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PENSAR A MÚSICA NA IDADE MÉDIA

No documento MASSIN 1997 Historia Da Musica Ocidental (páginas 77-82)

O s m i s t é r i o s elementares, absolutos, incorruptíveis, da ciência de Deus revelam-se na treva mais que luminosa do s ü ê n c i o . DIONISIO, O AREOPAGITA

O termo Idade Média, que devemos aos historiadores românticos e que designa o período compreendido entre a Antigüidade e os tempos modernos, tem pouco valor operacional. Na verdade, reúne em um mesmo bloco os sete primeiros sé- culos do cristianismo, a Renascença carolíngia, que a eles sucede no século VIII, o período do ano mil, em que se multiplicam centros de pensamento e de criação nas escolas monásticas como nas cortes reais, e que conduz à segunda Renascença, talvez a mais brilhante, a do século XII, assinalada pelo aparecimento das línguas vernáculas nas diferentes culturas da Europa. Em seguida vem finalmente o que se pode chamar, com Georges Duby, de o "tempo das catedrais", que aos poucos se foi tornando, no transcorrer dos séculos XIV e XV, o das cidades, dos mercadores e do primeiro humanismo.

Não se deve pensar a Idade Média como idade das transições, segundo a crença tantas vezes reiterada, mas como idade da gênese das formas da arte no Ocidente, essas formas que, em todos os domínios, tão logo aparecem, impõem-se com a força de obras-primas consumadas, escapando às vicissitudes da História e triun- fando sobre a precariedade das técnicas graças à força unificadora de algumas grandes correntes de pensamento.

Desde os primeiros tempos, as obras de beleza, sejam elas oferecidas por sobe- ranos ou por bispos, à glória de Deus ou à edificação de seu povo, constituem — como acontece igualmente em relação ao conjunto do saber — o fruto da reflexão dos clérigos.

A música segundo Boécio

E a música é, sem dúvida alguma, o domínio em que as teorias podem justificar a organização das formas com o máximo de precisão.

Desde o século VI, ocupar-se de música era essencialmente elaborar uma filo- sofia musical, refletir sobre a função dos sons — e, num plano secundário, compor melodias ou executá-las.

A própria noção de música tem abrangência muito mais vasta do que em nos- sos dias, compreendendo os dados metafísicos que se acham em seus fundamentos tanto quanto a matemática que a organiza. É, portanto, antes de mais nada, objeto de considerações teóricas.

Na origem dessas concepções, está a obra de um filósofo latino, Boécio, lida e relida incansavelmente durante dez séculos, fonte e fermento unificador a que sempre voltavam os teólogos das diferentes escolas.

Anicius Manlius Tbrquatus Severinus Boetius (480-524) pertencia a uma famí- lia cristã. Era homem de ciência, dotado de tão vasto saber que houve quem sobre ele levantasse suspeitas de magia. Filho de um cônsul romano, chegou a assumir a direção dos negócios do Estado, tornando-se, ele próprio, cônsul em 510. Mas, injustamente acusado de participar numa conspiração tramada pelo imperador de Bizâncio contra Teodorico, o Grande, foi exilado para Pavia, onde ficou preso, foi submetido a torturas e morto. Sabendo-se condenado, escreveu durante seu cati- veiro o De consolatione philosophiae, [Sobre a consolação da filosofia], obra em que a herança da sabedoria dos antigos (Platão, Aristóteles) alia-se à reflexão reli- giosa. Se não foi canonizado, como há quem afirme ter sido, pelo menos seu culto instaurou-se desde o século VIII na diocese de Pavia.

O conjunto dos escritos de Boécio era fartamente comentado nas escolas, tor- nou-se objeto de reflexão nos mosteiros e alimentou o pensamento de um Rosce- lin, de um Anselmo de Cantuária, de um Guillaume de Champeaux, dos filósofos da Escola de Chartres e dos monges da abadia de Saint Victor. Santo Tomás de Aquino valeu-se, em grande medida, do tratado De Trinitate [Sobre a Trindade] de Boécio, na Summa theologica [Suma teológica], ao discorrer sobre a pessoa divina.

O livro de Boécio De institutione musica [Sobre a formação da música] foi uma fonte importante para todos os teóricos da música, desde a época carolíngia até o

Quattrocento italiano e o século XVI francês. No século X, o flamengo Hucbald

refere-se a Boécio como Doctor Mirabilis [Doutor Admirável], e no famoso trata-

do Musica enchiriadis [Manual da música] ele é mencionado como Doctor Magni-

ficus [Doutor Magnífico]. Por sua vez, Guido d'Arezzo, cujo tratado musical inti-

tulado Micrologus é o fundamento do saber musical da Idade Média, recomenda a todos a leitura de Boécio. Nos séculos subseqüentes, os teóricos Jean de Murs (sé- culo XIII), Jacques de Liège (século XIV) e Tinctoris (século XV) retomam as teo- rias de Boécio na parte de seus tratados reservada à música especulativa.

O pensamento de Boécio organiza-se em torno da idéia de que, por obra da razão divina, estabeleceu-se a harmonia de todas as coisas segundo a ordem dos números. Essa ordem figurava na inteligência do Criador e foi a partir dela que nasceram os elementos em sua multidão, a sucessão das estações, o curso dos as- tros celestes. No princípio de tudo está, portanto, o número. E a música, segundo Boécio, outra coisa não é senão a ciência dos números que governam o mundo.

Sobre essa base e inspirado em Quintiliano e em Macrobio, o filósofo distingue três grandes categorias na música, em que vê a fonte da harmonia universal.

Em primeiro lugar, a Musica mundana, a música do mundo, isto é, a harmonia fundamental que preside ao deslocamento dos astros, ao movimento dos elemen- tos, à sucessão das estações e também à música das esferas, ou seja, à música pro- duzida pelas esferas no movimento concéntrico que realizam em volta da Terra e que, por força do hábito, cessamos de perceber.

Em segundo lugar, a Musica humana, a harmonia entre corpo e alma do ser humano, entre sua sensibilidade e sua razão, entre o sujeito cognoscente e o objeto conhecido — enfim, a tomada de consciência, por esse sujeito, de estar em harmo- nia com o mundo.

Finalmente, a Musica instrumentons, que, por meio da arte, imita a natureza. Os espíritos medievais do período románico e do período gótico retomam essa definição da música, partindo sempre do princípio de que tudo é governado pela harmonia; e, como tudo o que é belo inscreve-se numa relação harmoniosa de ordem divina, o caráter transcendental do Belo se depreende de sua própria natureza. Recorrendo, ao mesmo tempo que às teorias de Boécio, à doutrina de Santo Agostinho, estendem esses conceitos de consonância e de justas propor- ções ao domínio das ciências, da moral, da política e da economia, coisas que, todas elas, devem estebelecer-se, com referência ao modelo proposto por Deus no mundo invisível, numa relação de conformidade e de harmonia no mundo visível.

Vê-se, assim, que o vasto domínio da música não está longe de cobrir inteira- mente o campo das analogias que organizaram o saber ocidental até o século XVI.

Para dar uma idéia da amplitude desse domínio, reproduzimos aqui o esquema construído por Edgar de Bruyne, em seus Études d'esthétique médiévale [Estudos de estética medieval], tomando como base a reflexão dos principais teóricos.

128 Primeira parte: das origens cristãs ao séado XIV

"Música: ciência de toda e qualquer proporção.

1. Música sobrenatural ou espiritual: harmonia dos coros angélicos e dos santos

(musica coelestis: Jacques de Liège).

2. Música puramente matemática: proporções em si.

3. Música metafísica: harmonia realizada no mundo material e considerada co- mo objeto de especulação filosófica "eorum quae harmonia quadam reguntur

rationalis consideratio".

a. Harmonia dos princípios metafísicos: proportio materiae ad formam (ver Alberto Magno e seus contemporâneos).

b. Harmonia do universo. Por exemplo: das estações, das transformações ele- mentares (musica mundana: Boécio).

c. Harmonia fisiológica, psicológica, moral do homem (musica humana em sentido amplo: Boécio).

4. Música sensível: harmonia perceptível pelos sentidos. a. no mundo visível: dança plástica;

b. no mundo sonoro:

1. Harmonia das esferas (musica mundana: Reginon; coelestis: Zamora) 2. Harmonia dos sons, produzida por instrumentos (musica instrumentons:

Reginon).

1. produzidos pela natureza. Por exemplo: a voz humana (musica huma-

na: Reginon; musica vocalis: Renascença).

2. produzidos pela arte: os instrumentos musicais (musica artificialisr. Re- ginon; musica instrumentalis: Renascença)."

Mesmo com o risco de nos tornarmos um tanto fastidiosos, passemos agora à música enquanto ciência matemática, pois é nela que se encontra a chave das es- colhas estéticas medievais, tanto na arquitetura como na escrita musical.

Segundo Boécio — como vimos -—-, a música seria a "ciência dos números". É pelo número e pela relação numérica que devemos compreender as grandezas espaciais estudadas na geometria e os movimentos temporais que a música estu- da. Sem a aritmética, nenhuma das duas poderia subsistir.

Fica estabelecido, antes de mais nada, que o princípio de todos os números é "a Unidade", e que a mãe de toda proporção é "a Igualdade". Por outro lado, as coisas criadas obedecem a dois princípios: o da Unidade, pelo qual elas permane- cem imutáveis e idênticas a si próprias (princípio masculino simbolizado pela mónada); e o da Multiplicidade, da variação, da instabilidade e da mudança (princípio feminino simbolizado pela díade). Da mónada derivam todos os nú- meros ímpares, assim como os quadrados dos números; da díade, derivam os números pares. Por intermédio da aritmética, Boécio estabelece uma equivalên- cia entre os números musicais e os números correspondentes às figuras geométri-

Pensar a música na Idade Média 129

cas, ou seja: para começar, uma equivalência entre o quadrado dos números e o quadrado, etc.

Ao domínio do Mesmo pertencem:

As figuras quadradas 2 x 2 3 x 3 4 x 4 Os quadrados dos números 4 9 16 As relações de igualdade 2/2 3/3 4/4 Ao domínio do Outro, pertencem:

Os retângulos p.a.l.1 1 x 2 2 x 3 3 x 4

Os números p.a.l. 2 6 12 As relações de desigualdade 1/2 2/3 3/4

Uma vez estabelecidos tais princípios, Boécio afirma que as figuras mais belas e mais deleitáveis obedecem às proporções mais simples, e é aí que se fundam as relações entre a arquitetura e a música. No que concerne à arquitetura, Boécio retoma as idéias de Vitrúvio, a saber, que as mais belas proporções são as do qua- drado e as do retângulo. Os retângulos mais simples são os que se encontram numa relação de 2/1, proportio dupla (proporção dupla), ou de 3/2 (a unidade mais a metade), sesquiáltera, e de 4/3 (a unidade mais 1/3), dita sesquitertia.

Ora, no que diz respeito à música, as relações mais simples — portanto, as que se deve utilizar, por serem as mais belas — são a oitava (de 2/1), a quinta (de 3/2) e a quarta (de 4/3).

Essas considerações foram aplicadas, não ficaram no terreno da pura espe- culação intelectual. Assim, no século XIII, o grande arquiteto Vülard de Honne- court deixou-nos um álbum de plantas e desenhos de uma inteligência e de uma qualidade que forçosamente nos fazem pensar nos de Leonardo da Vinci. Um dos projetos é a planta de uma igreja cisterciense ideal. Traçada ad quadratum (o que significa que o quadrado é a unidade de base), ela se inscreve num retângulo de proporção 3/2, isto é, um triplo duplo quadrado, que é também a relação da quin- ta musical; o coro tem a proporção 4/3 (a relação da quarta); cada transepto repre- senta a relação da oitava, 4/2 ou 2/1; o cruzamento da nave com o transepto forma o quadrado, 4/4.

A música a ser ouvida nessa nave tão admirável, de proporções tão simples quanto perfeitas, deveria fundar-se nas mesmas proporções que aquelas utilizadas pela arquitetura — as mesmas, por sinal, que regem o universo.

Ou seja: a metafísica matemática de Boécio cria uma estética capaz de materia- lizar, através da beleza, no templo de Deus e na música que o celebra, a idéia de que a arte e a música se fazem segundo justas proporções, imitando o modelo

p.a.l. = parte altera longior (outra parte rnais longa): figura cujo lado comprido supera em uma unidade o lado curto. (N. T.)

Album de Villard de Honnecourt, meados do s é c u l o XIII:

Planta para u m a igreja ad quadratum. (Roger-Viollet)

divino. O espírito ascende da beleza das qualidades móveis àquela das proporções imutáveis; em seguida, da beleza das relações simples realizadas no mundo e na ordem matemática, ele se eleva à beleza do arquiteto divino, em cuja inteligência vive o modelo do universo.

Assim como a harmonia governa a beleza do céu, da mesma forma deve ela governar a música, para que esta se encontre numa relação de concordância com o universo e com o homem, tal como o amor de Deus faz com que todas as coisas se ordenem com perfeição e se ponham de acordo entre si.

Por outro lado, e sempre dentro de uma perspectiva platônica, Boécio desen- volve a idéia de que a unidade da alma do universo reside numa concórdia musical e de que a combinação harmoniosa dos sons nos faz tomar consciência de nossa própria unidade, da ordem interior que nos governa. A música permite à alma humana pôr-se em relação harmoniosa com a alma do Universo, o que nos leva, muito naturalmente, à teoria dos efeitos da música: a que é mal composta, de maneira puramente instintiva e sem respeitar os números, corrompe a alma e

pode fazer mal à saúde do corpo, ao passo que a bela música eleva à contemplação do divino.

Entende-se porque a música ocupou espaço tão importante no ensino medie¬ val: ela não apenas tem um valor intelectual, como também um valor moral, pois ajuda o homem a elevar-se, a aproximar-se da verdade e a recriar sua unidade interior no seio da paz, longe da agitação e da instabilidade deste mundo, tão freqüentemente denunciadas em De consolatione philosophial. Por todos esses mo- tivos, mais vale dedicar-se à reflexão teórica sobre a música, já que ela aproveita ao espírito e fortifica a alma, dando ao homem o governo dos seus sentidos, ao passo que a música sonora, em que estes se deleitam, pode deixar a alma amolecida. Diz Boécio à Fortuna, em sua consolatione.

Admito que tuas palavras s ã o especiosas e como que impregnadas do doce mel da r e t ó - rica e da música; enquanto se as ouve, n ã o cessa o efeito do encantamento. Mas, para u m infeliz, o sentimento de sua infelicidade é mais penetrante ainda.

Entretanto, a ser o caso de estabelecer-se uma hierarquia entre os sentidos, Boécio e os teóricos medievais reconhecem à audição uma superioridade em rela- ção à visão. Efetivamente, por via do ouvido, a emoção e a ciência penetram ao

mesmo tempo na alma e no espírito. v

Essa filosofia musical comporta dois corolários: o primeiro é que os teóricos hão de estabelecer doravante uma distinção entre música especulativa e música prática (o que entendemos hoje por música), e o segundo (decorrência do primei- ro) é que o termo musicus designa funções bem diferenciadas: em primeiro lugar, o teórico que reflete de maneira puramente abstrata sobre a organização e a fun- ção da música; depois, o compositor e, em seguida a este, o crítico que julga, se- gundo critérios científicos, o valor das composições. Em último lugar vêm o ins- trumentista ignorante e o cantor, que executam a música sem compreendê-la. A Idade Média só sente desprezo por esses últimos, que não passam de intérpretes, uma atitude radicalmente oposta à do Baixo Império, em que um bom flautista era pago a peso de ouro.

O conjunto das teorias de Boécio e de seus sucessores vai não apenas impor-se durante séculos ao Ocidente: servirá, ademais, de ponte entre a época medieval e as "renascenças" italiana e francesa. Assim é que o gosto pelas teorias neoplatôni- cas de Boécio se manifesta largamente entre os humanistas e os artistas italianos do século XV, que retomam por sua conta a idéia do Timeu, segundo a qual as artes devem sua perfeição à ciência matemática. "Os inovadores de Florença", nos diz André Chastel,

haviam proclamado com c o n v i c ç ã o , como u m a profissão de fé, a necessidade de haver referência, nas artes visuais, ao Ordo mathematicus. Assim aconteceu com Alberti... e Brunelleschi.

132 Primeira parte: das origens cristas ao século XIV

A propósito, não é indiferente observar que o compositor Guillaume Dufay escreveu o moteto Nuper rosarum flores para a inaguração da cúpula de Brunelles- chi, na catedral de Florença, em 15 de agosto de 1436. Os presentes acreditaram estar ouvindo coros angélicos, tal o encantamento que a música neles provocou. Ora, as proporções desse moteto, o número e a repartição dos valores de duração correspondem exatamente às medidas das diferentes partes do edifício, inclusive às da cúpula. A voz tenor chega a ser duplicada na quinta para criar-se uma relação igual à das nervuras com seu reforço interno.

Piero delia Francesca publica o tratado De corporis regularibus [Sobre as regras do corpo]. Seu amigo Luca Pacioli, que freqüenta todas as cortes de Florença, de Urbino, de Roma, publica De divina proportione [Sobre a proporção divina] em 1509, em Veneza, mesma cidade onde a edição princeps da obra de Boécio já havia sido publicada em 1492, quando os cálculos matemáticos e o simbolismo dos nú- meros ocupavam todos os espíritos.

E sabe-se a tempestade que provocara o andaluz Ramos de Pareja ao publicar em Bolonha, em 1482, seu De musica tractatus sive musica pratica [Tratado sobre música ou música prática], com o qual em vão tentara introduzir a oitava e o cro- matismo. Quanto à teoria dos efeitos da música, é amplamente desenvolvida nos círculos florentinos por Marcilio Fisino (1433-1499) e impregna todo o pensamen- to humanista. Na França, um século mais tarde, editam-se e reeditam-se ainda os escritos de Boécio, que permanece como referência obrigatória para todos.

Ronsard justifica o desejo de ter seus poemas musicados por compositores con- temporâneos — Janequin, Goudimel, Lassus, etc. —, endossando as idéias de Boé- cio, que ele cita em data bem tardia, 1560, na sua Épître au roi Charles DC [Epístola ao rei Carlos IX], onde, depois de declarar que aquele que não gosta de música é indigno de olhar a luz do sol e se faz semelhante aos porcos, acrescenta:

Aquele que a honra e reverencia é de hábito homem de bem, tem a alma sã e galharda, e, por inclinação natural, ama as coisas elevadas, a filosofia, o manejo de assuntos p o l í - ticos, o trabalho das guerras.

A isto segue-se uma passagem sobre os efeitos da música, que tanto pode im- pelir a atos de heroísmo quanto — sobretudo se utilizar o modo cromático — arrastar à lascívia e à luxúria. Em suma, os que crêem inovar por um retorno às fontes outra coisa não fazem que seguir a mais imutável das tradições.

Se a influência do pensamento de Boécio sobre os espíritos foi tão forte e durou tanto tempo é porque suas teorias sobre a música foram exploradas com exclusi- vidade por clérigos, únicos detentores do saber, e porque estes punham esse saber, antes de tudo, a serviço do poder da Igreja.

Ora, o pensamento do filósofo romano inscreve-se perfeitamente na continui- dade do pensamento dos padres da Igreja latina e, em particular, no de Santo

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Agostinho, que, sensível até as lágrimas à beleza dos hinos, empenha-se incessan- temente em fazer a ligação entre o cristianismo e a herança que ficou dos antigos (Pitágoras e Platão), afirmando que a música é uma ciência e que ela participa da

Numerositas divina, isto é, da ordem matemática desejada por Deus.

Com o peso de sua autoridade, o ponto de vista de Santo Agostinho vem a calhar para a Igreja. Firmada em tais referências, ser-lhe-ia possível, numa primei- ra etapa, eliminar aos poucos os velhos cultos pagãos em nome da ciência da An- tigüidade pagã. Em seguida, estaria a Igreja em condições de recusar, de sufocar qualquer forma de música que não fosse por ela ensinada no Quadrivium (junta- mente com a geometria, a astronomia e a álgebra) e que não tivesse por função edificar a alma dos fiéis — qualquer música, em suma, que, não sendo a um só tempo ciência e recurso a serviço de uma ética, não dependesse diretamente de seu ensino e de sua autoridade, e que não contribuísse para a extensão e a unificação da cristandade.

As funções da música

Para chegar à música dita "prática", falta agora examinar qual o lugar que os teó- ricos estavam dispostos a conceder-lhe. Coerentes consigo mesmos, declaram estes que, ciência por sua natureza, a música tem como função primeira o louvor de Deus.

A figura de Davi cantando e acompanhando-se na lira, tão freqüente nos tex- tos como nos portais das catedrais e na iconografia, aí está para lembrar a todos disso e para dar a entender que os cânticos da Igreja imitam os do salmista cantor de Deus.

A música deve ser feita, também, à semelhança dos coros angélicos, que cele- bram, nos orbes eternos, a glória divina que os aureola de luz.

Os anjos músicos, inscritos segundo uma ordem precisa nos flancos do edifício de pedra ou nas enigmáticas iluminuras dos manuscritos, convidam a alma a per-

No documento MASSIN 1997 Historia Da Musica Ocidental (páginas 77-82)