réu354.

Concorda-se que no primeiro exemplo o juiz não poderia condenar a empresa por responsabilidade extracontratual. Da mesma forma, requerida a declaração, não pode ser proferida decisão condenatória. Ocorre que no primeiro caso não há mera alteração da qualificação jurídica, mas mudança da causa de pedir. O fato constitutivo é a celebração de contrato e o inadimplemento do réu, de tal sorte que o acolhimento do pedido com base em responsabilidade extracontratual seria extra petita, pois assentado em causa de pedir diversa daquela invocada pelo autor.

Note-se que a improcedência da demanda decorre do insucesso na comprovação dos fatos alegados ou da ocorrência de fatos extintivos, modificativos ou impeditivos, sendo irrelevante para esse fim a inexatidão na qualificação jurídica. Suponha-se que o autor alegue ter sido induzido em erro na aquisição de automóvel. A incorreta qualificação pelo demandante

da identificação das ações, a indicação do fato de onde brotou o direito afirmado pelo autor”. No mesmo sentido, Eduardo TALAMINI, Coisa julgada... Op. cit., p. 74 e Araken de ASSIS, Cumulação de ações, p. 147.

352 MOREIRA, José Carlos Barbosa. O novo processo... Op. cit., p. 16, afirma a impertinência, na delimitação da causa de pedir, da qualificação jurídica e dos dispositivos legais invocados pelo demandante.

353 OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. Do formalismo... Op. cit., p. 168: “Dentro da mesma orientação, a liberdade concedida ao julgador na eleição da norma a aplicar, independentemente de sua invocação pela parte interessada, consubstanciada no brocardo iura novit curia, não dispensa a prévia ouvida das partes sobre os novos rumos a serem imprimidos ao litígio, em homenagem ao princípio do contraditório”.

354 DOMIT, Otávio Augusto Dal Molin. Op. cit., p. 289 e ss. As hipóteses indicadas no texto são retiradas dessa obra.

desse fato como coação não impede o juiz de enquadrá-lo como dolo, deferindo a tutela requerida se o fato for comprovado.

Pode-se apontar, como desfecho da análise das teorias da substanciação e da individualização, o abrigo, no código processual, da primeira, mas despida de seus contornos rígidos, eis que o autor, além do fato constitutivo (causa petendi remota), também deve apontar os fundamentos jurídicos (causa petendi próxima), compreendidos como a correlação entre o fato alegado e o pedido. A exclusiva narração do fato constitutivo, portanto, é insuficiente e enseja a inépcia da inicial (CPC, art. 319, inc. III, c/c art. 321, par. ún.).

Outline

Documentos relacionados