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Liberdade em suas acepções negativa e positiva

1.5. Liberdade e processo

1.5.1. Liberdade em suas acepções negativa e positiva

A liberdade é atributo essencial do homem e elemento indispensável para sua dignidade. Uma vida digna pressupõe que o homem seja livre. O Direito, instrumento de controle do poder e limitação da coerção estatal, é meio para se alcançar e assegurar a liberdade.

A despeito de sua capital importância para a humanidade, não é tarefa fácil defini-la. Tantos serão os conceitos, quanto os autores. Contudo, alguns de seus traços podem ser apontados.

No Digesto de Justiniano, D.1.5.4.pr., a liberdade corresponde à faculdade natural de fazer o que quiser, desde que não haja proibição pela força ou pelo Direito65. Não deixa de causar admiração que uma compilação do direito romano clássico, realizada no século VI, faça referência à ausência de coação como um dos elementos fundamentais do conceito de liberdade.

Também é digno de nota que o Digesto indica o direito como elemento delimitador. Disso se pode depreender, por um lado, que a imposição de regras de convivência limita o livre-arbítrio,

64 DOMIT, Otávio Augusto Dal Molin. Iura novit curia e causa de pedir (2016), p. 287.

65 No texto original: “Libertas est naturalis facultas eius quod cuique facere libet, nisi si quid vi aut iure prohibetur”.

Na tradução de Helcio Maciel França Madeira, Digesto de Justiniano (533), p. 63: “A liberdade é a faculdade natural de fazer o que a cada um apraz, a não ser que isto seja proibido pela força ou pelo direito”. Não se pretende, com essa citação, trazer o marco inicial da “linha evolutiva” do conceito de liberdade. Consideradas as profundas diferenças culturais entre a Bizâncio de Justiniano I e o ocidente pós-moderno, esse procedimento seria evidentemente artificial. Todavia, é notável que a liberdade tenha sido concebida no Digesto como a possibilidade de ação nos limites do Direito, o que torna o conceito compreensível na contemporaneidade. Tenha-se em mente, apesar disso, que a atual concepção sobre o Direito não se confunde com a que tinham os romanos ou os bizantinos.

A análise do tema, entretanto, supera os limites deste trabalho.

de modo a impedir que o homem faça tudo o que lhe apraz. Por outro lado, o conceito sinaliza que não faz sentido falar em liberdade fora da sociedade. Um indivíduo isolado é livre para fazer o que quiser, mas seu isolamento retira a importância de qualquer reflexão sobre a liberdade66. Todavia, o conceito nada diz sobre o alcance da delimitação promovida pelo Direito. Segundo a definição, o indivíduo é livre para agir dentro dos limites juridicamente traçados, de modo que a liberdade será menor à medida que os limites forem mais restritos. Sob esse aspecto, portanto, seria possível antever liberdade mesmo em meio ao despotismo.

Em texto clássico, Benjamin CONSTANT compara a liberdade dos antigos com a dos modernos. Para estes a liberdade equivaleria a não se submeter a nada senão às leis, podendo cada indivíduo expressar suas opiniões, escolher seu trabalho e dispor da sua propriedade. A liberdade, para os modernos, corresponderia ao direito de se reunir e associar, bem como de professar livremente a religião escolhida, de passar os dias segundo seus próprios desejos e de influir na administração. Para os antigos, a liberdade consistia na possibilidade de atuação política, fiscalizando atos e condutas dos dirigentes. A possibilidade de discussão pública não se fazia acompanhar por idêntica liberdade no plano privado67.

Ao distinguir entre a liberdade dos antigos e a dos modernos, Benjamin CONSTANT, inserido na modernidade, enfatizou a privacidade como o núcleo da liberdade moderna. A possibilidade de seguir livremente sua própria consciência em assuntos políticos e também no âmbito privado caracteriza a liberdade depois da Revolução Francesa. Para os modernos, a liberdade corresponde, essencialmente, à ausência de coerção, existindo áreas em que não se admite interferência de entes políticos, como a liberdade religiosa e política. É evidente que essa construção não ocorreu sem sobressaltos. No século XX, regimes totalitários, sob os quais o conceito de liberdade individual foi destruído, comprovaram que o devir histórico é constituído por rupturas. Não se pode, portanto, atribuir à história um sentido determinado.

66 FRIEDMAN, Milton. Capitalismo e liberdade (1962), p. 14. No mesmo sentido, Ludwig von MISES, Ação humana (1.949), p. 339: “Somente no contexto de um sistema social é que se pode atribuir significado à palavra liberdade”.

67 CONSTANT, Benjamin. De la liberté des anciens comparée à celle des modernes (1819), p. 260/262. Na passagem mais significativa, retirada da página 262: “Ainsi chez les anciens, l'individu, souverain presque habituellement dans les affaires publiques, est esclave dans tous les rapports privés. Comme citoyen, il décide de la paix et de la guerre; comme particulier, il est circonscrit, observé, réprimé dans tous ses mouvements; comme portion du corps collectif, il interroge, destitue, condamne, dépouille, exile, frappe de mort ses magistrats ou ses supérieurs; comme soumis au corps collectif, il peut à son tour être privé de son état, dépouillé de ses dignités, banni, mis à mort, par la volonté discrétionnaire de l'ensemble dont il fait partie. Chez les modernes, au contraire, l'individu, indépendant dans sa vie privée, n'est même dans les états les plus libres, souverain qu'en apparence. Sa souveraineté est restreinte, presque toujours suspendue; et si, à des époques fixes, mais rares, durant les quelles il est encore entouré de précautions et d'entraves, il exerce cette souveraineté, ce n'est jamais que pour l'abdiquer”.

Retornando ao conceito de liberdade, o homem é livre sempre que lhe for possível, com a finalidade de atingir seus objetivos, escolher entre condutas distintas68. Como vive em sociedade, é limitado pelo Estado, associação política especialmente destinada a fazer cumprir, mediante coerção, as regras para a vida comum69. A coerção é enxergada, portanto, como a antítese da liberdade. O Direito tem como função delimitar as esferas de livre atuação de cada indivíduo, garantindo, desse modo, que a liberdade dos demais não seja invadida70. Contudo, sob o Estado de Direito, prevalece a noção de que não pode haver interferência estatal nas opções políticas, sexuais e religiosas do indivíduo.

Sob a perspectiva liberal, o conceito entrelaça as liberdades política e econômica.

Como demonstram os países de economia planificada, sem liberdade econômica não é possível garantir a liberdade política. Por outro lado, o capitalismo é elemento necessário, embora não suficiente, para a liberdade política. Nesse contexto, a liberdade econômica é duplamente relevante para uma sociedade livre: por um lado, representa importante aspecto da própria liberdade; por outro, é meio sem o qual a liberdade política não pode ser alcançada71.

É denominada negativa a liberdade compreendida como abstenção de interferência na esfera de atuação do sujeito72. Em sua acepção positiva, relaciona-se a liberdade com a autodeterminação do indivíduo, com sua capacidade de se conduzir segundo seus próprios

68 MISES, Ludwig von. Op cit, p. 339. Nas palavras do autor: “No sentido praxeológico, o termo liberdade refere-se à situação na qual um indivíduo tem a possibilidade de escolher entre modos de ação alternativos. Um homem é livre na medida em que lhe seja permitido escolher os seus fins e os meios a empregar para atingi-los”.

69 MISES, Ludwig von. Liberalismo segundo a tradição clássica (1927), p. 64. Do mesmo autor, Ação humana, p. 340.

70 HAYEK, Friedrich August von. Op. cit., v. II, p. 125. O exame do conceito de ordem espontânea, ou kosmos, que orienta a obra do autor e também seu posicionamento frente ao Direito, foge dos objetivos deste trabalho.

71 FRIEDMAN, Milton. Op. cit., p. 10 e ss. O autor assinala que não há exemplo de país no qual tenha havido ampla liberdade política, sem que simultaneamente tivesse sido praticado regime de mercado, baseado na propriedade privada dos meios de produção e de distribuição. Por outro lado, afirma a existência de países em que a propriedade privada era o meio dominante de produção, embora não houvesse liberdade política. John DEWEY, em Liberalismo, liberdade e cultura (1935), p. 103, destaca a importância da cultura para a democracia, e, portanto, para a liberdade política, advertindo que em países totalitários as manifestações culturais são sempre controladas pelo Estado, o que indica o temor das autoridades quanto ao despertar de emoções causado pelas artes. O ponto a reter é a ideia de que o cerceamento da liberdade econômica atinge a liberdade política, também prejudicada pelo controle da liberdade de expressão.

72 BERLIN, Isaiah. Quatro ensaios sobre a liberdade (1969), p. 136. Segundo a elaboração do autor: “Diz-se normalmente que alguém é livre na medida em que nenhum outro homem ou nenhum grupo de homens interfere nas atividades desse alguém. A liberdade política nesse sentido é simplesmente a área em que um homem pode agir sem sofrer a obstrução de outros”.

desejos e critérios73. Parece claro que o desejo de não sofrer restrições por outrem é a primeira acepção em que se emprega a palavra liberdade74.

Há uma tensão entre os conceitos de liberdade positiva e negativa. Segundo Isaiah BERLIN, a ideia de autodomínio pode se perverter a partir da noção de que no indivíduo existe um ego dominante e outro dominado, sendo que o primeiro representaria a vontade real do sujeito, seu ego verdadeiro. Quando esse “ego verdadeiro” passa a ser identificado com algo maior que o sujeito, tal como um partido, uma seita ou o Estado, passa-se a admitir que essa associação imponha seus desígnios, pois ao fazê-lo, está, na verdade, buscando a liberdade superior do indivíduo. Pressupõe-se, então, que o sujeito é incapaz de perceber o que é melhor para si, ou, o que é ainda mais grave, age-se contra o indivíduo, tolhendo sua liberdade negativa, ao argumento de que, ao fim e ao cabo, é isso o que o sujeito realmente deseja75.

A noção de autodomínio é pervertida quando se sustenta que outra pessoa ou organização tem mais condições de definir o que é melhor para o indivíduo do que ele próprio o faria. Isso implica intromissão na esfera de liberdade negativa, com perda de liberdade. Um Estado que avoque para si a função de indicar o que é melhor para os cidadãos em suas diversas esferas de interação social terminará por invadir a liberdade individual, em seu aspecto negativo, em cada um dos pontos em que sua vontade substituir a do indivíduo.

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