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Tréteaux eram os trabalhos para saltimbancos, armados na feiras e cidades medievais Por extensão, o termo

No documento MASSIN 1997 Historia Da Musica Ocidental (páginas 139-159)

designa o gênero primitivo de espetáculo teatral e musical que sobre tais trabalhos se encenava. (N. T.)

A música no século XVI: Europa do Norte, França, Itália, Espanha 249

Clément Marot e outros poetas "marotos" desfrutavam de grande prestígio jun- to aos músicos parisienses da corte, como Claudin de Sermisy (ca. 1495-1562) e Pierre Certon (morto em 1572), mas também junto a músicos da província, como Clément Janequin (ca. 1485-1558), que só foi parisiense no último decênio de sua vida. Para todos os músicos de então, mesmo que estivessem a serviço de igrejas ou de capelas, a canção era um gênero maior. E suas obras, muitas vezes abundantes nesse gênero, passaram a ser publicadas, a partir de 1527, pela novíssima imprensa musical da rue de La Harpe, que Pierre Attaingnant acabara de criar.

Attaingnant dedicou a parte principal de sua primeira coleção de Chansons

nouvelles en musique [Novas canções em música] a Claudin, então chantre da Ca-

pela Real, antes de tornar-se seu "submestre". Mas, no ano seguinte, o editor pari- siense publicou um volume completo de Chansons de maître Clément Janequin [Canções de Mestre Clément Janequin], compositor que vivia muito longe de Paris, pois diversos cargos o retinham no Bordelais, de onde viria a partir para Anjou alguns anos mais tarde.

Os dois compositores conheceram desde logo um sucesso efetivo. Grande parte das cerca de 150 canções de Sermisy foram reeditadas várias vezes, e os pofifonistas e instrumentistas não se fartavam de interpretá-las e reempregá-las. Tant que vivrai [Enquanto eu viver], Dont vient cela [De onde vem isso] Jouissance vous donnerai [Júbilo vos darei]... Essas canções, todas com texto de Marot, são peças caracterís- ticas da arte de Sermisy. Attaingnant editou-as para canto e alaúde em 1529, o que atesta a mobilidade desse repertório, passível de ser cantado tanto a quatro vozes, quanto apenas ao alaúde, à moda italiana.

Janequin, embora não demonstre sempre a mesma a qualidade melódica de seu contemporâneo parisiense, revela, a um só tempo, mais fantasia e maior vivacida- de. Os grandes aíreseos descritivos (Le Chant des oiseaux [O canto dos pássaros], La

Guerre [A guerra]), publicados desde 1528, permaneceram como suas obras mais

célebres. A justo título, como testemunha Noël du Fail, quando conta que

quando se cantava a c a n ç ã o de guerra feita por Janequin diante daquele grande Francis- co, pela vitória que obtivera sobre os s u í ç o s , n ã o havia quem deixasse de verificar se sua espada estava bem embainhada, e que n ã o ficasse nas pontas dos p é s , para parecer mais forte e de maior estatura.

Na época, quase não havia instrumentistas que não houvessem tentado produ- zir um efeito como esse: durante todo o século XVI, e ainda no século XVII, as

Bataille, Battaglia e outras tantas Battel ressoaram por toda a Europa, em todos os

tipos de instrumentos.

Parece que foram os cantos dos pássaros que inauguraram essa verve descritiva de Janequin, com Le Chant de l'alouette [O canto da cotovia], do qual foi impressa uma primeira versão, anônima, para três vozes, por volta de 1520, em Veneza, pela editora de Andrea Antico. De maneira curiosa, o texto foi tomado de um antigo

virelai já musicado no século XTV. É difícil afirmar que Janequin tivesse conheci-

mento da música. Mas, de qualquer modo, ele teria podido encontrar nela a idéia geratriz de todas as suas imitações de pássaros: o jogo fónico, rítmico e contrapon- tístico construído sobre onomatopéias, espécie de linguagem-objeto, "sonoridades selvagens" sutilmente integradas ao desenvolvimento discursivo de um texto que interrompem periodicamente, instaurando assim uma alternância de estilos mu- sicais contrastados com a qual o músico joga valendo-se de mil nuances. É esta mesma técnica que o músico explora em Le Chant des oiseaux (1528) e em Le

Chant du rossignol (1537). Mais ou menos adaptada a outros objetivos, como Bataille [Batalhas], Cris de Paris [Pregões de Paris], Caquet des femmes [Cacarejo

de mulheres] e Chasse [Caça], essa técnica é incontestavehnente a principal chave do sucesso de Janequin. Pouco depois da morte deste, disse Antoine de Baï'f.

... Soit que représenter le vacarme il ose, Soit qu'il joue en ses chants le caquet féniinin, Soit que des oisillons les voix il représente, L'excellent Janequin, en tout cela qu'il chante N'a rien que soit mortel, mais i l est tout divin.1

Um pássaro, porém, não esconde a floresta: as 250 canções do "compositor habitual do rei" (Janequin recebeu este título no fim da vida) encerram outras riquezas, que lhe facultam ser ora lírico, ora elegíaco (L'Amour, la mort, la vie [O amor, a morte, a vida]), rústico (La Meunière de Vernon [A moleira de Ver- non]), gaulois, ou seja, de franqueza quase rude ( Un jour Colin [Certo dia, Colin] ), francamente erótico (Le Blason du beau tétin [O brasão da bela teta]), sem nunca deixar de ser sutil e requintado.

As canções polifónicas desse período têm aspectos musicais claramente dese- nhados: na obra de Sermisy, Janequin, Passereau, Sandrin ou Certon, o quarteto vocal é modelo generalizado. Trata-se, na maior parte das vezes, de uma voz femi- nina (ou infantil, ou mesmo de haute-contre) e três vozes masculinas mais graves, dois tenores e um baixo. O texto, bastante curto (entre quatro e dez versos), é declamado silábicamente, mas presta-se freqüentemente a inúmeras repetições, seja em razão da escrita polifónica, seja por causa dos fins expressivos. O contra- ponto, bem variado, vai da homofonia estrita das frottolle italianas à escrita em imitação, de Josquin Des Prés.

Na França, Pierre Attaingnant garante a edição da maior parte das canções. Mas, a partir de 1538, ele não detém mais o monopólio: em Lyon, cidade franquea- da para a Itália, Jacques Moderne abre uma outra firma de edição e passa a se

[Quer representar o alarido ele ouse, / Quer brinque em seus cantos com o cacarejar feminino / Quer dos pas- sarinhos as vozes represente / O excelente Janequin em tudo o que canta / Nada tem que mortal seja, pois é em tudo divino.] (N. T.)

interessar, entre outras coisas, pelo repertório profano. A dezena de livros do Para-

gon des chansons [Modelo das canções] que ele passa a imprimir atestam clara-

mente as condições da prática das canções: as quatro partes da polifonia, dispostas duas a duas, uma ao contrário da outra, eram reunidas em um mesmo volume que os cantores colocavam sobre a mesa em torno da qual se sentavam, um diante do outro, dois a dois.

nvssva tforaaans

CONTRATENOR TENOR

Desse modo situada, a canção não era percebida como um objeto de concerto, no sentido moderno do termo. Era antes um prazer convivial compartilhado "ès

maisons" (nas casas), elemento entre outros de uma arte da conversação amorosa,

cuja origem deve ser buscada nos ritos lúdicos e requintados da velha sociedade cortês. É evidente que esse sentido tende a enfraquecer-se no século XVI: dele per- maneceram alguns traços, contudo, em particular na prática das "peças ligadas", pelas quais uma canção responde a uma outra que a precede.

Assim, a famosa canção Douce mémoire [Doce lembrança], de Pierre Sandrin (morto em 1561), cujo texto atribui-se ao rei Francisco I , é seguida de uma Répon-

se, que retoma o primeiro verso da outra, "Fini le bien le mal soudain commence"

[Findo o bem, o mal então começa], musicada por Pierre Certon.

O repertorio publicado em Lyon ou em Paris distingüe-se sensivelmente de seu homólogo das províncias do Norte, difundido pelo impressor de Antuérpia, Tyl- man Susato, a partir de 1543. Os polifonistas flamengos, como Thomas Créquillon (morto cerca de 1557), Nicolas Gombert (ca. 1500-1556), Clemens Non Papa

(ca. 1510-1558), permaneceram ainda excessivamente presos ao modelo de Jos-

quin Des Prés. O contraponto, embora permeável ao exemplo "parisiense", princi- palmente ao de Janequin, é bem mais prolixo e denso. Apesar de usarem, também eles, o padrão efetivo do quarteto vocal, não hesitam em livrar-se dele para adotar grupos maiores, com cinco, seis, sete ou mesmo mais vozes. A própria escrita canó- nica, cuja prática fora quase totalmente abandonada pelos parisienses, pois era excessivamente limitadora para a fantasia deles, ainda tinha encantos para os ou- vidos provincianos, em particular quando os compositores exploravam temas vin- dos de outras polifonias, como as Faute d'argent e as Petite Camusette, que Adrien Willaert ou Thomas Créquillon haviam retomado na esteira de Josquin Des Prés.

Precisamente nos anos 1545-1555, evidencia-se o contraste entre a canção pa- risiense e a canção franco-flamenga. De fato, na mesma época em que Susato di- fundia as obras de Gombert, Créquillon e outros, um novo estilo de canção afir-

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mava-se em Paris, fazendo brilhar os nomes de Sandrin, Boyvin, Arcadelt, Morna- ble e Certon. A influência italiana das frottole tornou-se ainda mais decisiva, ao que tudo indica, juntamente com a da dança e, sem dúvida, com a marca de alguns poetas italianizantes, como Mellin de Saint-Gelais. Os traços característicos dessa canção parisiense estavam claramente definidos: estrita homofonia das quatro vo- zes, rigoroso silabismo, texto construído em estrofes, que prendem a música que se repete. As canções com esse perfil invadiram pouco a pouco as últimas publicações de Attaingnant, e, em 1552, esse novo estilo encontrou sua verdadeira consagração no Premier livre de chansons [Primeiro livro de canções], de Pierre Certon, publicado pela nova impressora de música parisiense, de Adrian Le Roy e Robert Ballard, os primeiros de uma promissora dinastia.

Os timbres melódicos das canções de Certon já eram populares? Ou tornaram- se populares mais tarde? A maior parte delas encontra-se no famoso Recueil des plus

belles et excellentes chansons en forme de voix de ville [Coletânea das mais belas e

excelentes canções em forma de vozes da cidade], reunidas por Jehan Chardavoine, em 1576, única publicação de canções monódicas que nos legou o século XVI na França. Entre 1552 e esta última data, as mesmas melodias haviam sido utilizadas por outros músicos, principalmente pelo próprio Adrian Le Roy, primeiro em 1555, no Second livre de guiterre [Segundo livro de guiterre], depois em 1573, em seu

Premier livre de chansons en forme de vau de ville [Primeiro livro de canções em

forma de vau de ville]. Seja qual for a origem da expressão vau de ville, ela designa bastante bem, nas palavras de Le Roy, essas "canções da corte, bem mais leves (que antigamente se chamavam 'voix de ville', e atualmente árias de corte)", tal como ele mesmo explica em seu Livre d'airs de cour mis sur le luth [Livro de árias de corte acompanhadas por alaúde].

O Second livre de guitare [Segundo livro de guitare], que apresenta tais canções naquela que seria a sua forma mais apreciada no final do século XVI e durante o sé- culo XVII, ou seja, para voz acompanhada {guitare ou alaúde), volta a sugerir o modelo italiano. Desde a época de Francisco I , eram numerosos os instrumentistas italianos na corte francesa: eles puderam contribuir para desenvolver a prática do "canto ao alaúde", cujo hábito já ficara atestado nas tablaturas de Attaingnant em 1529. Mas os poetas — e bem antes de Ronsard — não ficaram indiferentes à

poesia per musica de seus vizinhos de ultramonte. Mellin de Saint-Gelais, por

exemplo, adorava declamar ou cantar seus poemas fazendo-se acompanhar do alaúde. Um de seus textos, Hélas, mon dieu [Infelizmente, meu Deus] utilizado por Certon e Le Roy, traz a menção: "Lamento amoroso para dizer-se ao alaúde em canto italiano." Outro, Puisque nouvelle affection [Vez que nova afeição], tinha co- mo subtítulo "nova canção sobre o canto de uma italiana de vida alegre".

O já mencionado Livre de guiterre dá igualmente testemunho da aproximação com a dança: cada canção está associada a um tipo de dança — "galharda", "pava- na", "branle gay", "branle de Poitou", conforme o caso.

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A hipótese é tentadora: esse repertório de "canções em forma de vau de ville" poderia ser, em grande número de casos, nada mais que a adaptação de novas letras a timbres conhecidos, principalmente oriundos da dança e simplesmente arranjados em quatro partes. É isso que parece significar o título de uma coletânea de textos: Chansons nouvelles composées sur les plaisants chants qu'on chante à pre-

sent... [Canções novas compostas sobre os mesmos e agradáveis cantos que se can-

tam amalmente...].

Em todo caso, com essa prática, estava aberto desde os anos 1550 o caminho para um gênero novo, a air de cour ("ária de corte"), que iria atingir o apogeu meio século depois.

A ESTÉTICA MADRIGALESCA

Na mesma época, contudo, os músicos franceses, como todos os demais músicos europeus, cedo ou tarde deixaram-se seduzir também pelas outras vozes das se- reias italianas que, desde os anos 1530, insinuavam-se com crescente ousadia em um novo estilo, o madrigal.

Gênero musical próprio do século XVI, este madrigal não tem nada a ver com o seu homônimo do século XIV. De 1504 a 1515, os onze volumes defrottolle ("fro- tólas") publicados por Petrucci foram revelando uma progressiva mudança na ins- piração poética. O caráter claramente popular das primeiras frótolas cede lugar pouco a pouco a poemas de grande qualidade literária, entre os quais destacam-se os de Petrarca e seus então recentes imitadores. As formas mais eruditas e aprimo- radas do sonetto e da canzone suplantavam progressivamente o strambotto e afro-

ttolla, como indica a ordem seguida no título dessa coletânea de Antico, em 1517: Canzoni, sonetti, strambotti etfrottolle.

Paralelamente, o gênero (canções, sonetos, stramboti e frótolas) torna-se mais flexível, do ponto de vista musical, ao contato com os polifonistas franco-flamen- gos, sempre muito presentes na península, mas também por influência das canções francesas, pelas quais os novos editores italianos de vez em quando se interessavam. O novo gênero toma-lhes de empréstimo suas técnicas da escrita contrapontística, mais atentas à homogeneidade do tecido polifónico pelo jogo das imitações. A colonização musical franco-flamenga continua, portanto, sempre muito ativa.

Foi em 1530 que o antigo termo madrigal reapareceu no título de uma coletâ- nea publicada em Roma: Madrigali de diversi musici: libro primo de la serena. É sig- nificativo que essa publicação traga, lado a lado, obras de músicos da Itália (Costanzo e Sebastiano Festa) e da França (Philippe Verdelot). Fato também ca- racterístico é que nesse livro se encontrem, a um só tempo, madrigais, algumas autênticas frótolas e até mesmo algumas canções francesas. É que, durante todo esse período (1530-1550), marcado sobretudo pelos franco-flamengos Arcadelt

(ca. 1514-1557) e Verdelot (morto ca. 1540), o divórcio entre a frótola e o madrigal

quando a corrente popular passou a alimentar as formas mais leves de polifonia profana que são a villanesca, a canzonetta ou o halieto...

Foi sobretudo com Adrian Willaert {ca. 1480-1562), flamengo ligado à catedral de São Marcos de Veneza, que as duas estéticas ficaram claramente demarcadas. Tardiamente publicada por Gardane, 1559, a grande coleção de madrigais e mo- tetos de Willaert, Musica nova, boa parte dos quais compostos desde 1540, apresen- ta-se como uma espécie de manifesto. O madrigal de Willaert, de quatro a sete vozes, incontestavelmente afirma-se, nesta coleção, como um parente próximo do moteto. Ao mesmo tempo, com a escrupulosa atenção concedida à declamação do texto poético, Willaert sublinhava o que viria a ser um traço fundamental do gêne- ro, abrindo, desse modo, caminho para os mais jovens. Foi, assim, na entourage de Willaert, à qual se pode associar seu aluno Nicola Vicentino e um outro flamengo, Cyprien de Rore (o "primeiro renovador", como iria chamá-lo Monteverdi), que se realizaram as primeiras pesquisas de expressão "harmônica" e cromática.

Importa observar, contudo, que essa maturação do gênero, em curso por volta de 1550, alimentava-se também de uma intensa reflexão teórica e filosófica, que reunia poetas, músicos e humanistas naquelas academias que então floresciam por toda a Itália. Estamos já no âmago do século XVI humanista, que significou no pensamento musical da época, antes de mais nada, o retorno ao homem como centro. A questão da harmonia universal (Mersenne tomaria a expressão como tí- tulo de sua obra teórica) permanece, mas para melhor afirmar que cada homem é um microcosmo e para conferir à música a elevada ambição de pôr a alma humana em relação com a alma universal.

Reivindicava-se, para e pela música, o prazer: "Ela tem como finalidade com- prazer, a despeito dos filósofos...", estava escrito em 1579, na dedicatória de um livro de madrigais, porque "a música nada mais é do que um remédio verdadeiro e seguro para as perturbações e os mal-estares da alma". Este programa (e como era moderno!) foi inscrito nos cravos da época, em letras de ouro e a título de decora- ção: "Musica laetitiae comes, medicina dolorum" [Música, companheira da alegria, remédio das dores]. Com este fim, afirmado desde 1528 por Castiglione, passou-se a buscar uma música ativa e eficaz, a mesma que se fazia na ilha de Utopia, garantia da superioridade dos que nela viviam, segundo Thomas Morus:

Eles sem dúvida nos superam enormemente em uma coisa: é que toda a m ú s i c a , tocada por órgãos e outros instrumentos e [cantada] pela voz humana, imita e exprime t ã o bem as p a i x õ e s naturais, o som está t ã o bem acomodado à matéria, o tipo e a forma da melodia transmitem t ã o bem a coisa cantada, que ela comove maravilhosamente, pene- tra e inflama os corações dos ouvintes.

De maneira curiosa, foi nesta via utópica e premonitória, descrita desde 1516 pelo humanista inglês, que se engajaram os madrigalistas italianos da segunda metade do século. Em 1555, Nicola Vicentino não dizia nada mais do que:

A m ú s i c a feita sobre u m texto n ã o tem outro p r o p ó s i t o do que expressar o sentido, as p a i x õ e s e as afeições nele contidos por meio da 'harmonia'. Desse modo, se as letras falam de m o d é s t i a , a c o m p o s i ç ã o deverá ser calma, e n ã o furiosa. Se é de alegria, n ã o se fará u m a m ú s i c a triste, e se for de tristeza, n ã o será a m ú s i c a alegre... Quando u m com- positor quer escrever u m a m ú s i c a triste, usará u m movimento lento e c o n s o n â n c i a s menores. Se quer fazer u m a m ú s i c a alegre, h á de fazê-lo com u m movimento rápido e com c o n s o n â n c i a s maiores...

A evidência bastante simples, talvez simplista, dessa proposta não nos deve enganar: o que aqui se esboça é nada mais nada menos que a conscientização de um novo sentido musical, revolucionário, o verdadeiro advento da música moder- na, a nossa. Para se realizarem, a imitação da natureza e a expressão sensível das idéias e das "afeições", trataram de forjar um verdadeiro arsenal de meios técnicos variados, que se convencionou chamar de madrigalismos.

Algumas dessas figuras simbólicas têm caráter essencialmente visual: deste mo- do, a noite ou a morte eram representadas por notas negras, as pérolas ou os olhos por notas redondas. É que o madrigal, música da mtimidade doméstica praticada por amadores esclarecidos ("connoisseurs"), que o liam diretamente nos livros, re- quer como público apenas os próprios cantores e algumas pessoas da fairúlia ao redor. Prazer dos sentidos, mas também do intelecto, enriquecia-se o madrigal desses jogos de correspondência (música visual) que são, para a música, o que o caligrama é para o poema.

Se, antes de 1550, os franco-flamengos desempenharam um papel primordial na elaboração dessa nova estética, pouco a pouco foram os italianos apropriando- se deste papel. Mas só nos últimos decênios do século, com os grandes virtuosi, é que os italianos passaram definitivamente aos lugares de destaque. A despeito dos Ruffo, Donato, Nasço, Porta, Animuccia, a despeito mesmo de Palestrina, cujos madrigais tiveram real sucesso desde 1555, os italianos, nos anos 1550-1570, não chegaram a relegar para segundo plano dois grandes músicos flamengos: Orlando de Lassus (1532?-1594) e Philippe de Monte (1521-1603).

Ambos puderam fazer experiências no estilo madrigalesco quando estiveram na Itália, onde seus primeiros madrigais foram impressos a partir de 1555. Mas, fato altamente significativo: mesmo em Munique, no caso de Lassus (a partir de 1556), e em Viena, no caso de Monte (a partir de 1568), os dois não deixaram de compor madrigais italianos. O mais fértil dos dois era Monte, que deixou cerca de mil peças desse tipo: um livro a três vozes, quatro a quatro vozes, dezenove a cinco vozes, nove a seis vozes e dois a sete vozes.

Mesmo nos anos 1580, era ainda de origem flamenga um dos madrigalistas mais surpreendentes, cuja obra foi determinante para a evolução definitiva do gênero: Jacques de Wert (ca. 1526-1596), na época à frente dos músicos da corte de Mântua. Encontram-se, em seus madrigais, um expressionismo exacerbado, já digno de Gesualdo, e, ao mesmo tempo, um refinamento da declamação que, em-

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bora ainda polifónica, não deixava de estar bem próxima já das futuras experiên- cias florentinas.

Pelo seu estilo, e também pelos textos que escolheu, de Wert distingue-se niti-

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