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Cumulação de demandas, fatos essenciais e secundários

Capítulo III – Mérito e Tríplice Identidade

3.5. Tríplice identidade

3.5.1. Causa de pedir

3.5.1.5. Cumulação de demandas, fatos essenciais e secundários

A substanciação mitigada, incorporada no CPC, faz com que cada fato constitutivo represente uma causa de pedir. Como se trata de um dos elementos da demanda, a pluralidade de causae petendi leva à cumulação de ações. Isso significa que se houver um pedido, mas duas causas de pedir, terá ocorrido cumulação. Do mesmo modo, caso seja rejeitado o pedido, a apresentação de nova causa de pedir autoriza a propositura de demanda sem que a coisa julgada, na qualidade de pressuposto processual negativo, inviabilize o prosseguimento e exame de mérito do novo processo. Havendo mais de uma causa de pedir, sendo idênticas as partes e único o pedido, caracteriza-se o denominado concurso próprio. Por outro lado, assentando-se mais de um pedido, na mesma causa petendi, tem-se concurso impróprio.

É imprescindível distinguir entre diferentes causae petendi e causa de pedir assentada em mais de um fundamento. Considere-se, por hipótese, demanda em que se postule a anulabilidade de contrato de compra e venda de imóvel em razão de dolo do vendedor, dada sua omissão quanto à existência de procedimento administrativo em que se discute a proibição de moradia no local (CC, arts. 145 a 150). Se a municipalidade deliberar pela interdição do imóvel, a evicção permitirá que o comprador obtenha seu ressarcimento perante o vendedor.

Antes da perda do direito por força da decisão administrativa, pode ser postulada a anulabilidade do contrato, em razão de dolo.

Suponha-se que, proposta a demanda anulatória, o réu comprove que o autor estava ciente do procedimento administrativo, descaracterizando-se o dolo, pois não houve omissão de informações. Seria possível, nesse caso, o ajuizamento de outra demanda anulatória, na qual

359 TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada... Op. cit., p. 75.

também se alegasse dolo, ao argumento de que o vendedor omitiu a existência de ação de reintegração de posse? E se o fato constitutivo da nova demanda fosse a omissão do vendedor sobre a iminente construção de aterro sanitário no terreno contíguo, o qual também pertencia ao vendedor, que tinha ciência do assunto, mas dolosamente omitiu informações? Poderia o comprador, por outro lado, invocar coação (CC, arts. 151 a 155)?

Principia-se a análise pela última pergunta. Não há óbice à alegação de coação, pois se trata de outra causa de pedir. Contudo, para caracterizá-la, deve o demandante invocar fato que ao menos em tese represente ameaça capaz de lhe infundir fundado temor. É preciso que o fato articulado autorize a incidência do art. 151, do CC. Nessa hipótese, haveria nova causa petendi, a permitir o ajuizamento da demanda sem o óbice da coisa julgada formada no processo anterior, em que fora invocado dolo. Não se trata de diferente qualificação jurídica em torno do mesmo fato, mas de causa petendi remota diferente.

Há uma importante distinção a fazer no tocante às omissões relacionadas à ação de reintegração de posse e à iminente instalação de aterro sanitário. Trata-se, primeiramente, de fatos autônomos, cada um deles capaz de caracterizar dolo. Nesse sentido, pode-se categorizá-los como fatos essenciais, cuja ocorrência isolada permite, em tese, a caracterização de conduta dolosa a ensejar a anulabilidade do negócio jurídico. Visualizando o problema à luz da distinção entre causas de pedir remota e próxima, tem-se que as omissões do vendedor quanto à existência de interdito possessório e da iminente instalação de aterro sanitário no imóvel vizinho são fatos constitutivos da demanda anulatória, cujo fundamento jurídico – causa petendi próxima – é a existência de dolo. Essa percepção é o quanto basta para se concluir pela existência da mesma causa petendi, embora ela esteja baseada em diferentes fundamentos.

Ciente o comprador das três omissões do vendedor, consistentes na existência de procedimento administrativo, ação possessória e iminente instalação de aterro sanitário no imóvel contíguo, deve trazê-las como fundamento do pedido de dolo, sob pena de incidência da eficácia preclusiva da coisa julgada (CPC, art. 508). O ponto a reter é que a afirmação de duas ou mais causas de pedir ocasiona cumulação de demandas, o que não acontece quando mais de um fato respalda a mesma causa de pedir.

Em relação aos fatos, como visto no item 3.5.1.3 a classificação usual na doutrina os denomina essenciais ou secundários. Os primeiros correspondem ao suporte fático do dispositivo legal. São esses fatos que fazem nascer o direito invocado pelo demandante. Na ação indenizatória por ato ilícito, consistente em agressão causada ao autor pelo réu, a agressão é o fato essencial, conducente, em tese, à condenação do demandado. O emprego de algum

instrumento para causar as lesões é fato secundário. Sob outro prisma, cada um dos golpes sofridos pela vítima é fato simples ou secundário, de modo que a agressão, considerada em seu conjunto, é fato complexo360. Se tiverem ocorrido diferentes agressões, em dias diversos, cada uma delas autorizará a propositura da ação e permitirá, ao menos em tese, a condenação. Mas todas levam à caracterização da mesma causa de pedir, qual seja, a ocorrência de ato ilícito. Se o autor omitir uma das agressões, não poderá invocá-la como causa de pedir em nova ação, por força da eficácia preclusiva da coisa julgada (CPC, art. 508).

3.5.2. Pedido

Outro dos elementos da demanda é o pedido. Trata-se da providência requerida pela parte ao juiz, a fim de que lhe seja concedida a tutela jurisdicional do direito alegado. O pedido pode ser dividido em seus elementos imediato e mediato. O primeiro se refere ao provimento jurisdicional capaz de propiciar a tutela pretendida. O segundo consiste no bem da vida almejado pelo demandante361.

Na identificação de demandas para caracterização de litispendência e de coisa julgada há de se considerar tanto o pedido imediato, quanto o mediato362. Essa premissa traz interessantes desdobramentos no tocante à relação entre demandas declaratória e condenatória ajuizadas pelos mesmos interessados. Pendente ação declaratória de inexistência de débito, inexiste óbice ao ajuizamento de ação condenatória de cobrança pelo titular do direito creditório. A relação entre ambas as demandas é de continência, na forma preconizada pelo art.

56, do CPC. Por outro lado, ajuizada ação de cobrança, o provimento condenatório que dela decorre encerra verdadeira declaração, representando óbice, por força da litispendência, ao prosseguimento do processo instaurado pelo devedor363. A condenatória, como se sabe, abriga a declaração do direito364. Todavia, ao condenar, o juiz não se limita a declarar a existência do direito, mas vai além, constituindo título apto a ensejar o cumprimento de sentença por

360 ASSIS, Araken de. Cumulação de ações, Op. cit., p. 141 e ss. Eduardo TALAMINI, Coisa julgada... Op. cit., p. 77/78, Luiz Guilherme MARINONI, Sérgio ARENHART e Daniel MITIDIERO, Novo curso... Op. cit., v. II, p. 636 e ss.

361 CARVALHO, Milton Paulo de. Op. cit., p. 97. A lição é assente na doutrina brasileira, como se percebe em Frederico MARQUES, Manual... Op. cit., v. II, p. 47, Barbosa MOREIRA, O novo processo... Op. cit., p. 10 e DINAMARCO, Instituições... Op. cit., v. II, p. 118.

362 PASSOS, Joaquim José Calmon de. Comentários... Op. cit., v. III, p. 313.

363 Idem, p. 313/314. Para o jurista a relação entre a ação condenatória e a declaratória seria de conexão, não de continência.

364 LIEBMAN, Enrico Tullio. Embargos do executado (1931), p. 116.

execução365. Por esse motivo, proposta a demanda condenatória, ocorre identidade de objeto em relação à declaratória negativa posteriormente ajuizada pelo devedor, o que leva ao reconhecimento da litispendência

Considerando a distinção entre as ações declaratórias e condenatórias, é possível que seja ajuizada demanda destinada unicamente à declaração do direito, com base na qual o autor vitorioso postulará, no momento seguinte, a condenação do réu. A sentença proferida no primeiro processo, estando coberta pela coisa julgada, impede que se rediscuta o direito declarado. Na afirmação de Humberto THEODORO JR., a sentença prolatada no primeiro processo seria a causa petendi da demanda condenatória, na qual o réu poderia alegar apenas fatos supervenientes à coisa julgada366. Esse entendimento corrobora a ideia aqui defendida, de acordo com a qual a declaração está incorporada na condenação.

Pode-se criticar o entendimento de que a identidade de pedidos, para fim de reconhecimento de litispendência e de coisa julgada, seja definida sempre pelos pedidos imediato e mediato. Em relação a este, pondera-se que no processo executivo a escolha de diferente meio executório não leva à identidade de demanda, o que ocorre da mesma maneira em relação aos pedidos alternativos, em que o réu pode escolher o meio de satisfazer a prestação, cumprindo a obrigação por meio de objeto mediato diferente do que fora postulado pelo demandante, sem que isso caracterize cumulação de demandas367.

Ainda no que se refere ao objeto mediato, a identidade deve ocorrer qualitativa e quantitativamente. CHIOVENDA assinalava que se impõe verificar casuisticamente se a recusa de um bem abrange também a do outro, acrescentando que quando um dos bens puder ser

365 Esse entendimento, assente na doutrina, passou a ser questionado a partir da Lei n. 11.232/2005, que modificou o CPC/1.973, permitindo que o cumprimento de sentença por execução ocorresse na mesma relação processual, de modo que o processo se desdobraria nas fases cognitiva e executiva. Com a modificação ensejada pela referida lei, o código passou a considerar títulos executivos “a sentença proferida no processo civil que reconheça a existência de obrigação de fazer, não fazer, entregar coisa ou pagar quantia” (CPC, art. 475 – N, inc. I). Essa redação permitiu que se sustentasse a ideia de que as sentenças declaratórias também permitiriam a deflagração do cumprimento de sentença por execução. Parte da doutrina resistia a esse posicionamento, como se vê em Luiz Guilherme MARINONI e Sérgio ARENHART, Execução (2007), p. 108/109, Eduardo TALAMINI, “‘Sentença que reconhece obrigação’ como título executivo (CPC, art. 475 - N, I – acrescido pela lei n. 11.232” (2006), p.

19/43 e Ricardo Alexandre da SILVA, Sentenças declaratórias: títulos executivos? (2012), p. 679/685. O código vigente, ao indicar os títulos executivos judiciais, manteve a redação do diploma revogado (CPC, art. 515, inc. I).

Luiz Guilherme MARINONI, Sérgio ARENHART e Daniel MITDIERO, Novo código ... Op. cit., p. 531, argumentam que as sentenças declaratórias, tal como as constitutivas, são autossuficientes, não necessitando de atividades posteriores para sua efetivação. Ocorre que os provimentos exarados com fundamento no art. 515, inc.

I, carecem de atividades executivas, de modo que não são autossuficientes, o que afasta a possibilidade de classificá-los como declaratórios. São, na realidade, decisões condenatórias, a exigir a deflagração da fase de cumprimento de sentença para que o direito seja tutelado. Assim, também sob o código vigente deve prevalecer o entendimento de que a natureza das decisões emanadas à luz do art. 515, inc. I, é condenatória.

366 THEODORO JR., Humberto. Coisa julgada, ação declaratória seguida de condenatória (1996), p. 96/97.

367 ASSIS, Araken de. Cumulação de ações, Op. cit., p. 156/157.

considerado individualmente e também como fração do mais amplo, a recusa do maior não enseja obrigatoriamente a do menor368. Ao autor incumbe indicar o bem com suas especificações369.

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