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Questões prejudiciais e limites temporais da coisa julgada

Capítulo IV. Questões prejudiciais de mérito e ampliação dos limites objetivos da coisa julgada

4.5. Questões prejudiciais e limites temporais da coisa julgada

A coisa julgada sobre questões prejudiciais, no tocante aos limites temporais, não encerra qualquer particularidade. Assim, fatos anteriores ao ajuizamento da demanda estão compreendidos na causa de pedir invocada pelo autor. A omissão de um desses fatos inviabiliza sua alegação em processo posterior, em razão da eficácia preclusiva da coisa julgada (vide item 4.4.1). Fatos posteriores ao trânsito em julgado evidentemente não integram a causa de pedir deduzida, de modo que não são atingidos pela res judicata, nem pela eficácia preclusiva. Os fatos supervenientesdevem ser alegados pelas partes, ou apreciados de ofício, até a conclusão dos autos para que seja proferida decisão em recurso ordinário, na forma do art. 493, do CPC.

Assim, o ponto final para alegação de fatos não corresponde à conclusão para sentença, mas sim para julgamento de recurso no duplo grau de jurisdição534. Todos os fatos que sobrevierem serão considerados fatos novos, não atingidos pela coisa julgada.

No tocante às relações continuativas, o art. 505, inc. I, aplica-se às ações de trato continuado, como os alimentos. Assim, alterada a capacidade do réu ou a necessidade do autor, modifica-se o contexto fático em que fora proferida a primeira decisão, sendo autorizado o ajuizamento de nova demanda, sem que haja colisão com os limites objetivos da res judicata ou com a eficácia preclusiva. Também são atingidas as relações sucessivas homogêneas. Assim, pode-se pleitear a inexigibilidade de tributo em determinado exercício ou em relação a mais de um. Se o pedido abrangeu mais de um exercício, o reconhecimento de determinada imunidade tributária, por exemplo, não impede que o autor posteriormente requeira a incidência de outra imunidade, que lhe é mais benéfica535. Desse modo, se houver questão prejudicial atinente a relação de trato continuado, a ela se aplica esse entendimento.

533 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; e MITIDIERO, Daniel. Novo código... Op. cit., p.

521: “Em outros termos: a eficácia preclusiva da coisa julgada apanha tão somente alegações de fato não essenciais que circundam as alegações de fatos essenciais”.

534 TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada... Op. cit., p. 88.

535 Idem, p. 91 e ss.

Em todo caso, cumpre salientar que a mudança dos fatos não acarreta qualquer retroação. Apenas é dado à parte interessada submeter à apreciação jurisdicional nova pretensão, embasada em novo fundamento536.

536 MARINONI, Luiz Guilherme, ARENHART, Sérgio e MITIDIERO, Daniel. Novo curso... Op. cit., v. II, p. 628.

TESES

A racionalização do Direito na civil law, com seu forte elemento conceitual, demonstrado com muita nitidez por Max WEBER, muitas vezes negligenciou o caráter instrumental do processo, fazendo com que opções teóricas sobrepujassem necessidades práticas. Na consagrada expressão de Luiz Guilherme MARINONI, o “pensar o direito, no entanto, tornou-se um pensar pelo próprio pensar”537.

A adoção do modelo cooperativo de processo civil (CPC, art. 6º) mitiga a influência da abstração excessiva, exigindo que o juiz se concentre não nas necessidades impalpáveis do sujeito do direito, mas naquelas bastante concretas do homem real, que busca no processo o meio de proteger seus interesses jurídicos. Com efeito, ao impor ao juiz o dever de dialogar com as partes, a fim de que ocorra amplo debate sobre o objeto do processo, o princípio da cooperação permite a construção de decisões justas, que resguardem a liberdade e a igualdade dos litigantes, outorgando-lhes a possibilidade efetiva de influenciar o resultado da demanda.

O diálogo amplo e desimpedido das partes no âmbito do processo, contando com a participação do juiz, não tem como objetivo apenas resolver o litígio submetido à apreciação jurisdicional. Pretende-se, ademais, estabelecer parâmetros jurídicos pelos quais a conduta da sociedade se baseará. O processo passa a ser concebido como instrumento para a obtenção da segurança jurídica, pilar em que se assenta a dignidade da pessoa humana, indissoluvelmente ligada à liberdade e à igualdade.

A previsibilidade do Direito é imprescindível para que os cidadãos possam programar livremente suas condutas nas mais diferentes esferas de atuação social e, assim, viverem com dignidade. Três institutos jurídicos se destacam na busca pelo Direito previsível: a preclusão, o precedente vinculante e a coisa julgada. A primeira exclui direitos da parte na relação processual, a fim de assegurar a marcha do processo. O segundo define o Direito, complementando a legislação e realizando a igualdade pelo processo para impedir que casos iguais sejam julgados de forma diferente. São por ele atingidos inclusive os terceiros que não participaram do processo. A res judicata, por seu turno, vincula as partes e não prejudica terceiros (CPC, art. 506).

Ora, admitindo-se que deve ser buscada a previsibilidade das decisões judiciais, requisito para a igualdade e a liberdade, a fim de que mesmo terceiros possam orientar suas condutas à luz dos julgamentos, torna-se imprescindível que seja prestigiada a atividade

537 MARINONI, Luiz Guilherme. Novas linhas do direito processual civil, p. 12.

jurisdicional no caso concreto, exercida em determinado conjunto de fatos sobre os quais foi aplicado o Direito.

A coisa julgada tutela a liberdade ao viabilizar o encerramento do discurso jurídico e a tomada de decisões pelos litigantes a partir desse cenário. A igualdade é protegida à medida que a imutabilização propiciada pela res judicata impede contradições práticas, inviabilizando, na qualidade de pressuposto processual negativo, nova apreciação jurisdicional sobre a questão.

Contudo, a coisa julgada não proíbe as partes de disporem sobre o bem da vida, desde que se trate de direito disponível.

Sustentava-se na doutrina a impossibilidade de a coisa julgada atingir questões prejudiciais, ao argumento de que contradições lógicas, entre os fundamentos de diferentes decisões, eram aceitáveis538. Esse posicionamento foi encampado no CPC/1973. Assim, admitia-se, com fundamento na lei, a possibilidade de flagrante colisão entre premissas de diferentes decisões, proferidas pelo mesmo juízo sobre o mesmo arcabouço fático.

O contrassenso se tornava ainda mais gritante quando a questão dizia respeito ao mérito e havia sido objeto de desimpedida produção probatória, tendo sido decidida expressamente por juiz competente. Alude-se novamente à emblemática hipótese de demanda de alimentos, cuja falta de pedido expresso no tocante à paternidade impedia o reconhecimento desta, salvo se houvesse ajuizamento de ação declaratória incidental, o que implicava mais custos e tumultuava o procedimento. A paternidade, fundamento para o direito aos alimentos, podia ser exitosamente contestada em outro processo, no qual se discutisse, por exemplo, direito sucessório.

Argumentava-se que a contradição entre fundamentos seria preferível à estabilização de matéria meritória sobre a qual a parte não apresentara pedido. Em última análise, a restrição da coisa julgada ao dispositivo era justificada no princípio da demanda, vinculando-se à ideia de que as partes seriam surpreendidas com a estabilização de temas não requeridos. Entretanto, a estabilização ocorre à luz da demanda e da resposta. Só se torna indiscutível a questão que tenha sido debatida pelas partes. Não há qualquer surpresa, nem violação ao princípio da demanda, pois o mérito é delimitado em atenção à causa de pedir, ao pedido e à exceção substancial apresentada pelo réu.

Com o propósito de evitar que o conteúdo da decisão seja questionado e modificado em outro processo, o que atingiria a previsibilidade e, desse modo, a igualdade e a liberdade, o

538 CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil, v. I, p. 519. Do mesmo autor, Principii di diritto processuale civile, p. 1.153/1.154.

CPC, no art. 503, §1º, incs. I a III, e §2º, disciplina a extensão da coisa julgada à decisão das questões prejudiciais de mérito, sem que para tanto seja necessário o ajuizamento de demanda declarativa incidental. O tratamento do tema corresponde ao núcleo deste trabalho e dele são extraídas as teses abaixo indicadas, que se assentam em ideias mais amplas sobre a coisa julgada e o mérito, apontadas nos capítulos 2 e 3:

(a) a imutabilização, pela coisa julgada, atinge as questões prejudiciais de mérito, decididas expressa e incidentemente no processo, sem que seja necessária a realização de pedido pela parte interessada, o qual, se ocorrer, caracterizará a matéria prejudicial como questão principal, mantendo-a sob a esfera de incidência do art. 503, caput, do CPC;

(b) a previsão no texto da locução “questão prejudicial”, bem como a necessidade de contraditório prévio e efetivo (CPC, art. 503, §1º, inc. II), impedem que a coisa julgada recaia sobre pontos prejudiciais, entendidos como afirmações não controvertidas de fato ou de direito;

(c) as partes podem reconhecer relação jurídica fundamental, não ficando a esfera de disponibilidade restrita ao reconhecimento jurídico do pedido ou à renúncia ao direito sobre o qual se funda a pretensão;

(d) a premissa para a extensão da coisa julgada às questões prejudiciais é a existência de debate prévio e efetivo, sendo desnecessária a identificação de questão pelo juiz, embora se trate de medida recomendável à luz do princípio da cooperação (CPC, art. 6º);

(d1) precisamente porque a identificação da questão não é necessária, é possível que a coisa julgada atinja questão prejudicial no âmbito do julgamento antecipado do processo, na forma do art. 355, inc. I, do CPC, ficando igualmente autorizada a extensão na hipótese de julgamento antecipado parcial do mérito (CPC, art. 356, inc. II, c/c art. 355, inc. I);

(d2) a indicação, no dispositivo da decisão, da questão prejudicial decidida, é recomendável, mas não imprescindível, para que ela seja atingida pela coisa julgada;

(e) a locução “depender o julgamento do mérito”, prevista no art. 503, §1º, inc. I, do CPC, não impede a extensão da coisa julgada a questões prejudiciais decididas desfavoravelmente à parte vencedora, ficando obstada apenas a imutabilização de questões jurídicas substanciais que subordinam questões relacionadas a matéria processual;

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