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Liberdade das partes e processo colaborativo

1.5. Liberdade e processo

1.5.2. Liberdade das partes e processo colaborativo

A análise da tensão entre as duas acepções de liberdade traz importantes elementos para se compreender a relação entre partes e juiz no processo civil contemporâneo, o qual pode ser organizado segundo três modelos. Trata-se, logo se adianta, de tipos ideais na acepção weberiana. Isso significa que na realidade não serão encontrados, em sua pureza, quaisquer dos

73 BERLIN, Isaiah. Op. cit. p. 142. Por sua importância para a análise, transcreve-se as palavras do autor: “O sentido ‘positivo’ da palavra liberdade tem origem no desejo do indivíduo de ser seu próprio amo e senhor. Quero que minha vida e minhas decisões dependam de mim mesmo e não de forças externas de qualquer tipo. Quero ser instrumento de mim mesmo e não dos atos de vontade de outros homens. Quero ser sujeito e não objeto, ser movido por razões, por propósitos conscientes que sejam meus, não por causas que me afetem, por assim dizer, a partir de fora”.

74 BERLIN, Isaiah. Ideias políticas na era romântica (2006), p. 149. Textualmente: “O desejo de liberdade é, em primeiro lugar, o desejo de indivíduos ou grupos de não sofrer interferência de outros indivíduos ou grupos. Esse é o seu significado mais evidente, e todas as outras interpretações tendem a parecer artificiais e metafóricas”.

75 BERLIN, Isaiah. Quatro ensaios... Op. cit., p. 143 e ss. A maior identificação do autor com o conceito de liberdade negativa é explicitada em entrevista concedida a Ramin JAHANBEGLOO, Isaiah Berlin: com toda a liberdade (1990), p. 68: “A única razão pela qual sou suspeito de defender a liberdade negativa contra a positiva é por achá-la mais civilizada, é por pensar que o conceito da liberdade positiva, bem entendido como essencial a uma existência decente, tenha sido amiúde mal conduzido ou corrompido face à liberdade negativa”.

modelos apontados. Sua importância, contudo, é inconteste, pois servem como instrumento para a comparação com os sistemas reais.

Para que um sistema processual se enquadre no perfil colaborativo, é necessário que o Estado esteja organizado de modo a possibilitar a proteção da dignidade da pessoa humana, assegurando uma sociedade marcada pela liberdade, justiça e igualdade. A coordenação entre indivíduo, sociedade civil e ente estatal constitui uma relação cooperativa pautada, no âmbito jurídico, pela argumentação. No plano processual, enfatiza-se o papel do contraditório, a instruir a conduta de todas as partes, de modo que a atuação do juiz será paritária ao dialogar com as partes, mas assimétrica no momento de decidir. O processo é conduzido em atenção aos deveres de esclarecimento, consulta, prevenção e auxílio, tendo a verdade provável como elemento de orientação no processo, a fim de que seja prolatada decisão justa76.

As características do tipo colaborativo de processo contrastam vivamente com as dos modelos isonômico e assimétrico. No isonômico, estrutura-se o processo com base na confusão entre sociedade civil, Estado e cidadãos, de modo a constituir relação paritária entre o indivíduo e os poderes políticos. A prática jurídica é conduzida por uma racionalidade instrumental, na qual a dialética ocupa posição de proeminência, consistindo o contraditório em meio para o diálogo. Às partes compete buscar a verdade formal, orientando suas condutas pela boa-fé subjetiva. No modelo assimétrico o processo é projetado a partir do isolamento dos cidadãos, da sociedade civil e do Estado, de modo a prevalecer uma relação marcada pela desigualdade.

O Estado se assenhora do Direito, aplicando-o em conformidade com uma racionalidade teórica, baseada na lógica apodítica. O contraditório não passa da noção singela de bilateralidade e somente as partes devem agir com fundamento na boa-fé subjetiva. É o Estado que buscará a verdade ao conduzir o processo77.

O processo colaborativo também pode ser visto como tertium genus em relação aos modelos inquisitorial e adversarial. No primeiro prevalece o princípio inquisitivo, recaindo sobre o juiz o papel principal ao longo do desenvolvimento do processo. No segundo, prepondera o princípio dispositivo. Costuma-se, ainda, relacionar o processo adversarial a países politicamente pluralistas e liberais, ao passo que o tipo inquisitorial é referido a regimes autoritários. O modelo colaborativo se diferenciaria dos dois outros, baseando-se em nova configuração do princípio do contraditório, de acordo com a qual compete ao juiz participar do

76 MITIDIERO, Daniel. Colaboração no processo civil (2009), p. 98.

77 Idem, p. 97/98.

diálogo com as partes78. Essa necessidade decorre da constatação de que a controvérsia não chega plenamente delineada ao processo, mas é definida pelas partes e pelo juiz ao longo da tramitação79.

Convém destacar que a atribuição de maiores poderes ao juiz não pode, por si só, ser confundida com autoritarismo. No common law é conhecida a amplitude do contempt of court, sem que isso possa caracterizar como autoritário o processo civil praticado nos EUA e no Reino Unido. Mesmo um Estado mínimo terá as funções de proteger a propriedade, assegurar o cumprimento de contratos e fornecer segurança aos cidadãos, tanto em relação a ameaças externas, quanto internas. É certo, portanto, que ao juiz devem ser atribuídos poderes suficientes para que ele consiga tutelar esses direitos, o que é suficiente para se perceber que um poder judiciário forte, capaz de se sobrepor à vontade dos indivíduos mediante técnicas coercitivas e executivas convive mesmo com um modelo de Estado mínimo. Refuta-se, portanto, a apressada vinculação entre aumento de poderes do juiz e regimes autoritários.

Poder-se-ia reafirmar a mencionada correlação com o argumento de que poderes instrutórios não seriam compatíveis com regimes liberais. Todavia, outorgar ao juiz a possibilidade de produzir provas de ofício é medida adequada para que se possa reconstruir os fatos com vistas ao seu convencimento. Desde que a produção de prova, por iniciativa do juiz, esteja justificada e possa ser controlada pelas partes, não há risco de se caracterizar um processo autoritário.

O princípio da colaboração é expressamente previsto no art. 6º do CPC. Ao assinalar que todos os sujeitos devem cooperar – o que pressupõe a cooperação das partes entre si – o dispositivo termina por afirmar mais do que aquilo que é preconizado pelo princípio80. Embora a colaboração das partes possa ocorrer residualmente, não se pode esquecer que elas antagonizam entre si, em busca da vitória no processo. Há situações que permitem a atuação conjunta das partes, como ocorre quando ambas se dirigem ao juízo a fim de informá-lo que determinada decisão está em desacordo com os termos da conciliação judicialmente homologada ou com o que fora estabelecido por ocasião do saneamento compartilhado.

Todavia, excetuadas situações como essa, o antagonismo das partes condiciona sua conduta, impelindo-as a buscar a vitória no processo, à custa da sucumbência do adversário. Por esse

78 DIDIER JR., Fredie. Fundamentos do princípio da cooperação no direito processual civil português (2.010), p.

44 e ss. O autor critica corretamente o simplismo encerrado na correlação entre o modelo adversarial e regimes liberais e o modelo inquisitorial e países autoritários. Quanto ao conteúdo do princípio da cooperação, para o autor ele estaria atrelado, na condição de subprincípio, aos princípios do devido processo legal e da boa-fé processual.

79 CANOVA, Augusto Cerino. Commentario del codice di procedura civile (1.980), p. 136.

80 Nesta tese são empregados indistintamente os termos colaboração e cooperação para indicar o princípio abrigado no art. 6º, do CPC, assim como o modelo processual a ele correspondente.

motivo, ao assentar que “todos os sujeitos do processo” devem cooperar entre si, o art. 6º do CPC ampliou, incorretamente, o alcance do princípio81.

Considerada como princípio, a cooperação determina que o processo seja organizado de modo a permitir a prolação de decisão justa, redimensionando, para essa finalidade, o papel do juiz, que passa a ser paritário ao longo da tramitação, conservando-se assimétrico no momento de decidir82. O princípio da colaboração, como visto alhures, tem como conteúdo os subprincípios do esclarecimento, consulta, prevenção e auxílio. Sua previsão no art. 6º é acompanhada pela densificação em outros dispositivos, como o 9º, 10, 191 e 317, todos do CPC.

Saliente-se que o perfil cooperativo do processo civil brasileiro, decorrente da incidência do princípio da cooperação, não pode ser deturpado e se desnaturar em paternalismo.

Conquanto seja certo que o processo interessa também ao Estado, como mecanismo de resolução de conflitos e de efetivação do direito positivo, não se pode perder de vista o atendimento aos interesses das partes em juízo.

A maior autonomia concedida às partes pelo código vigente, a admitir o saneamento compartilhado (CPC, art. 357, §2º) e a celebração de convenções processuais (CPC, art. 190), assenta-se na noção de que os litigantes, por integrarem o conflito e sofrerem os percalços a ele inerentes, são os principais interessados no processo, razão pela qual deve ser respeitada sua liberdade na postulação, sendo vedadas intromissões de cunho paternalista.

Não pode o juiz, por exemplo, em atenção aos princípios da demanda e da correlação, alterar a causa de pedir ou o pedido. O mérito da demanda é demarcado pelas partes83. O autor delimita o objeto litigioso do processo quando narra a causa de pedir e formula o pedido. Por seu turno, o réu também participa da demarcação do meritum causae quando oferece reconvenção ou exceção substancial. O tema será examinado mais pormenorizadamente no capítulo III.

Saliente-se que a causa de pedir e o pedido, além da defesa substancial e da reconvenção, ao delimitarem o objeto litigioso do processo, também definem os limites

81 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; e MITIDIERO, Daniel. Novo código... Op. cit., p.

102, afirmam categoricamente que as partes não cooperam entre si: “As partes não querem colaborar. A colaboração no processo que é devida no Estado Constitucional é a colaboração do juiz com as partes. Gize-se:

não se trata de colaboração entre as partes”. No mesmo sentido, Daniel MITIDIERO, Colaboração no processo civil como prêt-à-porter? (2011), p. 62.

82 MITIDIERO, Daniel. Colaboração.... como prêt-à-porter? Op. cit., p. 61.

83 MITIDIERO, Daniel. Colaboração... Op. cit., p. 113. O autor enfatiza que não cabe ao juiz qualquer papel na definição do mérito, em razão do disposto nos arts. 2º e 141, ambos do CPC. Ao órgão jurisdicional, contudo, recairia o dever de examinar a suficiência da narrativa e a correlação entre os fatos e o pedido.

objetivos da coisa julgada, cuja ampliação para as questões prejudiciais está prevista no art.

503, §1º, incs. I a III, e §2º, do CPC84.

Importa, aqui, destacar a inviabilidade de modificação do pedido ou da causa pedir ex officio, assim como a proibição de produção de prova contrariamente ao que foi estipulado pelas partes em convenção processual85. Tampouco será possível que o juiz determine, em atenção ao interesse da parte, a substituição de seu advogado. É certo, além disso, que a busca pelo convencimento não pode levar à perda da imparcialidade, o que exige especial atenção na determinação de produção de provas de ofício, a fim de que não seja violada a igualdade no processo.

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