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Definição segundo o direito positivo

Capítulo II – Coisa Julgada: Noções Gerais

2.1. Definição segundo o direito positivo

Em uma primeira aproximação já se verifica o vínculo estreito entre coisa julgada e segurança jurídica91. O instituto tem a finalidade de imutabilizar a decisão jurisdicional de mérito, evitando a rediscussão sobre o objeto litigioso. Trata-se de elemento de encerramento fundamental ao discurso jurídico, pois a jurisdição seria irrelevante se as decisões sobre o mérito pudessem ser livremente rediscutidas92. A imutabilidade da tutela jurisdicional do direito é constitucionalmente prevista no ordenamento jurídico brasileiro (CF, art. 5º, inc. XXXVI93).

Todavia, ainda que inexistisse texto expresso sobre o tema, a coisa julgada decorreria do Estado de Direito, como reflexo dos princípios da segurança jurídica, em seu aspecto objetivo, e da proteção da confiança94.

A importância do instituto estimulou teorias que viam na coisa julgada o elemento distintivo da jurisdição em relação à atividade administrativa ou, até mesmo, a própria finalidade do processo civil95. Todavia, tem-se como premissa que o objetivo do processo é a tutela jurisdicional do Direito96. A res judicata é imprescindível para assegurar estabilidade à proteção outorgada pela jurisdição, o que não autoriza concluir que se trata do propósito da atividade jurisdicional.

91 SCHÖNKE, Adolf. Derecho procesal civil (1938), p. 270: “La cosa juzgada material, es un precioso medio de evitar resoluciones contradictorias, y con ello velar por la seguridad jurídica; pero es sólo uno de los medios de que se sirve el orden jurídico para conseguir sus fines, no siendo por sí un fin propio; tampoco puede estimársele como el centro de gravedad del proceso civil; es una de las muchas instituciones formales del orden jurídico, por lo cual como todas las restantes encuentra una limitación en las buenas costumbres y en la idea de comunidad, según la jurisprudencia; [...]”. Não se concorda com a limitação da coisa julgada pelos bons costumes. Todavia, a concepção de SCHÖNKE é equilibrada e está correta ao vislumbrar a importância da res judicata para a segurança jurídica, ressalvando o autor que o instituto não é a finalidade do processo civil. Esta consiste – SCHÖNKE não o diz – na tutela jurisdicional dos direitos.

92 MARINONI, Luiz Guilherme. Coisa julgada... Op. cit., p. 56/59.

93 Art. 5º, inc. XXXVI. A lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.

94 MARINONI, Luiz Guilherme. Coisa julgada... Op. cit., p. 62/67.

95 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; e MITIDIERO, Daniel. Novo curso de processo civil, v. II (2015), p. 620. Eduardo TALAMINI, Coisa julgada... Op. cit., p. 47, critica a concepção de que a coisa julgada seja “atributo essencial da jurisdição”. Com efeito, essa ideia acarretaria o caráter não jurisdicional de processos cujas decisões não fossem recobertas pela coisa julgada, tal como ocorre com aqueles que são encerrados por sentenças terminativas, em razão da existência de pressupostos processuais negativos ou ausência de condições da ação (CPC, art. 485, incs. V e VI). Todavia, o autor enfatiza que a coisa julgada é traço exclusivo da atividade jurisdicional, a caracterizar “reserva de sentença”, pois somente outro ato jurisdicional pode cassar ou alterar decisão anteriormente proferida pelo Poder Judiciário.

96 MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual... Op. cit., p. 120 e ss.

No plano infraconstitucional, a coisa julgada está disciplinada no art. 6º, §3º, da LINDB97, e no art. 502 do CPC. O primeiro dos dispositivos proíbe, repetindo a Constituição, que lei contradiga a coisa julgada. Essa proibição compreende não apenas atos do Poder Legislativo, mas também os do Executivo e do próprio Judiciário98. O segundo, conceitua a denominada coisa julgada material, caracterizando-a como a autoridade que torna indiscutível e imutabiliza a decisão de mérito contra a qual não caiba mais recurso99.

É notável a superioridade da redação do art. 502, quando comparado ao art. 467 do código revogado100. O dispositivo vigente, contrariamente ao seu correlato no Código Buzaid, deixa claro que apenas a decisão de mérito pode ser coberta pela coisa julgada. O emprego do vocábulo “decisão” não é destituído de significado. Faz-se alusão às decisões interlocutórias que julgam antecipadamente o mérito, nos termos dos arts. 354, par. ún., 355, incs. I e II, e 356, incs. I e II, do CPC101. Diferentemente do que sucedia no sistema anterior, também decisões interlocutórias podem resolver o mérito definitivamente, sendo passíveis de rescisão, nos termos do art. 966, caput, do CPC.

Não é suficiente, contudo, que a decisão tenha versado sobre o mérito do processo.

Exige-se ainda o trânsito em julgado, compreendido como impossibilidade de impugnação do decisum na relação processual em que fora proferido102. O trânsito em julgado ocorre em uma data definida, mas isso evidentemente não significa que tenha como causa apenas o transcurso em aberto do prazo para interposição do recurso103.

97Art. 6º. A Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada. §3º Chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba recurso. A referência ao não cabimento do recurso diz respeito somente à irrecorribilidade. A caracterização da coisa julgada como “a decisão judicial de que já não caiba recurso” é atécnica, pois a coisa julgada evidentemente não se confunde com o próprio ato decisório.

98 MARINONI, Luiz Guilherme. Coisa julgada... Op. cit., p. 61.

99 Como se verá no item 2.2, discorda-se da utilidade dessa classificação. A coisa julgada formal nada mais é que preclusão. Não sendo usado o adjetivo formal, torna-se desnecessário se referir à coisa julgada material. O emprego da expressão no texto decorre da opção legislativa.

100 Art. 467. Denomina-se coisa julgada material a eficácia, que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário. O dispositivo comete excessiva generalização ao se referir a sentenças contra as quais não seja cabível recurso. A coisa julgada, no regime anterior, não atingia todas as sentenças irrecorríveis, mas somente aquelas que tivessem decidido o mérito. Consulte-se, sobre o tema, Eduardo TALAMINI, Coisa julgada... Op. cit., p. 31.

101 DA SILVA, Ricardo Alexandre, Breves comentários ao código de processo civil (2016), p. 1.020 e ss.

102 TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada... Op. cit., p. 32, ao tratar do trânsito em julgado, menciona o “aspecto cronológico do esgotamento dos meios internos de revisão da sentença”. Note-se que à época do texto citado não havia previsão expressa de julgamento antecipado do mérito por meio de decisões interlocutórias, o que justifica a menção a “sentença”.

103 GUIMARÃES, Luiz Machado. Preclusão, coisa julgada, efeito preclusivo (1969), p. 14. “Decorre o trânsito em julgado não somente da preclusão (no sentido de perda) da faculdade de recorrer, como também de ato voluntário da parte (a aquiescência à decisão, a desistência do recurso interposto) ou ainda da natureza mesma da decisão (se irrecorrível)”. O autor aponta, talvez inadvertidamente, as três modalidades de preclusão. Cândido Rangel DINAMARCO, Instituições de direito processual civil, v. III (2001), p. 304 e ss., assinala que a

Com efeito, a inimpugnabilidade pode se originar de fato impeditivo ou extintivo do direito de recorrer. Quando o sucumbente aquiesce expressamente com a decisão (CPC, art.

1.000, caput), pratica ato incompatível com a irresignação recursal (CPC, art. 1.000, par. ún.) ou renuncia ao direito de recorrer (CPC, art. 999), caracteriza-se fato extintivo104. São fatos impeditivos a desistência do recurso (CPC, art. 998) ou o inadimplemento de multas fixadas no código, tal como ocorre nos arts. 1.021, §5º e 1.026, §3º105. Quando desiste do recurso que interpôs, não é dada ao recorrente a possibilidade de interpor novo recurso contra a mesma decisão.

A classificação dos fatos impeditivos e extintivos do poder de recorrer não é uniforme na doutrina. Há quem sustente que o reconhecimento da procedência do pedido (CPC, art. 487, inc. III, alínea “a”), a renúncia à pretensão sobre a qual se funda a ação (CPC, art. 487, inc. III, alínea “c”), a transação (CPC, art. 487, inc. III, “b”), a renúncia ao recurso e a aquiescência seriam fatos impeditivos, de modo que apenas a desistência do reclamo caracterizaria fato extintivo106.

Sublinhe-se que também a desistência da demanda levará ao trânsito em julgado (CPC, art. 485, inc. VIII). Todavia, nesse caso, inexistindo decisão sobre o mérito, não se caracteriza a coisa julgada, o que igualmente ocorre na hipótese de desistência de recurso interposto contra decisão terminativa. Há de se acrescentar que a intempestividade (CPC, 223) também acarreta a extinção do direito de recorrer, caracterizando o trânsito em julgado.

O art. 502 do CPC completa sua definição se referindo à coisa julgada como a autoridade que imutabiliza a decisão de mérito. Também nesse ponto se evidencia a superioridade da redação do dispositivo vigente em relação ao que dispunha o código revogado.

De fato, o art. 467 do CPC/1973 se referia à coisa julgada material, considerando-a eficácia do ato jurisdicional. Todavia, não se pode defini-la como eficácia ou efeito da sentença, mas como autoridade ou, segundo Enrico Tullio LIEBMAN, como “qualidade ou modo de ser dos efeitos”107.

irrecorribilidade corresponde à preclusão, que pode ser temporal, lógica ou consumativa. A exclusão do direito de recorrer, como se vê, decorre não apenas do transcurso do tempo para a prática do ato, mas também da realização de ato incompatível ou da própria interposição de recurso. É um erro, portanto, associar o trânsito em julgado apenas com o transcurso in albis do prazo para recorrer.

104 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; e MITIDIERO, Daniel. Novo curso... Op. cit., v. II, p. 518.

105 Idem, p. 521.

106 JORGE, Flávio Cheim. Teoria geral dos recursos (2003), p. 113 e ss.

107 LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e autoridade da sentença (1935), p. 5. A ideia é complementada na página seguinte da mesma obra: “A linguagem induziu-nos, portanto, inconscientemente, à descoberta desta verdade: que a autoridade da coisa julgada não é o efeito da sentença, mas uma qualidade, um modo de ser e de manifestar-se dos seus efeitos, quaisquer que sejam, vários e diversos, consoante as diferentes categorias das sentenças”. Luiz

Merece atenção a ideia presente tanto no art. 502 do código vigente, quanto no art. 467 do diploma revogado, de acordo com a qual a coisa julgada tornaria imutável e indiscutível a decisão. Essa concepção foi censurada por José Carlos Barbosa MOREIRA, para quem o trânsito em julgado – e não a coisa julgada – acarretaria a imutabilidade e a imodificabilidade do decisum. Segundo o autor, a coisa julgada surge apenas quando a decisão se torna imutável e imodificável, de modo que não se pode atribuir à res judicata a aptidão de produzir a imutabilidade108.

É possível, todavia, conceber sistema em que se possa revisar as decisões após o trânsito em julgado. Nesse caso, nada impediria que, transitada em julgado a decisão, o mérito fosse reexaminado em demanda subsequente. Isso demonstra que é a coisa julgada, não o trânsito em julgado, que estabiliza a decisão, imutabilizando-a109. A imodificabilidade na mesma relação processual é menos abrangente que a imutabilidade a impedir a rediscussão do tema em outro processo.

A definição trazida pelo art. 502 do CPC reproduz, em linhas gerais, os elementos que a doutrina brasileira, a partir de LIEBMAN, passou a empregar para a conceituação da coisa julgada. A definição legal, contudo, deixa em aberto importante questão. Não fica claro se a coisa julgada recai sobre todo o conteúdo da decisão ou se somente o efeito declaratório será por ela atingido. Essa questão será abordada adiante no item 2.4.

Acrescente-se que de um conceito legal não se pode esperar nada além dos traços gerais de determinado instituto, de modo que o art. 502 do CPC cumpre o objetivo de indicar ao intérprete as características fundamentais da coisa julgada. O conceito, construído à luz de aportes teóricos, será retomado adiante (item 2.6).

Guilherme MARINONI, Sérgio Cruz ARENHART e Daniel MITIDIERO, Novo curso.... Op. cit., v. II, p. 624/625, aplaudem a redação do dispositivo vigente ao definir a coisa julgada como autoridade. Todavia, contrariamente a LIEBMAN, sustentam que ela não se vincula a todos os efeitos da sentença, mas somente ao declaratório.

Guilherme ESTELLITA, Da cousa julgada (1936), p. 104, manifestou-se contrariamente à ideia de que a res judicata não seria um dos efeitos da decisão. Segundo o autor, a caracterização da res judicata como efeito decorreria de sua definição como imutabilidade, a qual seria o mais importante dos efeitos do ato jurisdicional.

Todavia, há atos jurisdicionais que não se estabilizam, o que mostra a incorreção da premissa do autor.

108 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Eficácia da sentença e autoridade da coisa julgada (1981), p. 107. Eduardo TALAMINI, Coisa julgada... Op. cit., p. 44, assinala que a coisa julgada seria “efeito anexo do trânsito em julgado da sentença”.

109 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; e MITIDIERO, Daniel. Novo curso... Op. cit., v. II, p. 626: “Melhor explicando: a coisa julgada é uma qualidade que torna imutável o efeito declaratório da sentença”.

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