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OS PRIMEIROS CÂNTICOS DA IGREJA

No documento MASSIN 1997 Historia Da Musica Ocidental (páginas 82-85)

C o m o pregoeiros do silêncio divino DIONISIO, O AEROPAGITA

Até o fim do século XII, o lugar por excelência do cântico de louvor é o mosteiro, longe do mundo.

O preparo da terra inculta e a frutificação da alma se fazem simultaneamente no silêncio e na solidão. Dois espaços dão ritmo a esse trabalho: o quadrado do claustro, microcosmo que prefigura a morada paradisíaca, tendo ao centro a fonte ou o poço como signo da graça; e a igreja, com o quadrado como medida e o Cristo na cruz como forma — a igreja, signo material da encarnação e lugar de redenção.

Dois tempos diversos dão ritmo à aventura individual e coletiva: aquele que projeta a história individual numa marcha para a eternidade orientada pela histó- ria da salvação e aquele que organiza os grandes movimentos cíclicos da natureza, a alternância dos dias e das noites, escalonando-os em orações. Foi São Bento (480-543), o primeiro dos grandes fundadores de ordens religiosas, quem ritmou o percurso das horas, estabelecendo o ofício divino, os oito momentos do dia e da noite em que o monge dedica o melhor de sua energia à prece coletiva e cantada. É em torno das Horas que se organiza, portanto, a vida dos mosteiros, ou seja: oito reuniões de oração ao longo das 24 horas.

Matinas Noz'fe e alvorada Laudes 6h da manhã Prima 7h da manhã

136 Primeira parte: das origens cristas ao século XIV Terça 9h da manhã MISSA Sexta Meio-dia Noa 3h da tarde Vésperas 6h da tarde Completas Cair da noite

A missa situa-se no centro e no ponto culminante do dia. Distinguem-se co- mumente as Horas maiores (Marinas, Laudes, Vésperas e Completas) das Horas

menores (Prima, Terça, Sexta e Nona). O canto dos salmos é a parte essencial das

horas. Nas Matinas, cantam-se o Salmo 94, antifonado (canto de dois coros alter- nados, por oposição ao canto responsorial, de solista e coro), com refrão, um hino, que varia segundo o calendário Htúrgico, e três noturnos, cada um dos quais é composto de três salmos e enquadrado por um cântico antifonado e três lições ou leituras. Os Laudes e as Vésperas são construídos de maneira similar, com o canto de cinco salmos enquadrado por um cântico antifonado e uma leitura breve, se- guida de um hino. Nas Completas, temos novamente três salmos, uma antífona, um hino (Nunc dimittis) e uma antífona mariana (isto é, em honra à Virgem). As

Horas menores compreendem apenas um hino e três salmos cada uma e utilizam

a mesma antífona como enquadramento.

No espaço quadrado, portanto, seguindo o tempo das horas, o homem reen- contra sua harmonia na harmonia dos números, por meio do cântico de louvor que dirige ao seu Deus.

A liturgia da missa ordena-se em torno da Eucaristia cotidiana, isto é, da rea- tualização da Ceia e do sacrifício do Cristo. Em torno desse núcleo fixo que cons- titui o "ordinário da missa", organiza-se o "próprio da missa", que segue ao longo de um ano a história da vida de Cristo, em torno das duas grandes festas, a de seu nascimento, o Natal, fixada em 25 de dezembro no calendário romano, e a de sua morte e de sua ressurreição, a Páscoa — que é uma festa móvel. A esses dois eixos, precedidos pelo Advento, no tocante ao Natal, e pela Quaresma, no que diz respei- to à Páscoa — duas ocasiões de penitência —, devem-se acrescentar a festa da Ascensão e, dez dias depois, a de Pentecostés, em comemoração à descida do Es- pírito Santo (simbolizado por línguas de fogo) sobre os apóstolos. A cada dia, por outro lado, correspondem preces particulares, freqüentemente dirigidas a diversos santos, que integram igualmente o próprio da missa.

O conjunto da missa constitui-se de cânticos em alternância com leituras sal- módicas:

SLNAXE (reunião)

Introito (cântico de entrada)

Kyrie (ordinário - cantado)

Os primeiros cânticos da Igreja 137

Gloria (ordinário - cantado)

Coleta (próprio - recitado) Epístola (próprio - recitado) Gradual (próprio - cantado) Aleluia (próprio - cantado) Evangelho (próprio - recitado)

Credo (ordinário - cantado)

Ofertorio (próprio - cantado)

Secreta (próprio - recitada ou cantada) EUCARISTIA

Prefácio (próprio - recitado)

Sanctus (ordinário - cantado) Canon (ordinário - cantado) Agnus Dei (ordinário - cantado)

Comunhão (próprio - cantada) Pós-comunhão (próprio - recitada)

Ite Missa est ou Benedicamus Domino (ordinário - cantado)

A primeira liturgia cristã nasceu, de certa forma, de uma extensão do culto judaico. De fato, os primeiros cristãos seguiam o culto na sinagoga, a que acres- centavam cerimônias privadas eucarísticas. O primeiro canto cristão teve origem, portanto, no canto hebraico. Comparando-se os cantos da igreja antiga com as melodias hebraicas, é fácil constatar semelhanças evidentes. Por outro lado, o há- bito do canto "responsorial", em que um solista canta os textos bíblicos com res- posta da congregação, também foi tomado à liturgia judaica.

Ainda nos séculos III e IV, no momento em que se fixava o ritual da missa, o ofício compunha-se de duas partes. Em primeiro lugar, a Sinaxe. Um cântico de entrada, entoado pelo fiel mais idoso, era seguido da resposta de toda a comuni- dade e da leitura de três passagens das Sagradas Escrituras (leitura feita em canti- lação, recto tono), cada uma delas alternando com o canto responsorial de um salmo. Depois vinha a Homilia, finda a qual os não-cristãos e os catecúmenos deviam retirar-se. Em seguida, a Eucaristia: a prece dos crentes, a oferenda de ob- jetos postos sobre o altar, a comunhão acompanhada do canto de um salmo e a prece final seguida do despedimento dos fiéis.

Estabelecido esse quadro, a liturgia desenvolveu-se rapidamente, sobretudo a partir do momento em que o imperador Constantino reconheceu o cristianismo (ano 313, édito de Milão) e fez da Igreja o que ela passaria a ser daí por diante: uma instituição. A seu sucessor, Teodósio, não restava senão fazer da nova reli- gião uma religião de Estado.

Vale notar que, durante esse tempo, por toda parte se desenvolveram liturgias em línguas vernáculas, na igreja siríaca, na igreja copta, e também na Palestina,

onde se conservou a língua de Cristo, o aramaico, ao passo que, em Roma, a uni- dade litúrgica se alcançou provisoriamente em torno do grego. O litoral italiano da região de Ravena sofreu fortemente a influência da tradição bizantina.

Mas, desde o século IV, o rito conhecido como "romano antigo", que seria su- plantado pelo rito dito "gregoriano", utilizava o latim.

Observe-se que o termo "canto gregoriano" é aplicado erroneamente, por ex- tensão abusiva, a toda forma de cantochão, quando, na verdade, não passa de um dos ramos de um tronco feito de múltiplas Mturgias, as quais a reforma do papa Gregorio I teve por objetivo afastar, numa tentativa de fazer adotar, pelo conjunto da cristandade, a nova liturgia romana.

O mais distante desse novo canto romano é certamente o canto galicano, que, por seu fausto e seus embelezamentos retóricos, estaria mais próximo das cerimô- nias orientais. O canto galicano foi igualmente sensível a influências dos cantos das judiarías de Marselha e das regiões renanas. Os centros mais importantes fo- ram Lyon, Toulouse, Roma, Paris, Colônia e sobretudo Metz, onde foi considerá- vel o seu desenvolvimento. Em Paris, no século VI, São Germano escreveu em hexámetros a Hturgia de uma missa que era cantada pelo clero, pelo povo e por três crianças (em que figurava o cântico das Três crianças na fornalha) e em três línguas: latim, grego, hebraico. A ordem era muito diferente da ordem romana. Em substituição a essas liturgias, Pepino e Carlos Magno esforçaram-se por impor, vencendo resistências, o rito romano. Este, por sua vez, deixa-se impregnar, às vezes, pelas liturgias que veio substiüiir: é o que acontece nas Improperio, preces da Sexta-feira Santa.

As liturgias moçárabes, que os historiadores atuais preferem chamar de hispâ- nicas, desenvolveram-se entre os cristãos que viviam sob a lei islâmica. Na Espa- nha e em Portugal, continuaram em uso até o fim do século XI, mas, depois que os mouros foram expulsos do solo espanhol, o rito romano acabou por se impor. Na época, o mais importante centro musical era Córdoba, onde se desenvolvia a brilhante civilização moçárabe; mas Toledo, então capital, Sevilha e Saragoça eram também centros muito ativos. Há quem pense que essas músicas possam ter intro- duzido elementos orientais nas liturgias galicana e ambrosiana. É difícil pronun- ciar-se a respeito, tanto mais que os manuscritos remanescentes são ilegíveis, pois a notação não dá indicações sobre os intervalos. Graças a uma autorização espe- cial, Toledo manteve alguns desses cânticos em seus ofícios.

A liturgia ambrosiana deve seu nome a Santo Ambrosio, bispo de Milão (374¬ 397). Essa cidade foi, juntamente com Roma, no século IV, um dos grandes cen- tros de renovação e difusão da música. Santo Ambrosio, além de combater a he- resia ariana, empreendeu a reforma da liturgia em Milão. É-lhe atribuída a introdução de admiráveis hinos latinos nos ofícios. Com a beleza do canto, queria ele popularizar o dogma recém-promulgado da Santíssima Trindade, e, de fato, tão belas eram essas melodias que produziam um efeito quase mágico sobre a

multidão. Santo Ambrosio é apontado como autor de quatorze hinos, três dos quais foram introduzidos no breviário romano (Aeterne rerum conditor, Splendor

paternae gloriae e Aeterna Christi muñera).

Compostos de oito estrofes de quatro octossílabos iâmbicos, esses hinos, por sua magnificência, obtiveram imenso sucesso e foram considerados modelos dig- nos de imitação ao longo dos séculos. Para São Bento, "ambrosiano" é sinônimo de "hino".

Se a fonte dessas músicas é latina ou oriental é questão ainda não elucidada até hoje. O canto, como em toda a tradição latina, ou é silábico, ou semi-silábico, ou melismático, mas apresenta grande flexibilidade na utilização dos intervalos e dos modos (não indicados com precisão), além de uma grande exuberância de melismas.

A Itália Setentrional, dependente da igreja siríaca, pode ter recebido influências desta. De qualquer modo, os freqüentes intervalos de quartas ascendentes e des- cendentes que se encontram nas melodias ambrosianas, seguidos às vezes de uma terça descendente, dão a essas melodias um desenho em que sobressai o parentes- co com as melodias orientais.

O canto ambrosiano preservou-se e mantém-se ainda, em toda a sua magnifi- cência, em Milão, em certos vales italianos dos Alpes e na diocese de Lugano.

Foi ao tempo de um certo Paulo Diácono, nos anos 780 — passados quase dois séculos da morte do papa Gregorio, ocorrida em 604 —, que se começou a atribuir a este último a paternidade do canto que leva o seu nome — lenda à qual vieram acrescentar-se, um século mais tarde, a da pomba que murmurava ao seu ouvido, a da chibata com que ele punia os alunos da Schola, etc.

Originário do patriciado romano, de início prefeito de Roma, depois monge beneditino, fundador de sete mosteiros, Gregorio foi eleito papa em 590. Parece que sempre se sentiu saudoso da vida monástica. Moralista, administrador, foi também liturgista. Não tinha, no entanto, a sensibilidade musical de Santo Agos- tinho. Seu biógrafo lhe atribui um "sacramentário" (coletânea das orações da mis- sa) e o estabelecimento do "antifonário". Difícil afirmá-lo com certeza, uma vez que a transmissão das melodias se fazia oralmente, como observa Michel Huglo, mais adiante, neste livro. Por outro lado, duzentos anos separam da obra atribuída a Gregorio os primeiros testemunhos manuscritos, e mais de trezentos medeiam entre essa obra e os textos das melodias ditas gregorianas.

Além do quê, é provável (há quem diga: é certo) que esse rito romano tenha largamente tomado empréstimos à tradição do cantochão de que acabamos de falar, e, em particular, às diversas liturgias galicanas.

Não resta dúvida de que, lentamente, no correr dos séculos, o rito romano impôs-se à cristandade ocidental. Mas o que tinha ele de "gregoriano"?

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TÉCNICA E NOTAÇÃO

No documento MASSIN 1997 Historia Da Musica Ocidental (páginas 82-85)