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IDADE MÉDIA E RENASCIMENTO

No documento MASSIN 1997 Historia Da Musica Ocidental (páginas 65-67)

A NOTAÇÃO E A INTERPRETAÇÃO

IDADE MÉDIA E RENASCIMENTO

Os primeiros documentos que podemos consultar sobre a notação musical no Ocidente datam aproximadamente do século III a.C, originários da Grécia: é uma notação que se mostra essencialmente alfabética, ou seja, as notas da escala estão associadas a letras do alfabeto, em diferentes posições. Na Grécia antiga, sem dú- vida, conviveram muitos sistemas de notação, destinados tanto à voz como aos instrumentos então usados (na forma de tablatura1). Na época alexandrina (sécu-

lo IV d.C), por influência de Aristóxeno, a oitava era dividida em 24 partes, o que inclui intervalos de quarto de tom. Entretanto, tais sistemas parecem mais ligados à teoria que à prática: é como se devessem, antes de tudo, corresponder a uma ordem ideal abstrata, capaz de revelar as conexões profundas da música com as ciências da matemática e da astronomia. No século IV, contam-se no mínimo 1.260 sinais ou interpretações desses sinais.

Notação da música polifónica por meio de letras, algarismos e diferentes símbolos dispostos em tabelas, como as tabelas matemáticas.

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Boécio (475-526), o último teórico da música antiga, nos transmitiu, em ca- racteres latinos, a notação alfabética da Grécia, associando quinze notas corres- pondentes a uma extensão de duas oitavas às quinze primeiras letras do alfabeto. Pouco mais tarde, esta classificação iria limitar-se às notas compreendidas no in- terior de uma oitava, de A a G, e foi justamente este o sistema alfabético de corres- pondência que se difundiu nos países anglo-saxônicos e na Alemanha.

Sem dúvida, mais até que as teorias da Grécia, a cantilação1 hebraica e a reci-

tação litúrgica bizantina exerceram influência decisiva sobre as primeiras músicas da cristandade e sobre a futura notação neumática. A etimologia da palavra "neuma" é discutível: tanto pode proceder de pneuma (sopro), quanto de neuma (sinal). Como sinal, o neuma poderia estar ligado ao sistema de gestos que se encontra na cantilação bizantina sob o nome de "quironomia": gestos indicativos de uma elevação, um abaixamento ou uma inflexão da voz, feitos pelo regente do coro, o Domestikos, sempre situado em relação aos cantores de maneira que todos estes pudessem seguir os movimentos de suas mãos. Os contornos da linha meló- dica eram, portanto, espacialmente representados de maneira analógica, bastando apenas um passo para que se realizasse a transição do gesto à inscrição gráfica. Aliás, este destaque "espacializado" que se confere às inflexões vocais nas formas de notação neumáticas está presente em outras culturas que não a nossa (cf. a sal- modia budista, o nó japonês, etc). Bem entendido, as fórmulas neumáticas, para os cantores, constituem apenas pontos de referência, e o papel da notação é essen- cialmente o de um lembrete, um apoio para a memória, por assim dizer.

A notação ocidental visivelmente instaurou-se em função da voz e de seus re- gistros, bem como das propriedades gramaticais das línguas grega e latina. Desde o século II a.C, Aristófano de Bizâncio havia concebido um sistema de notação para a língua grega em que o acento agudo indicava a elevação da voz, o acento grave sugeria o seu abaixamento, o acento cincunflexo sinalizava uma elevação suave e um ponto marcava a queda, seguida da interrupção da voz, no fim da frase. O próprio termo acento (accentus - ad cantus) nos faz mergulhar na origem da constituição melódica.

Os primeiros neumas derivam espontaneamente destas regras prosódicas pelo fato de a Igreja do Oriente recorrer à língua grega para 1er as Sagradas Escrituras: os neumas, de certo modo, vieram ampliar as implicações musicais do texto decla- mado. Esta a razão por que estão inscritos, sobre as palavras destinadas a serem cantadas, sinais que, ao invés de indicarem um determinado som, como em nos- sa notação simbólica, abrangem várias notas de maneira aproximada. Os neu- mas, cuja criação data do século VII, não foram utilizados apenas na música reli-

Do latim cantillare (cantarolar). Forma de melodia religiosa mais próxima da declamação do que do canto pro- priamente dito. Trata-se, por conseguinte, de um recitativo litúrgico, inicialmente usado nas sinagogas para a leitura de textos da Bíblia.

giosa; ainda vamos encontrá-los, por exemplo, no século XIV, na arte dos mestres- cantores na Alemanha.

Estes sinais "estenográficos" conferem grande flexibilidade ao canto: os Ale- luias, por exemplo, em geral dão oportunidade a todo tipo de extravasamentos melódicos, que concretizam de certa forma o fervor da fé. Cada neuma correspon- de a uma sílaba do texto, mas, no caso da última sílaba do Aleluia, é uma verda- deira ramificação de natureza melódica que se projeta da escritura.

Certo número de efeitos, que os neumas por si só não poderiam traduzir, são expressos por sinais anexos, como o apóstrofo para indicar uma repercussão da voz (o strophicus), ou um Vpara o vinnula (literalmente, "que relincha"). Já alguns efeitos, como os "neumas liquescentes", evocam técnicas de canto praticadas no * Oriente. Estes primeiros ornamentos eram muito considerados por sua difícil exe- cução, e Guido d'Arezzo aconselhava que, caso não se conseguisse introduzir no canto esses sons "produzidos naturalmente pelos italianos", as notas fossem canta- das de maneira plana^como sucede geralmente com a interpretação do canto gre-

goriano nos dias de hoje.

Nesse tipo de notação, não estão fixados os intervalos e as alturas dos sons. Quando ela se organiza em função de uma linha ideal, traçada depois com uma ponta seca, que situa a nota fá, a notação é dita diastemática (diastema = interva- lo). Nesse caso, a superposição dos grafismos no sentido vertical sugere, de modo relativo, as alturas dos sons. A notação diastemática difundiu-se durante os sécu- los X e XI; nela encontramos a inscrição de letras ao lado dos neumas, para maior precisão. As indicações rítmicas permanecem mais incertas; entretanto, os epise-

mas, pequenos traços colocados em cima ou embaixo do acento grave, que impli-

cam o prolongamento de um som, e abreviações como í (tenere = manter) ou

x (expectare = esperar) prenunciam já os sinais de accelerando e rallentando.

Com Hucbald, o presumido autor do manual intitulado Musica enchiriadis, que data aproximadamente do fim do século IX, a notação alfabética associou-se aos neumas para fornecer pontos de referência mais estáveis no que diz respeito à altura. Hucbald desenhou pautas de linhas paralelas (que chegavam até dezoito em certos casos), com abreviações colocadas antes de cada linha indicando o in- tervalo (se de tom ou de semitom) que deveria ser transposto de uma linha para outra, e "decupou" o texto pelas Unhas da pauta de modo a casar as linhas do texto com a da curva melódica.

A forma gráfica do neuma foi aos poucos se desagregando, até se decompor em pontos isolados ou unidos por "ligaduras", no caso dos melismas cantados numa única sílaba. A notação quadrada posta em uso na França depois do século XII, principalmente pelos trovadores (troubadours) e pelos troveiros (trouvères), foi de certo modo deduzida dos primitivos neumas, e a evolução que teve lugar a partir dela até se chegar à notação mensurada mostrar-se-á de uma lógica implacável. As ligaduras implicam, com efeito, considerações rítmicas entre as notas que consti-

tuem uma fórmula melódica: sua interpretação depende do contexto musical, e a noção de modo rítmico, por isso mesmo, não tardaria a impor-se.

Em 1025, Guido d'Arezzo (995-1050) enfatizava a importância das linhas na leitura e, para facilitá-la, estabeleceu diferentes cores — amarelo para o ut, verme- lho para o fá —, que passaram a ser usadas freqüentemente com este propósito. Para evitar confusão, letras (à guisa de claves) foram colocadas antes das linhas. As formas das claves atuais derivam das formas dessas letras: F (clave de fá), C (clave de dó) e G (clave de sol). Ao que tudo indica, também teve origem com Guido d'Arezzo a denominação das notas ainda hoje usadas, sobretudo na França, na Itália e nos países de cultura e língua latinas — a qual teria provindo de um hino muito conhecido na época: "UT queant Iaxis I REsonare fibris I Mira gestorum I

FAmuli tuorum I SOLve polluti I LAbii reatum I Sánete Johannes" (o S e o J=I são as

iniciais que dão o SI).

O nome da sétima nota, si, levou muito mais tempo para se impor. De fato, em decorrência de sua situação na escala, esta nota pode ser "bemolizada" ou natural; era, então, assinalada por um b de forma redonda se estivesse colocada um semi- tom acima do lá, ou por um b de forma quadrada no caso de estar situada um tom acima do lá. Disso resulta a forma atual do bequadro, saída diretamente da notação dessa época.

A partir do século XII, o sinal de bemol passou a ser colocado diante do signo do sétimo grau da escala para indicar que o si está separado do lá por um semitom; mas, pouco a pouco, as letras foram-se desprendendo da nota si para adaptarem- se indiferentemente aos outros graus da escala. O bemol já abaixa o mi no século XIV, ao passo que o bequadro podia elevar o fá, o dó e o sol. Na época do Roman

de Fauvel [Romance de Fauvel],1 apareceu o sustenido, cuja forma advém do b

cortado por uma barra. Desse momento em diante, as funções destes sinais não tardarão a ser regulamentadas.

A partir do século X, começou a aumentar o interesse pela precisão de uma escrita que expressasse as relações de duração, o que coincide com a aparição da polifonia. No século XI, as "simples", punctum et virga, tinham sensivelmente a mesma duração, enquanto uma clivis — duas notas unidas por uma ligadura — ou um poãatus valiam duas "simples". No final do século XII, a "simples" deixou de ser considerada indivisível, para tornar-se uma "longa" que podia decompor- se em "breves". Delineia-se, assim, uma concepção proporcional dos valores de duração.

Em resposta às necessidades do moteto, a "notação quadrada" adaptou-se, de certo modo, à concepção modal do ritmo, codificada no século XIII por teóricos

Poema medieval francês de Gervais du Bus. Um dos manuscritos do Roman de Fauvel comporta numerosos elementos musicais monofônicos e polifónicos, formando 167 números, numa das mais vastas coletâneas da música francesa do século XIV. (N. T.)

104 Léxico musical explicativo

SINAIS NEUMÁTICOS NOTAÇÃO NOTAÇÃO

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