• Nenhum resultado encontrado

CLAUDIO MONTEVERDI (1567-1643)

No documento MASSIN 1997 Historia Da Musica Ocidental (páginas 178-186)

No que diz respeito à música, o início do século XVII foi período tão inovador quanto o início do nosso século. Os aspectos revolucionários podiam já ser ampla- mente pressentidos no decorrer dos decênios precedentes. O Renascimento esgo- tara-se. E a era barroca se estabeleceu, assinalada pela definição do sistema tonai, pelo surgimento do estilo monódico, em reação contra os requintes do contra- ponto e das técnicas escolásticas, pela busca de uma expressão mais natural e pela valorização das vozes solistas. A predominância da Itália parecia incontestável: a arte vocal italiana mostrava-se incomparável. Mas essas transformações profundas produziram igualmente uma simplificação da composição musical, que conseguia tocar mais rápida e diretamente a fibra emocional do público, mas perdia alguma coisa de sua especificidade. Embora facultasse maior maleabilidade à execução musical, a técnica do baixo contínuo revelou-se, em certos casos, parcialmente responsável pelo empobrecimento da escrita musical.

O aperfeiçoamento simultâneo da orquestração e da fabricação dos instru- mentos de cordas não cessava de avançar. Os instrumentos de teclado substituem progressivamente o alaúde no acompanhamento das obras dramáticas. Multipli- cavam-se as danças (emparelhadas de acordo com os seus tempos: pavana/ga- Iharda, alemanda/saZíareZZo, passamezzolgalharda, passamezzolsaltarello...), apre- sentadas na forma de suítes, com a composição destinando-se particularmente aos conjuntos instrumentais e aos instrumentos solistas. Formas precipuamente apropriadas à execução instrumental, tais como o ricercare, a fantasia e a canzone,

328 Terceira parte: o século XVH

permitiam que o músico, segundo a expressão de Praetorius, nelas incluísse a fu- ga "para seu próprio prazer". A fuga barroca foi pouco a pouco deduzida do ricer-

care e da canzone para dar origem à sonata e ao concerto.

Em Florença, aproximadamente em 1580, formara-se em torno do conde Gio- vanni di Bardi um grupo de artistas e aristocratas, a "camerata", que se consagrava a pesquisas visando a reforçar o impacto expressivo da palavra. Com tal fim, recor- reram a um estilo melódico declamatório que gostaria de aproximar-se da mono- dia grega e implicava, por conseguinte, a recusa do ideal polifónico do Renasci- mento. Tratava-se de uma tentativa de retorno à expressão "natural" dos sentimen- tos humanos; os músicos deste cenáculo, Vincenzo Galilei, Giulio Caccini, Peri, Emilio de Cavalieri, etc, aparentemente influenciados pela estética platônica, esfor- çaram-se por forjar um estilo "representativo" (sttlo rappresentativo) baseado na utilização do recitativo. Na verdade, era preciso um modo de expressão vocal inter- mediário entre o falado e o cantado ("aquém da melodia do canto", sugeriu Peri no prefácio de sua Euridice em 1600), que constituísse uma maneira de "falar em música" (in armonía faveïlare), e encontrasse, desse modo, una certa nobile sprezza-

tura di canto. Para isso, tornava-se necessário renunciar às sutilezas do contrapon-

to herdadas das técnicas medievais, daquele contraponto considerado por Caccini, em Le nuove musiche [A nova música], como q "esquartejamento da poesia".

As propostas desse grupo estavam longe de ser unânimes. Nicola Vicentino e Zarlino adotaram uma atitude bastante crítica com relação a essa ilusão de um retorno às fontes, à possibilidade de uma ressurgência das teorias antigas. Mas é inegável que os adeptos da camerata estão na origem de gêneros como afavola, o

drama in musica e a pastorale, que anunciavam a ópera do século XVII.

A camerata, como já se disse, era atravessada por profundas dissensões. Cacci- ni, por exemplo, deixava imensa liberdade ao cantor, a despeito de certas restrições referentes ao uso de ornamentos, trilos e vocalises, como se vê em Le nuove musi-

che, enquanto Gagliano mostrava-se bem mais intolerante, insistindo em que os

ornamentos, como todo artifício vocal, deviam ser exceção, de modo a não influí- rem na compreensão do texto, nem na articulação das sílabas, conforme escreve no prefácio de Dafne, de 1608.

O certo é que esse cenáculo apresentava um aspecto deliberadamente elitista e que suas criações estavam orientadas no seguinte espírito: "... verdadeiro espetácu- lo de príncipes", diria Gagliano a respeito de sua Dafne.

O final do século caracteriza-se por uma abundância de estilos, uma fusão de idéias por vezes opostas, que coexistiam e freqüentemente confrontavam-se. Em

1590, logo depois da partida do conde Bardi para Roma, a camerata dissolveu-se. Peri, Cavalieri e Caccini tomaram as rédeas do movimento florentino de "huma- nismo musical".

Segundo o desejo expresso por Giulio Caccini em 1610 (Caccini é em geral considerado o fundador do bel canto), é preciso que "a música seja de início letra"

Claudio Monteverdi 329

e que "o ritmo e o som venham depois", que a expressão vocal fosse perfeitamente apropriada às emoções e se mostrasse capaz de traduzir a gama dos sentimentos humanos em toda a sua extensão; a tanto aspiravam igualmente Vicentino e Zar- lino. A amplificação das entonações, ritmos e características fundamentais do falar deveria revelar-se apta a instaurar essa forma de comunicação mais direta e ime- diata com a sensibilidade.

Monteverdi começou a produzir no cruzamento de dois séculos e de dois mun- dos musicais: aquele que herdara e que era caracterizado por uma escrita polifónica e contrapontística complexa e aquele que anunciava o surgimento da harmonia tonal e da monodia acompanhada. Mas, contrariamente às posições extremistas de alguns de seus contemporâneos, Monteverdi sabia que se tornara imperioso aliar o rigor do modo antigo de compor às potencialidades de expressão que a forma ma- drigalesca havia deixado pressentir. Monteverdi foi aquele que não se esquivou das aspirações — e talvez mesmo das modas — de sua época, sem a elas sacrificar um temperamento artístico insaciável e inovador.

O conflito entre sagrado e profano resolveu-se na obra de Monteverdi. O as- pecto inovador de sua música não reside apenas em seu caráter harmônico, mas fundamentalmente nas dimensões temporais que ela engendra, com suas flutua- ções de tempos e suas progressões rítmicas que enriquecem consideravelmente a força da expressão, seja ela de natureza religiosa ou profana. Em Monteverdi, a ópera, que não é mais somente alegórica, mas antes voltada a recolher a expressão dos sentimentos humanos em sua variedade, confronta o tempo narrativo da ação com o tempo musical, um "iluminando" o outro. Jogo de timbres instrumentais e vocais, exploração dos registros temporais múltiplos da consciência humana, op- ções harmônicas em estreita relação com cada situação poética — tudo concorre para a unidade dramática.

O sucesso que Monteverdi obteve na época pode ser em parte atribuído ao fato de que, por meio da ópera, ele conseguiu melhor do que ninguém transmitir no- vas idéias, superando o formalismo esotérico dos antigos sistemas.

Claudio Monteverdi nasceu em 15 de maio de 1567, em Cremona. Era o mais velho de cinco filhos de um pai médico. Sua educação musical foi confiada a Marc- Antoine Ingegnieri, mestre de capela da catedral de Cremona, que lhe transmitiu a herança da escola franco-flamenga, mas que sobretudo fez seu discípulo desco- brir a arte dos madrigalistas (Willaert, Ruffo, Cyprien de Rore, Marenzio). Apesar das influências de seus predecessores imediatos, Monteverdi permaneceu profun- damente impregnado do rigor formal e da concisão do estilo dos antigos mestres.

Paralelamente aos seus estudos musicais, Monteverdi adquiriu uma brilhante cultura humanista, apaixonando-se por poesia e filosofia. Além das técnicas de notação, estudou órgão, violino e arte vocal. Desde os quinze anos, freqüentou assiduamente a academia degli Animosi, de Cremona, que acolheu suas primeiras

permitiam que o músico, segundo a expressão de Praetorius, nelas incluísse a fu- ga "para seu próprio prazer". A fuga barroca foi pouco a pouco deduzida do ricer-

care e da canzone para dar origem à sonata e ao concerto.

Em Florença, aproximadamente em 1580, formara-se em torno do conde Gio- vanni di Bardi um grupo de artistas e aristocratas, a "camerata", que se consagrava a pesquisas visando a reforçar o impacto expressivo da palavra. Com tal fim, recor- reram a um estilo melódico declamatório que gostaria de aproximar-se da mono- dia grega e implicava, por conseguinte, a recusa do ideal polifónico do Renasci- mento. Tratava-se de uma tentativa de retorno à expressão "natural" dos sentimen- tos humanos; os músicos deste cenáculo, Vincenzo Galilei, Giulio Caccini, Peri, Emilio de Cavalieri, etc, aparentemente influenciados pela estética platônica, esfor- çaram-se por forjar um estilo "representativo" (stilo rappresentativo) baseado na utilização do recitativo. Na verdade, era preciso um modo de expressão vocal inter- mediário entre o falado e o cantado ("aquém da melodia do canto", sugeriu Peri no prefácio de sua Eurídice em 1600), que constituísse uma maneira de "falar em música" (in armonía favellare), e encontrasse, desse modo, una certa nobile sprezza-

tura di canto. Para isso, tornava-se necessário renunciar às sutilezas do contrapon-

to herdadas das técnicas medievais, daquele contraponto considerado por Caccini, em Le nuove musiche [A nova música], como o "esquartejamento da poesia".

As propostas desse grupo estavam longe de ser unânimes. Nicola Vicentino e Zarlino adotaram uma atitude bastante crítica com relação a essa ilusão de um retorno às fontes, à possibilidade de uma ressurgência das teorias antigas. Mas é inegável que os adeptos da camerata estão na origem de gêneros como afavola, o

drama in musica e a pastorale, que anunciavam a ópera do século XVII.

A camerata, como já se disse, era atravessada por profundas dissensões. Cacci- ni, por exemplo, deixava imensa liberdade ao cantor, a despeito de certas restrições referentes ao uso de ornamentos, trilos e vocalises, como se vê em Le nuove musi-

che, enquanto Gagliano mostrava-se bem mais intolerante, insistindo em que os

ornamentos, como todo artifício vocal, deviam ser exceção, de modo a não influí- rem na compreensão do texto, nem na articulação das sílabas, conforme escreve no prefácio de Dafne, de 1608.

O certo é que esse cenáculo apresentava um aspecto deliberadamente elitista e que suas criações estavam orientadas no seguinte espírito: "... verdadeiro espetácu- lo de príncipes", diria Gagliano a respeito de sua Dafne.

O final do século caracteriza-se por uma abundância de estilos, uma fusão de idéias por vezes opostas, que coexistiam e freqüentemente confrontavam-se. Em

1590, logo depois da partida do conde Bardi para Roma, a camerata dissolveu-se. Peri, Cavalieri e Caccini tomaram as rédeas do movimento florentino de "huma- nismo musical".

Segundo o desejo expresso por Giulio Caccini em 1610 (Caccini é em geral considerado o fundador do bel canto), é preciso que "a música seja de início letra"

e que "o ritmo e o som venham depois", que a expressão vocal fosse perfeitamente apropriada às emoções e se mostrasse capaz de traduzir a gama dos sentimentos humanos em toda a sua extensão; a tanto aspiravam igualmente Vicentino e Zar- lino. A amplificação das entonações, ritmos e características fundamentais do falar deveria revelar-se apta a instaurar essa forma de comunicação mais direta e ime- diata com a sensibilidade.

Monteverdi começou a produzir no cruzamento de dois séculos e de dois mun- dos musicais: aquele que herdara e que era caracterizado por uma escrita poHfônica e contrapontística complexa e aquele que anunciava o surgimento da harmonia tonal e da monodia acompanhada. Mas, contrariamente às posições extremistas de alguns de seus contemporâneos, Monteverdi sabia que se tornara imperioso abar o rigor do modo antigo de compor às potencialidades de expressão que a forma ma- drigalesca havia deixado pressentir. Monteverdi foi aquele que não se esquivou das aspirações — e talvez mesmo das modas — de sua época, sem a elas sacrificar um temperamento artístico insaciável e inovador.

O conflito entre sagrado e profano resolveu-se na obra de Monteverdi. O as- pecto inovador de sua música não reside apenas em seu caráter harmônico, mas fundamentalmente nas dimensões temporais que ela engendra, com suas flutua- ções de tempos e suas progressões rítmicas que enriquecem consideravelmente a força da expressão, seja ela de natureza religiosa ou profana. Em Monteverdi, a ópera, que não é mais somente alegórica, mas antes voltada a recolher a expressão dos sentimentos humanos em sua variedade, confronta o tempo narrativo da ação com o tempo musical, um "iluminando" o outro. Jogo de timbres instrumentais e vocais, exploração dos registros temporais múltiplos da consciência humana, op- ções harmônicas em estreita relação com cada situação poética — tudo concorre para a unidade dramática.

O sucesso que Monteverdi obteve na época pode ser em parte atribuído ao fato de que, por meio da ópera, ele conseguiu melhor do que ninguém transmitir no- vas idéias, superando o formalismo esotérico dos antigos sistemas.

Claudio Monteverdi nasceu em 15 de maio de 1567, em Cremona. Era o mais velho de cinco filhos de um pai médico. Sua educação musical foi confiada a Marc- Antoine Ingegnieri, mestre de capela da catedral de Cremona, que lhe transmitiu a herança da escola franco-flamenga, mas que sobretudo fez seu discípulo desco- brir a arte dos madrigalistas (Willaert, Ruffo, Cyprien de Rore, Marenzio). Apesar das influências de seus predecessores imediatos, Monteverdi permaneceu profun- damente impregnado do rigor formal e da concisão do estilo dos antigos mestres.

Paralelamente aos seus estudos musicais, Monteverdi adquiriu uma brilhante cultura humanista, apaixonando-se por poesia e filosofia. Além das técnicas de notação, estudou órgão, violino e arte vocal. Desde os quinze anos, freqüentou assiduamente a academia degli Animosi, de Cremona, que acolheu suas primeiras

330 Terceira parte: o século XVII

tentativas de composição, apresentando-as à inteligentsia da cidade. A partir de 1582, varias de suas obras foram publicadas (em 1582, em Veneza, os Sacroe can-

tiunculoe, vinte motetos a três vozes; em 1583, em Brescia, os Madrigali spirituals

a quatro vozes; e em 1584, em Veneza, as Canzonette a tre você). Em 1587, foi pu- blicado o seu Libro primo di madrigali [Primeiro livro de madrigais], que apresen- tava reminiscências das canzonette e no qual predominava uma atmosfera pasto- ral; esse primeiro livro ainda revela traços claros da influência de Marenzio, Wert e Andrea Gabrieli.

O madrigal aparece como o crisol da inventividade de Monteverdi, favorecen- do uma notação ora de relativa simplicidade, ora da maior sutileza. Para Monte- verdi, como para seus contemporâneos, o gênero madrigalesco permitia, segundo a observação de Roman Roland, "deixar penetrar o espírito novo, sem renunciar às formas do passado", o que era precisamente uma das mais caras aspirações do autor de Orfeo. Como a escolha do poema contribuía significativa e influentemen- te para a orientação do trabalho musical, toda obediência a princípios formais abstratos via-se irremediavelmente transgredida. Desse modo, a personalidade de Monteverdi jamais deixa de transparecer. Nos nove Hyros de madrigais em que se evidencia de modo particular a evolução do estilo desse compositor, todos os sen- timentos humanos encontraram sua modalidade musical, desde os mais leves (por exemplo, os Scherzi musicali) aos mais profundos.

Se os madrigais escritos por Monteverdi em Cremona dão testemunho de sua atração por uma determinada "imagética" musical (por exemplo, Ecco mormoral

l'onde, sobre um poema de Tasso), os que vieram depois (principalmente os que

foram compostos em Mântua) parecem afastar-se disso em proveito de relações menos realistas e mais psicológicas com o texto poético, como se não fosse tanto o mundo exterior que Monteverdi buscasse representar pela música, mas antes uma interpretação mais mtima da expressão poética. Essa tendência parece refletir a evolução quase geral da concepção madrigalesca, de vez que, aproximadamente em 1600, o realismo era também rejeitado pela camerata. As referências "figurati- vas", contudo, jamais seriam abandonadas por Monteverdi, que conseguiu equili- brar aspectos de imitação realista (por exemplo, nas cenas de guerra) e de inter- pretação psicológica.

Após a publicação do Segundo livro de madrigais, em 1590, o duque de Mântua, Vicenzo I Gonzaga, fez com que o músico ingressasse no seu serviço como cantor e intérprete de viola, sob a direção de Jacques de Wert. Nesse ambiente, Monte- verdi encontrou músicos, instrumentistas e compositores de alto valor, porque a vida artística era particularmente prestigiosa na corte de Mântua. Esta cidade, cuja capela ducal recebera os músicos mais renomados — de Palestrina a Marenzio — graças às iniciativas do pai de Vicenzo I , rivalizava em fausto com Veneza, Florença e Ferrara.

Claudio Monteverdi 331

Nessa etapa de sua vida, Monteverdi teve a oportunidade de freqüentar a elite intelectual de seu tempo: V. Galilei, Rubens, O. Vecchi. Encontrou o autor de Geru-

salemme liberata, Torquato Tasso, que viera para a corte de Mântua depois de ter

passado sete anos em um asilo: um homem dilacerado, que criava entre crises de loucura, um poeta genial a quem Monteverdi deve tantas fontes de inspiração.

Os primeiros anos que passou em Mântua, de 1590 a 1592, constituíram para Monteverdi uma espécie de período de transição, durante o qual assimilou as des- cobertas dos seus antecessores e forjou para si um estilo. Em 1592, o Terceiro livro

de madrigais fez bastante sucesso. Monteverdi teve que se desincumbir de um tra-

balho volumoso, porque eram muitas as festas no palácio ducal, onde havia con- certos semanais na Sala dos Espelhos.

Como o duque (que ocasionalmente praticava a composição musical), Monte- verdi interessava-se pela dquimia e as ciências ocultas. Mais tarde, por ocasião de sua estada na corte imperial de Rodolfo II, Monteverdi ali encontrou o mago M i - chel Maier, adepto de Paracelso, o qual, ao que tudo indica, deu-lhe a conhecer seu sistema musical derivado da simbologia alquímica.

Em 1595, Monteverdi desposou Claudia Cattaneo, filha de um músico da cor- te, ela mesma cantora de talento. No próprio ano do casamento, Monteverdi teve que deixar o lar para acompanhar o duque Vicenzo à Hungria, por ocasião de uma campanha em que este último apoiou Rodolfo II, imperador da Alemanha, contra Maomé III.

A morte de Jacques de Wert, em 1596, decerto teria feito com que Monteverdi obtivesse o posto de mestre de música da corte, mas, ausente de Mântua, ele teve que deixar passar essa oportunidade. O cargo foi concedido a Pallavicino, um mú- sico cuja envergadura estava bem distante da sua.

Nem bem retornara de Praga, Monteverdi teve novamente que deixar a Itália, desta vez para ir a Flandres, onde descobriu a arte de seus confrades flamengos na própria terra deles. Ouviu as obras de Orlando de Lassus, morto havia três anos, de Claude Le Jeune, de Jacques Mauduit, de Du Cauroy, e pôde descobrir algumas afinidades com as obras dos adeptos da camerata Bardi: o profundo interesse que estes demonstravam pelas teorias musicais da Antigüidade encontrava ressonân- cia na aplicação dos ritmos medidos à antiga, segundo os preceitos enunciados pela Pléiade.

Em 1599, antes mesmo da publicação do Quarto livro de madrigais de Monte- verdi, eclodiu uma áspera polêmica desencadeada por um cônego bolonhês, o teórico Gio Maria Artusi, em conseqüência da execução de alguns madrigais de Monteverdi. No panfleto Overo delle imperfettioni delia moderna musica (Veneza, 1600), o cônego Artusi condenava, em nome dos princípios estabelecidos princi- palmente por Zarlino, essas obras "insuportáveis ao ouvido", que "o ferem, em lugar de encantá-lo". Sustentava a argumentação em exemplos tomados de vários madrigais de Monteverdi, que só seriam publicados nos quarto e quinto livros —

por exemplo, Anima mia, perdona [Alma minha, perdoa] e Cruda AmarÜli [Cruel Amarilis], sem citar o autor e abstraindo o contexto poético indissociável do pro- jeto musical de Monteverdi. Artusi julgava antinatural e imprópria à arte vocal a utilização de certos intervalos harmônicos cromáticos: "os sentidos enlouquece- ram", declarou. As dissonâncias produzidas pela ornamentação, a independência relativa das vozes, segundo o cônego, violentavam as regras estritas do contrapon- to, da armonía propria. Por meio de novas combinações harmônicas — a aliança entre diatónico e cromático —, Monteverdi rompia deliberadamente com o prin- cípio de unidade modal que, para Artusi, deveria reinar sobre a composição de uma obra. Ora, o que Monteverdi buscava era exatamente uma harmonia que, combinada com os dois outros elementos da tríade platônica (o ritmo e o texto), fosse capaz de produzir uma melodia cuja expressão desposasse a própria essência de um texto poético.

O limiar dos séculos XVI e XVII caracterizou-se por conflitos estéticos que en- gendraram novas formas. Em 1600, apareceram, precisamente em Roma, o pri-

No documento MASSIN 1997 Historia Da Musica Ocidental (páginas 178-186)