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A MÚSICA LUTERANA NO SÉCULO X V

No documento MASSIN 1997 Historia Da Musica Ocidental (páginas 159-161)

No início do século XVI, a invenção da imprensa assinalou uma etapa fundamental da história da música e, principalmente, da polifonia. No mesmo momento histó- rico, outro acontecimento veio a favorecer de maneira decisiva a formação de uma arte musical especificamente alemã: a reforma de Martinho Lutero (1483-1546), cuja principal contribuição para a música foi o coral. Essa contribuição foi tanto técnica quanto espiritual, porque o coral apareceu a um tempo como uma forma musical bem definida e como o veículo de uma interioridade, individual e coletiva, completamente nova. A música alemã, em particular a da Alemanha do Norte, iria permanecer, daí por diante, profundamente marcada por tudo isso.

No plano estritamente musical, o elemento fundamental dessa comoção repre- sentada pela Reforma foi a decisão de Lutero no sentido de generalizar o ofício religioso em língua alemã (e não mais em latim), com a participação ativa da co- munidade religiosa; em outras palavras, a decisão de fazer a multidão de fiéis can- tar as preces (os cânticos) em língua vulgar — não mais hinos latinos, mas cantos em alemão. É preciso mencionar que, para tornar realidade esse novo culto, Lutero — que, ao contrário do reformador suíço Zwinglio, nunca sonhara em banir de- finitivamente a música do culto, muito pelo contrário — teve uma intuição genial: transpor os textos para poemas curtos e fixá-los em música a mais simples possí- vel, tão clara, fácil e "memorizáveP' quanto uma canção popular. O coral luterano nada mais é que uma música com essas características, que serve de suporte a esse tipo de texto. E mais: melodia e texto eram indissociáveis, um evocando imediata-

mente o outro. Impõe-se então a impossibilidade de separar o musical não apenas do religioso, mas também do sociológico e do cultural. Para Lutero, ele próprio músico, a música tinha importancia primordial. Mas dificilmente teria consegui- do modelar a espiritualidade alemã somente a partir da música. Levou sua ação a outros domínios, tratando, contudo, de não os desatrelar da música. Na consciência alemã, a música de inspiração luterana deve ter sempre uma inspira- ção religiosa, é claro, mas também, e em graus diversos, uma dimensão político- nacional. Cumpre acrescentar que essa música haveria de realizar, como poucas, a aliança necessária entre a sensibilidade popular e a ciência propriamente musical. Mas é preciso observar que o progresso da música alemã a partir do século XVI teve outras causas que não a reforma luterana.

Poeta e músico, o próprio Lutero escreveu os textos e/ou as melodias (corais) de vários desses cânticos por ele destinados ao culto: parece que 36, ao todo. O mais famoso dos "corais de Lutero" é Ein feste Burg ist unser Gott [É uma muralha o nosso Deus], mais tarde utilizado por Bach em sua Cantata BWV80 (composta por ocasião do aniversário da Reforma), por Mendelssohn, em sua Sinfonia n" 5 em ré

maior opus 107, por Meyerbeer, em Os huguenotes, e por Stravinski, em L'Histoire du soldat [A história do soldado]. No caso de Ein feste Burg ist unser Gott, parece

que não somente o texto, mas também a melodia é de Lutero. Mas constituir um vasto repertorio de cânticos era tarefa considerável. Para levá-la a bom termo, Lu- tero partilhou-a com outros compositores, como Martin Agrícola (ca. 1486-1556) e sobretudo seu amigo Johann Walter (1496-1570). A música nem sempre foi es- pecialmente composta para a ocasião. Lutero e os outros músicos beberam de to- das as fontes: modernas e antigas, religiosas e profanas, eruditas e populares. Mui- tas vezes, pois, novas letras foram adaptadas a uma melodia preexistente: o coral de Natal Vom Himmel hoch, da Komm'isch her [Do alto do céu venho até aqui], mais tarde retomado por Bach nas grandiosas variações canónicas, por exemplo, foi re- tirado da canção, então na moda, Aus Fremden Landen Komm ich her [De um país estrangeiro, venho até aqui]. Assim também o admirável coral Christ lag in

Todesbanden [Cristo jazia nos laços da morte], usado por Bach na Cantata BWV4,

nada mais é do que o hino Victimaepaschali. O coral Komm, Gott Schôpfer, Heiliger

Geist, por sua vez, é tirado do hino Veni Creator Spiritus.

O estilo musical dos corais luteranos — de caráter popular, entonação fácil e cadência marcada em frases curtas, em geral correspondentes a versos de oito pés — muito contribuiu para o seu sucesso: os corais luteranos serviram como expres- são religiosa de todo ou quase todo um povo e passaram a figurar em inúmeras coletâneas impressas. A primeira dessas coletâneas de cânticos luteranos foi o

Geistliches Gesangbüchlein [Pequeno livro de cantos espirituais, 1524], publicado

por Johann Walther, com prefácio de Lutero, que continha, entre outros, poemas e corais do prefaciador. Lutero iria ainda tornar a prefaciar outras coletâneas de corais, em 1528,1538,1542 e 1545. Depois de sua morte, continuaram a sair im-

pressas coletâneas de cânticos e livros de salmos: Psautier Lobwasser (1565), Psau-

tier Wolkenstein (1540), Psautier Osiander (1586). A composição de corais prosse-

guiu ao longo dos séculos XVI e XVII, em particular durante a Guerra dos Trinta Anos, para exaurir-se nos primeiros anos do século XVIII. Depois de Johann Wal- ter e de seu contemporâneo Ludwig Senfl (1488-1543), os principais músicos que se dedicaram ao gênero foram Hermann Finck (1527-1558), Phifipp Nicolai (1556-1608), Hans Leo Hassler (1564-1612) e Michael Praetorius (1571-1621).

Por um desenvolvimento de algum modo inverso ao que lhe dera surgimento, o coral tornou-se em pouco tempo — embora permanecendo reconhecível en- quanto tal e sem nada perder de seu sabor popular — um elemento da música erudita, segundo um duplo processo de integração harmônica e polifónica que deveria culminar nas peças para órgão e nas cantatas de Bach. Entre Lutero e Bach, quase todos os músicos de igreja alemães valeram-se dos corais — um repertório musical que todo mundo sabia de cor e cujos textos todos conheciam — como matéria-prima para cantatas e obras para órgão, tudo sem que se produzisse a menor impressão de arcaísmo ou de "retorno a". Foi assim que, desde o século XVI, o coral, como o salmo, seu equivalente na igreja cdvinista (encontram-se amiúde as mesmas melodias em uma e em outra), foi objeto de harmonizações para várias vozes, ao passo que, originalmente, era, em princípio, cantado em uníssono. O final da maior parte das cantatas de Bach traz esses corais harmonizados. Como elemento de uma polifonia, em particular como cantus firmus, o coral foi utilizado de maneiras as mais diversas, tanto como peça para órgão quanto nos gêneros

cantata, oratório ou paixão, por compositores como Hans Leo Hassler, Michael

Praetorius, Melchior Franck (1580-1639), Johann Hermann Schein (1586-1630), Samuel Scheidt (1587-1654), Dietrich Buxtehude (1637-1707), Johann Pachelbel (1653-1716) e, finalmente, Johann Sebastian Bach (1685-1750). O procedimento deveria mesmo ultrapassar o domínio da expressão germânica e da fé protestante, principalmente por causa do valor, a um só tempo simbólico e preciso em sua significação, do coral enquanto tal. Expressivos nesse sentido são o coral recriado do Berliner Requien [Requiem berlinense], de Kurt Weill, ou ainda a utilização de um coral de Bach associado à idéia de morte no Concerto para violino de Alban Berg, "em memória de um anjo."

Vale ainda observar que, do segundo terço do século XVI à metade do XVIII, a música foi, para a Alemanha do Norte luterana, não somente uma atividade essen- cial, mas praticamente a única atividade artística digna desse nome. Isto porque Grünewald e Durer morrerem em 1528, Altdorfer em 1538, Holbein, o Jovem, em 1543, Baldung Grien em 1545 e Cranach em 1553. Depois disso, aquela região deixou de produzir grandes pintores, gerando apenas pequeno número de poetas e escritores.

No Sul, a situação evoluiu de maneira diversa. A Baviera e a Áustria perma- neceram católicas, e é significativo que, em Munique, a Capela Ducal de Guilherme

292 Segunda parte: os séculos XV e XVI

V — a qual, no final do século XVI, em parte graças ao ouro dos Fugger, foi para a música alemã o que fora a Capela Imperial de Maximiliano d'Áustria por volta de 1500 — tenha tido em seu comando, durante muito tempo, não um alemão, mas o último representante da grande linhagem franco-flamenga, Orlando de Las- sus (1532-1594). Dito isso, entre os centros irradiadores do Norte e do Sul, as pontes jamais se romperam. Lutero estivera em estreito contato com Ludwig Senfl, um dos predecessores de Orlando de Lassus em Munique. E no limiar entre os séculos XVI e XVII, fenômeno muito importante, vários mestres — como Leonhard Lechner (ca. 1553-1606), Johannes Eccard (1553-1611) e Gregor Aichin- ger (1564-1628) —julgaram que era chegado o momento de fazer uma síntese dos ensinamentos da Reforma, de Orlando de Lassus e das novas correntes que provi- nham da Itália.

Mais importante ainda foram Hassler e Praetorius. Hans Leo Hassler (1564¬ 1612), de Nuremberg, o primeiro grande músico alemão a formar-se ao sul dos Alpes, basicamente em Veneza, fez-se partidário da assimilação italiana. Michael Praetorius (1571-1612), organista, autor de uma monumental obra didática (Syn-

tagma musicam) e de obras tão belas quanto numerosas, situou-se igualmente na

fronteira entre o moteto e o madrigal. Ambos os mestres franquearam o caminho para o maior músico alemão do século XVII, Heinrich Schütz.

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A MÚSICA INGLESA

No documento MASSIN 1997 Historia Da Musica Ocidental (páginas 159-161)