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Teoria ampliativa da eficácia preclusiva

Capítulo IV. Questões prejudiciais de mérito e ampliação dos limites objetivos da coisa julgada

4.4. Imutabilização da questão prejudicial e eficácia preclusiva da coisa julgada

4.4.2. Teoria ampliativa da eficácia preclusiva

A doutrina brasileira majoritária entende que a eficácia preclusiva se refere à causa de pedir indicada no objeto litigioso. Mesmo adotando essa abordagem, que pode ser denominada de restritiva, ocorre discrepância em relação ao critério da tríplice identidade, à medida que a doutrina, como se viu no exame do exemplo formulado por Barbosa MOREIRA, acaba exorbitando os efeitos da eficácia preclusiva para outras causas de pedir.

Analisando o tema sob a vigência do CPC/1973, Araken de ASSIS defendeu a ampliação da eficácia preclusiva para outras causas de pedir. Sua abordagem está baseada na

519 MOREIRA, José Carlos Barbosa. A eficácia preclusiva... Op. cit., p. 102/103. O autor não menciona qual teria sido a defesa no primeiro processo. Essa informação é relevante considerando o código vigente, em que as questões prejudiciais podem ser atingidas pela coisa julgada.

520 LOPES, Bruno Vasconcelos Carrilho. Limites objetivos... Op. cit., p. 107 e ss.

521 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio; e MITIDIERO, Daniel. Novo curso... Op. cit., v. II, p.

638: “Somente as questões internas à causa determinada, relativas à ação proposta – e, portanto, referentes às mesmas partes, ao mesmo pedido e à mesma causa de pedir – é que serão apanhadas por esse efeito preclusivo, de forma a torná-las não dedutíveis em demandas diversas”.

interpretação do art. 474 do Código Buzaid (CPC, art. 508). Segundo o autor, o termo

“alegações” seria simétrico a “defesas” e se vincularia à parte final do dispositivo, que se refere ao acolhimento do pedido. Ocorre que a causa de pedir é o elemento capaz de propiciar a procedência da pretensão. Desse modo, embora tenha empregado o termo “alegações”, o CPC/1973 estaria se referindo às causas de pedir522. O entendimento pode ser aplicado também ao código vigente, cuja redação do art. 508 é substancialmente idêntica.

A teoria ampliativa é endossada sempre que se pretende aplicar a eficácia preclusiva além do objeto litigioso. Nesse sentido, a propósito, posicionou-se Bruno LOPES, reconstruindo o conceito do instituto, na vigência do CPC/1973, de modo a erigi-lo como obstáculo ao ajuizamento de demandas incompatíveis com o julgamento anterior523.

Contrariamente ao posicionamento restritivo em vigor no Brasil, na Europa tem se concretizado a tendência de ampliação da eficácia preclusiva, conforme demonstra BONATO524. Com efeito, nos termos do art. 400, da Ley de Enjuiciamiento, promulgada em 2000, o direito espanhol passou a exigir a concentração dos fatos constitutivos em uma só demanda, impondo ao autor o ônus de concentrar as causas de pedir525.

Analisando o dispositivo, Andrés de la Oliva SANTOS assinala que devem ser apresentados todos os fatos e fundamentos jurídicos em que se baseie o pedido, sendo proibida a reserva de alegação para outro processo. Acrescenta que o art. 400 não trata do concurso próprio de ações, pois não impõe o pedido de todas as pretensões atinentes a determinada constelação de fatos. O jurista sublinha que estão excluídos do alcance do dispositivo legal os fatos desconhecidos pelo autor ou aqueles cuja alegação não tenha sido possível à época da propositura da demanda. Por outro lado, em relação aos fatos conhecidos e passíveis de alegação, o segundo parágrafo do dispositivo determina que se considere as demandas idênticas para o fim de litispendência e de coisa julgada526.

522 ASSIS, Araken de. Cumulação de ações, Op. cit., p. 110. Este entendimento já havia sido exposto pelo autor em Reflexões sobre a eficácia preclusiva da coisa julgada (1988), p. 40.

523 LOPES, Bruno Vasconcelos Carrilho. Limites objetivos... Op. cit., p. 42. O autor se refere a “demandas incompatíveis com a situação jurídica definida na sentença”.

524 BONATO, Giovanni. Algumas considerações... Op. cit., p. 136.

525 Artículo 400 Preclusión de la alegación de hechos y fundamentos jurídicos. 1. Cuando lo que se pida en la demanda pueda fundarse en diferentes hechos o en distintos fundamentos o títulos jurídicos, habrán de aducirse en ella cuantos resulten conocidos o puedan invocarse al tiempo de interponerla, sin que sea admisible reservar su alegación para un proceso ulterior. La carga de la alegación a que se refiere el párrafo anterior se entenderá sin perjuicio de las alegaciones complementarias o de hechos nuevos o de nueva noticia permitidas en esta Ley en momentos posteriores a la demanda y a la contestación. 2. De conformidad con lo dispuesto en al apartado anterior, a efectos de litispendencia y de cosa juzgada, los hechos y los fundamentos jurídicos aducidos en un litigio se considerarán los mismos que los alegados en otro juicio anterior si hubiesen podido alegarse en éste.

526 SANTOS, Andrés de la Oliva. Objeto del proceso y cosa juzgada en el proceso civil (2005), p. 64/65.

Vê-se, assim, que à luz do art. 400, da Ley de Enjuiciamiento, a alegação, em uma segunda demanda, dos fatos não invocados no primeiro processo, não impede a caracterização de litispendência ou de coisa julgada. Trata-se de séria sanção ao descumprimento do ônus de alegar todas as causas de pedir, pois os fundamentos não invocados são incapazes de evitar a caracterização de litispendência ou de coisa julgada.

Também na França, como informa BONATO, houve inflexão favorável à concentração de demandas, o que ocorreu em razão do acórdão Cesareo, proferido pela Corte de Cassação527. Trata-se do famoso Caso n. 540, de 7 de julho de 2006528. O autor propusera demanda contra seu irmão, postulando crédito decorrente de serviços prestados ao pai de ambos, os quais não teriam sido remunerados. O pedido, juridicamente embasado no Código Rural, foi julgado improcedente, ao argumento de que a atividade prestada pelo autor não fora realizada no âmbito de uma exploração agrícola. Irresignado, o autor promoveu nova demanda, fundamentada no enriquecimento sem causa decorrente dos serviços não remunerados.

O pedido foi rejeitado no âmbito do duplo grau de jurisdição, de modo que o autor interpôs recurso à Corte de Cassação, alegando violação aos arts. 1.352, do Código Civil, e 480, do Código de Processo Civil, pois suas demandas foram propostas com diferentes fundamentos.

A Corte de Cassação, todavia, firmando novo posicionamento sobre o tema, negou provimento ao recurso, assentando que sobre o demandante recai o ônus de invocar o “conjunto de questões” apto a justificar seu pedido. Desse modo, a alegação de enriquecimento sem causa, que deveria ter sido apresentada já no primeiro processo, é incapaz de evitar a caracterização de identidade de ações, razão pela qual a Corte de Cassação considerou a coisa julgada como óbice à propositura da nova demanda.

Analisando o tema, Tony MOUSSA, conselheiro da Corte de Cassação, afirma que esta, por muito tempo, adotara concepção estrita de causa de pedir, concebida como o fundamento jurídico alegado pelo demandante para amparar sua pretensão. Por conta disso, a mudança de fundamento jurídico permitia o ajuizamento de nova demanda, sem que houvesse colisão com a coisa julgada. Contudo, a partir do caso Cesareo, passou a incumbir à parte concentrar todas as questões já na primeira demanda, sob pena de não poder fazê-lo em processo subsequente. MOUSSA afirma que a decisão em comento levou a jurisprudência da Corte de Cassação a debater o alcance da causa de pedir529.

527 BONATO, Giovanni. Algumas considerações... Op. cit., p. 137.

528 Cour de Cassation, 04-10.672. Arrêt n° 540 du 7 juillet 2006.

529 MOUSSA, Tony. La délimitation de la chose jugée au regard de la matière litigieuse (demande et moyens, objet et causa) (2012), p. 24 e ss. Giovanni BONATO, Algumas considerações... Op. cit. p. 137, nota de rodapé

Esse entendimento foi aplaudido por parte da doutrina, para quem a concentração de causas, exigida pela Corte de Cassação, evitaria manobras dilatórias, combateria a negligência das partes e valorizaria a lealdade processual. Em resumo, o caso Cesareo prestigiaria a coisa julgada, concebida então como instituto de política de processo em benefício da administração da justiça530.

Na Itália, segundo Giovanni BONATO, a concepção doutrinária predominante abarca, na eficácia preclusiva da coisa julgada, todas as causas de pedir capazes de fundamentar a pretensão. Nesse contexto, a teoria da individuação permite que a eficácia preclusiva atinja tudo o que se referir ao direito discutido531. Na teoria da individuação a demanda é identificada pela relação jurídica deduzida em juízo. Desse modo, ficam cobertos pela eficácia preclusiva da coisa julgada todos os fundamentos fáticos que dão lugar à pretensão.

Essa brevíssima indicação de elementos do direito comparado tem o objetivo de demonstrar as diferenças em relação ao sistema brasileiro, em que a identificação de demandas é realizada segundo o critério da tríplice identidade (CPC, art. 337, §§1º a 4º) e a causa de pedir é individualizada de acordo com a teoria da substanciação. Isso significa que os fatos constitutivos são os dados fundamentais para a caracterização da causa. Logo, modificados os fatos em que se fundamenta a pretensão, há outra demanda. Como a eficácia preclusiva se relaciona com o objeto litigioso, autor e réu podem formular outras causas de pedir sem serem tolhidos pelos limites objetivos da coisa julgada ou pela eficácia preclusiva.

De lege ferenda, em nome da segurança jurídica e da efetividade do processo, pode-se postular a concentração de alegações. A medida evitaria a dilação indevida do conflito, permitindo sua resolução em apenas um processo. Essa, contudo, não foi a posição encampada no CPC. Pode-se até afirmar que foi trilhado o caminho inverso, de prestigiar a tríplice identidade, o que fica claro com a revogação, no art. 1.072, inc. VI, do art. 98, §4º, da Lei n.

12.529/2011, dispositivo que exigia a concentração de causas em demandas cujo objeto fossem decisões do CADE.

Ao reconhecer que a eficácia preclusiva se liga aos limites objetivos, mas, a despeito disso, pode evitar a propositura de demandas praticamente incompatíveis com o julgado anterior, a doutrina cai em contradição. Ou bem a eficácia preclusiva não está restrita aos limites objetivos do julgado, e nesse caso ela inviabiliza a propositura de outras demandas

n. 52, refere outras decisões da Corte e Cassação tomadas no mesmo sentido. O jurista também indica que a doutrina francesa não é unânime sobre o assunto, havendo críticas ao ônus de concentração dos fundamentos.

530 CADIET, Loïc, NORMAND, Jacques e MEKKI, Soraya Amrani. Théorie générale du procès (2010), p. 907 e ss.

531 BONATO, Giovanni. Algumas considerações... Op. cit. p. 138.

incompatíveis com o que restou decidido, ou ela se restringe aos limites objetivos, de modo que a alteração da causa de pedir autoriza o ajuizamento de outra demanda, ainda que o pedido seja o mesmo. Da segunda demanda, contudo, não pode resultar conflito prático com o julgado precedente, pois isso implicaria excluir da coisa julgada sua função nuclear, qual seja, a estabilização do que foi decidido.

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