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Quando se relaciona a igualdade com o processo, não basta indicar a isonomia com que as partes devem ser tratadas no âmbito processual (CPC, arts. 7º e 139, inc. I). Impõe-se ainda analisar a igualdade pelo processo, entendida como a tutela jurisdicional idêntica que deve ser prestada diante de casos iguais. A abordagem dessa questão será feita a seguir.

1.4.1. Igualdade perante a lei e igualdade na lei

O tratamento isonômico é direito fundamental previsto no art. 5º da Constituição53. A igualdade de todos os cidadãos perante o ordenamento jurídico é um dos elementos estruturantes do Estado brasileiro. A igualdade perante a lei, prevista no texto constitucional, incide sobre o Poder Legislativo, a fim de que sejam proibidas distinções ilegítimas54. Trata-se da igualdade formal, a garantir que a lei seja aplicada uniformemente, sendo vedadas distinções relacionadas ao gênero, preferência sexual, etnia, idade ou origem.

A igualdade na lei se assenta na ideia de que a igualdade formal nem sempre consegue erradicar injustiças, cujo combate deve ocorrer por meio da atribuição de prerrogativas jurídicas não isonômicas desde que sejam baseadas em critérios estabelecidos com a finalidade de promover maior dignidade da pessoa humana55. Viola-se a igualdade formal, com vistas a atingir maior igualdade material.

52 FONSECA, Eduardo Gianetti. Vícios privados. Benefícios públicos? (1993), p. 153, assinala que as “regras do jogo” são insuficientes, por si sós, para garantir os melhores resultados: “As regras do jogo econômico – sejam elas quais forem e por mais brilhantes que sejam – não são capazes de produzir resultados satisfatórios caso os jogadores não possuam os atributos cognitivos e morais necessários para tirar delas bom proveito”. Conquanto possam não ser suficientes, as “regras do jogo” são imprescindíveis para que haja previsibilidade e bons resultados.

É certo, por outro lado, que a afirmação pode ser invertida: exímios e bem articulados jogadores, dotados de grande rigor moral, não produzirão resultados satisfatórios se não conhecerem as regras do jogo.

53 Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes.

54 SARLET, Ingo Wolfgang. Curso de direito constitucional (2012), p. 575.

55 SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit., p. 576.

Nos Estados contemporâneos o direito à aplicação da lei, sem distinções, tem sido sobrepujado pela igualdade material, assentada em ações afirmativas que integram políticas públicas voltadas à proteção de minorias. É nítida a tensão entre as duas acepções de igualdade.

A realização de prestações positivas, com vistas à consecução da igualdade material, pressupõe que seja violada a igualdade formal.

Com efeito, políticas públicas baseadas no conceito de justiça compensatória violam o direito subjetivo à igualdade de que são titulares os cidadãos não contemplados pelas medidas.

Não há como negar que a igualdade perante a lei é afastada em benefício da igualdade na lei.

O exame aprofundado dessa questão, contudo, transcende os limites deste trabalho56.

1.4.2. Igualdade no debate processual

No processo a igualdade perante a lei está assegurada nos arts. 7º e 139, inc. I, do CPC.

A ideia subjacente aos dispositivos é a de que as partes devem ser tratadas simetricamente. Só há processo justo quando aos litigantes forem outorgadas idênticas oportunidades e meios para atuação no processo57. Não é possível falar de contraditório efetivo sem que as partes sejam tratadas igualmente. Seria cabalmente violada a igualdade no processo se o juiz concedesse a apenas um dos litigantes a possibilidade de se manifestar sobre a prova pericial. O direito de influenciar o juízo, participando da construção da decisão, deve ser atribuído às partes igualmente.

Evidentemente há limites para a atuação do juiz na tutela da igualdade no processo.

Assim, por exemplo, é frequente inexistir equivalência entre a experiência e o conhecimento dos advogados. Ao juiz, contudo, é vedado atuar no sentido de compensar deficiências técnicas de um dos procuradores. Seria impensável majorar o prazo de uma das partes em atenção à menor experiência do seu representante judicial. Ainda mais inaceitável seria a destituição do

56 HAYEK, Friedrich August von. Direito, legislação e liberdade, v. II (1976), p. 103/104, analisa que a completa igualdade material pressupõe um governo com poderes totalitários. Ainda que o propósito das medidas governamentais seja mais modesto, a busca por maior igualdade material sempre exige coerção e, por consequência, atinge a esfera jurídica de outros cidadãos. Nas palavras do autor: “Como se vem evidenciando em setores cada vez mais amplos da política de bem-estar social, uma autoridade incumbida de alcançar resultados específicos, em benefício de indivíduos, deve deter poderes essencialmente arbitrários para compelir esses indivíduos a fazerem o que parece necessário para se chegar ao resultado requerido. Completa igualdade para a maioria não pode significar senão a igual submissão das grandes massas ao comando de uma elite que administra as suas atividades. Enquanto num governo sujeito a limitações a igualdade de direitos é possível, constituindo uma condição essencial da liberdade individual, uma reivindicação de igualdade de posição material só pode ser atendida por um governo com poderes totalitários”.

57 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; e MITIDIERO, Daniel. Novo código... Op. cit., p.

105.

patrono, ao argumento de que não desempenhara adequadamente seu ofício. Não se pode pretender que o princípio da colaboração autorize essa medida.

Vê-se, assim, que a autodeterminação das partes, que procuram no processo um instrumento para a tutela de seus direitos, limita a atuação do juiz com vistas à obtenção de igualdade material, ideal inalcançável no campo do processo. É possível que na relação processual se veja com mais clareza os prejuízos que a busca por igualdade material causa à igualdade formal. Ao procurar compensar deficiências percebidas na atuação de um dos litigantes, o juiz, além de perder sua imparcialidade, fere o direito à igualdade de tratamento previsto nos arts. 7º e 139, inc. I, do CPC.

A igualdade no processo não deve ser buscada somente pelo juiz, mas também pelo legislador. São vedadas distinções ilegítimas que deixem as partes em desigualdade. Sob esse aspecto, pode-se sustentar que os prazos em dobro para manifestação processual concedidos à Fazenda Pública no art. 183 do CPC são injustificados58. A advocacia pública é bem aparelhada, tanto no que diz respeito aos profissionais, selecionados mediante concurso público, quanto no que se refere à estrutura. A preocupação com o cumprimento dos prazos se torna justificativa ainda menos legítima quando se nota que o art. 219 do CPC determinou que a contagem ocorra somente em dias úteis, o que amplia o tempo de manifestação.

Ademais, não se pode olvidar que esse privilégio, concedido à Fazenda Pública, atua como estímulo à litigância desnecessária. É lícito supor que haveria concentração de esforços, de modo a tornar menos frequente a impugnação contra posicionamentos pacíficos na jurisprudência, se a Fazenda dispusesse do mesmo tempo para se manifestar que é outorgado aos particulares. O prazo dobrado para a Fazenda Pública é exemplo de violação à igualdade no processo.

1.4.3. Igualdade pelo processo

A processualística preocupa-se sobremaneira com a igualdade no processo, mas termina por olvidar a igualdade pelo processo, entendida como a necessidade de que casos iguais sejam tratados igualmente. Considerando que o Judiciário também constrói o Direito,

58 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil, v. II (2001), p. 580. A crítica do autor foi realizada à luz do código revogado. Luiz Guilherme MARINONI, Novas linhas do processo civil (1993), p.

164, afirma que no tratamento desigual devem estar relacionados logicamente “o fator de discriminação e a desequiparação”, sendo que a correlação entre eles deve ser verificada à luz da Constituição. No caso em tela, considerando a estrutura da fazenda, sequer existe motivo para a discriminação, o que torna a desequiparação completamente desnecessária e ofensiva à paridade de armas.

atribuindo significado ao texto legislativo, é essencial preocupar-se com a igualdade que decorre da atuação jurisdicional59.

Superada a teoria cognitivista da interpretação, segundo a qual texto é sinônimo de norma e detém apenas um sentido, que lhe é subjacente e só precisa ser revelado pelo intérprete mediante operações lógicas, abre-se espaço para a ideia de que a norma não equivale ao texto, mas resulta da interpretação60. A modificação na técnica legislativa, prevendo cláusulas abertas e conceitos jurídicos indeterminados; a atual teoria da interpretação, segundo a qual textos não se confundem com normas; e a atual teoria das normas, reconhecendo a importância normativa de princípios e postulados, consolidaram cenário propício para a atuação das Cortes Supremas, as quais colaboram com a criação do Direito e têm como função lhe conferir unidade61.

As Cortes exercem sua tarefa por meio da fixação de precedentes vinculantes, cuja obediência pelos órgãos jurisdicionais de duplo grau assegura a igualdade pelo Direito.

Percebe-se que a igualdade perante a lei é insuficiente, pois o texto legal, contrariamente ao que supunha a teoria cognitivista de interpretação, não abriga o Direito e não é suficiente para tutelá-lo62. O precedente vinculante, portanto, é técnica adequada para assegurar a igualdade pelo Direito. Conquanto a um texto seja possível adscrever mais de um sentido, diante de fatos e circunstâncias iguais, a resposta jurisdicional deve ser igual.

É preciso acrescentar que o reconhecimento de equivocidade dos textos não significa que se esteja a sustentar a impossibilidade de controle da atividade interpretativa. A interpretação será controlada pela justificação da decisão63. Há, portanto, racionalidade como controle pelo intelecto, uma das acepções empregadas por WEBER. Em outras palavras, o reconhecimento de que os textos legais são equívocos e de que o intérprete pode lhes adscrever mais de um sentido, não afasta a segurança jurídica como ideal a ser alcançado.

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