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Teorias da individualização e da substanciação

Capítulo III – Mérito e Tríplice Identidade

3.5. Tríplice identidade

3.5.1. Causa de pedir

3.5.1.1. Teorias da individualização e da substanciação

Em obra clássica sobre os limites objetivos da coisa julgada, Ernesto HEINITZ afirma que a máxima “da mihi factum, dabo tibi ius” impõe ao juiz a valoração da pretensão afirmada pelo autor “sob todos os possíveis pontos de vista jurídicos”. Todavia, o jurista austríaco ressalva que a conduta do demandante não pode se resumir à mera alegação de fatos, cabendo-lhe ainda indicar respectiva consequência. A demanda deve ser concreta. Por esse motivo, indaga-se se a causa petendi é a celebração de contrato de mútuo ou a circunstância de que o

319 Decorre da feição colaborativa do processo civil (CPC, arts. 6º, 9º e 10) a impossibilidade de decretação da inépcia sem que o autor seja primeiramente instado a indicar a causa de pedir.

autor, à época dos fatos, era credor do réu por força da avença320. Essa questão resume adequadamente a polêmica em torno da delimitação da causa de pedir. O autor deve apresentar os fatos constitutivos ou indicar a relação jurídica em que seu pedido está fundamentado? Como se relacionam esses diferentes aspectos da causa de pedir?

É conhecido o nexo entre a teoria da substanciação e o princípio da eventualidade, ligado à estrutura do procedimento alemão do Direito intermédio, o qual previa a realização de duas audiências. Na primeira, eram fixadas as alegações objeto de instrução probatória. Na segunda, deliberava-se sobre as provas. Em sua forma original, a substanciação se relacionava com a concepção, abandonada na contemporaneidade, de que o processo correspondia a uma série de juízos sobre fatos. O conceito de pretensão, adotado na moderna processualística alemã, já assinalava que o processo se desenvolvia para a declaração sobre a existência ou inexistência de um direito321.

A substanciação se baseia na necessidade de indicação dos fatos sobre os quais se fundamenta o litígio e se vincula à ideia de preclusão. Fatos não alegados não podem ser apreciados no processo já instaurado, tal como ocorria no antigo direito alemão, no qual a primeira audiência era destinada à fixação dos fatos. A essa teoria se contrapõe a da individualização, de acordo com a qual a causa de pedir corresponde à relação jurídica afirmada pelo autor.

Adotar uma teoria em vez da outra acarreta consequências. Empregada a individualização, tem-se que a indicação de outro título aquisitivo não modifica a demanda, de modo que a coisa julgada cobriria todos os fundamentos de aquisição possíveis322. Obtém-se solução oposta no âmbito da substanciação, em que o apontamento de outro fato constitutivo caracteriza alteração da demanda e a coisa julgada atinge todos os fundamentos jurídicos relacionados aos fatos constitutivos invocados pelo autor323.

Retomando o exemplo do contrato de mútuo, HEINITZ sustenta que o fato constitutivo corresponde à contratação, de modo que causa de pedir não é a obrigação decorrente do empréstimo, mas “o fato alegado pelo autor em apoio à afirmação de que fora realizado contrato

320 HEINITZ, Ernesto. Op. cit., p. 145. A pergunta que resume a discussão em torno da causa de pedir é formulada pelo jurista mais adiante (p. 149): “O per causa petendi si intende il fatto nel significato proprio della parola, allegato dall’attore per giustificare la sua pretesa, o invece quel rapporto o stato giuridico, su cui egli si basa”.

321 CANOVA, Augusto Cerino. Op. cit., p. 47. Miguel Teixeira de SOUSA. O objeto da sentença e o caso julgado material (1985), p. 145, afirma que na teoria da substanciação a causa de pedir corresponde ao conjunto de fatos pelo qual a pretensão processual é individualizada.

322 HEINITZ, Ernesto. Op. cit., p. 147. No mesmo sentido, afirmando que para a teoria da individualização a modificação dos títulos aquisitivos é irrelevante, José Rogério Cruz e TUCCI, A causa petendi... Op. cit., p. 115.

323 MESQUITA, José Ignacio Botelho de. A causa petendi nas ações reivindicatórias (1967), p. 141. Com idêntico entendimento, Bruno Vasconcelos Carrilho LOPES, Limites objetivos... Op. cit., p. 151.

de mútuo”324. Os fatos constitutivos estão previstos no suporte fático da regra jurídica, de modo que sua incidência faz surgir o direito. Isso, todavia, não significa que eles efetivamente tenham ocorrido. Há somente afirmação na petição inicial, sendo a incerteza uma das características da causa de pedir325.

Analisando a jurisprudência italiana, HEINITZ indicou julgado da Corte de Cassação em que o tribunal afirmou que cabe às partes deduzir os fatos, incumbindo ao juiz qualificá-los juridicamente, o que significa que a causa petendi se limita ao fato constitutivo, impondo-se ao juiz a análise de todos os direitos que dele decorrem326. A despeito desse posicionamento jurisprudencial, para o processualista a teoria da individualização era preferível, pois o conceito de pretensão processual que dela se origina estaria mais próximo ao de pretensão substancial que aquele decorrente da teoria da substanciação. Para esta, determinada pretensão processual pode se assentar em vários direitos subjetivos, ao passo que a teoria da individualização, mais rente ao direito material, assenta que cada direito subjetivo conduz a uma diferente pretensão327. Ao analisar as duas concepções, Gian Franco RICCI afirma que a teoria da individualização é preferível sob o ponto de vista da dogmática pura, pois um sistema processual pautado na certeza deveria permitir que se soubesse, desde o início do processo, o que realmente as partes pretendem com a postulação. Contudo, o próprio jurista reconhece que só raramente a demanda é apresentada de forma completa já na sua propositura. A substanciação, segundo RICCI, apresenta contornos mais práticos, mas acarreta perda da economia processual, à medida que o mesmo direito pode ser postulado à luz de outro fato constitutivo. Essa afirmação, contudo, deve ser harmonizada com o reconhecimento de que a coisa julgada cobre, de acordo com a substanciação, todos os direitos que poderiam nascer do fato constitutivo invocado328.

324 HEINITZ, Ernesto. Op. cit., p. 150.

325 ASSIS, Araken de. Cumulação de ações, Op. cit., p. 207/208.

326 HEINITZ, Ernesto.Op. cit., p. 151.

327 Idem, p. 151/152. O ponto é articulado com grande precisão por José Ignácio Botelho de MESQUITA, A causa petendi... Op. cit., p. 143/144. Como para HEINITZ cada direito leva somente a uma pretensão processual, o provimento jurisdicional, ao decidir apenas sobre um direito, permite que se possa submeter ao juízo nova pretensão, reflexo de outro direito, baseada no mesmo fato constitutivo e em “diverso suporte jurídico, donde não se poder prescindir, na definição da causa petendi, de todos os elementos de direito”.

328 RICCI, Gian Franco. “Individuazione” o “sostanziazione” nella reforma del processo civile (1995), p. 1.235.

ss. Augusto Cerino CANOVA, Op. cit. p. 136, destaca que sistemas jurisdicionais em que os juízos sobre fatos detêm proeminência se baseiam em regras rigidamente preclusivas, de modo que a omissão sobre determinando elemento fático inviabiliza seu exame. Contudo, na mesma linha de RICCI, afirma CANOVA que o ganho com a aceleração procedimental é perdido pela possibilidade de repetição da discussão com base em outros fatos.

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