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A MÚSICA NO SÉCULO X

No documento MASSIN 1997 Historia Da Musica Ocidental (páginas 120-132)

Per viam subtilitatis

EGIDIUS D E M U R I N O

Machaut estava morto havia 33 anos quando o século começou. Para o celebrar, seu discípulo Andrieu optou por exprimir-se sob forma pluritextual, como se fosse esta a técnica que devesse ser considerada a mais promissora na obra de seu mestre. Essa forma, herdada do moteto — do qual constituía a própria essência — e cuja moda entrara em decadência depois de Machaut, transfere-se a outros gêneros profanos, para cujo enriquecimento iria contribuir: este é um dos aspectos daquela acumulação de complexidades que invadem a música da época. E a percepção da obra ficava prejudicada? Pouco importa. A obra de arte não tem por finalidade ser percebida por um público, mas ser vivida por aqueles que a produzem, com todas as suas imbricações intelectuais e estéticas, com todas as suas exigências racionais: sutis relações semânticas ou alegóricas, por vezes mesmo antinómicas. Muitas pro- vas podem ser encontradas no Manuscrito de Chantilly (Museu Condé), o mais representativo desta arte corretamente chamada de ars subtilior. Não é difícil apre- ciar, neste rondó pluritextual de Jehan Vaillant, a terna cumplicidade das três vozes, a relação amorosa — poder-se-ia mesmo dizer — dos três textos simultâneos, em que se enlaçam pedidos e promessas:

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Cantus:

Tres doulz amis, tout ce que proumis t'ay Est tout certain, ne t'en iray raillant; Mais sans fausser entièrement tendray, Tres doulz amis, tout ce que proumis t'ay: C'est que toudis loyalment t'àmeray Pour ce que t'es en tout noumé vaillant. Tres doulz amis, tout ce que proumis t'ay Est tout certain, ne t'en iray faillant.1

Segundo Cantus:

Ma dame, ce que vous m'avez proumis A vous amer et désirer m'amort, C'est que de vous seray noumé amis, Madame, ce que vous m'avez proumis Si vous supli qu'en oubli ne soye mis, Car pour vray, trop avancerait mã mort. Ma dame, ce que vous m'avez proumis A vous amer et désirer m'amort.2

Tenor (?):

Cent mille fois, ma douce dame chière, De vostre humble response vous mercy Coume celle que j'ay plus qu'aultre chière, Cent mille fois, ma douce dame chière. Vueillés dont fayre a mon cuer bone chière Quar chascun jour se met en vo mercy. Cent mille fois, ma douce dame chière, De vostre humble response vous mercy.3

1 [Mui doce amigo tudo o que te hei prometido / É tudo seguro, e não te falharei; / E, sem faltar, integralmente

manterei, / Mui doce amigo, tudo o que te hei prometido: / Pois que sempre lealmente te amarei / Pelo valor que em tudo te é reconhecido. / Mui doce amigo, tudo o que te hei prometido / É tudo seguro, e não te falharei.] (N. T.)

2 [Minha dama, o que me haveis prometido / A vos amar e desejar me tem comprometido, / Pois, se de vós sou

nomeado amigo, / Senhora, o que me tendes prometido, / Sim, vos suplico, não caia no olvido, / Pois tal minha morte apressaria, caso houvesse acontecido. / Minha dama, o que me prometestes / A vos amar e desejar me compromete.] (N. T.)

3 [Cem mil vezes, doce e cara dama, / De vossa humilde resposta vos agradeço / Como aquela, mais que outra

qualquer, que me é querida, / Cem mil vezes, minha doce e cara dama. / Dai, portanto, a meu coração boa guarida, / Que, cada dia, submeto ao vosso apreço. / Cem mil vezes, minha doce e cara dama, / De vossa humilde resposta vos agradeço.] (N. T.)

A música no século XV 213

Essa forma de contraponto literário coloca bem em evidência certo gosto por uma riqueza exuberante, em que se identificava certamente um critério de quali- dade da obra de arte, mesmo quando lhe sacrificava a compreensão. À exigência de percepção múltipla, podia-se acrescentar — como é o caso nesta peça — um novo empenho em fazer ressurgir, em uma mesma voz (mesmo ao custo de ignorar a habitual especificidade das duas seções do rondó ou do virelai), motivos melódicos já ouvidos, conferindo-lhes, porém, uma contextualização diferente nas outras vo- zes. Tal procedimento, que a geração de Dufay não irá preservar, concorria de ma- neira surpreendentemente eficaz para a unificação interna da obra.

Todavia, foram os requintes rítmicos que, em todas as épocas, atraíram prefe- rencialmente a atenção dos historiadores: o emprego de valores cada vez mais breves, com grafia bem amarrada, traduzindo de maneira eloqüente a velocidade da voz superior, e principalmente inesperadas superposições de ritmos conflitan- tes. Por vezes a complexidade é tal, que a realização prática só poderia ser aleató- ria. W. Apel, um dos mais eminentes estudiosos da música dessa época, limitou- se a reproduzir, abaixo da pauta, os valores iniciais, de modo a fazer aparecer o ritmo autêntico, para além da contagem numérica, indispensável segundo nossas exigências.

J. J I j ; j ; r i J i j J:

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11

Philipactus da Casería - Balada: De ma douleur

Entre os compositores cujos nomes nos foram transmitidos pelos manuscritos e cuja atividade — a acreditar-se nas fontes — parece ter tido como cenário as cortes principescas do sul da França, o reino de Aragão e a ilha de Chipre (a corte dos Lusignan era um importante centro de cultura francesa), nenhum deles des- taca-se com relação aos outros. Pierre de Molins, Solage, Suzoy, Grimache, Vail- lant, Hasprois, Cuvefier, Senleches, Cesaris, Carmen e Tapissier são os representan- tes dessa arte que, segundo Ch. Van den Borren, perde-se nas "deliqüescências de uma arte flamejante" para as quais a única saída seria um "retorno à simplicidade para sair desse impasse".

As premissas do Renascimento

"Fiaminghi, Francesi, Oltramontan? na Itália: "Questi sono i veri maestri delia mu-

szca"(Guicciardini).

Deixemos a esse italiano do século XVI a tarefa de reconhecer retrospectiva- mente uma evidência contra a qual ninguém se ergue: o Quattrocento constitui "uma espécie de deserto que os historiadores da música sempre consideraram com

surpresa e reserva" (N. Bridgman). Depois de um Trecento musicalmente muito ativo — sobretudo na Toscana — e bastante original, graças a sua vocação para uma certa complacência na expressão melódica, a Itália pós-Landini (morto em 1397) parece nutrir certos complexos em relação às realizações francesas. Lança-se até o fundo em uma produção mais intelectual, menos espontânea (muitas vezes sobre textos franceses), até o ponto de perder aquilo que constituía sua especifi- cidade e fundir-se na estética dos que, na corte papal de Avignon, foram os últimos cultores da ars subtilior. A outros caberá retomar o bastão e não haveriam de ser os italianos, mas aqueles estrangeiros que, naquele início de século, atraídos pelo cha- péu pontificai tornado agora novamente romano, ganham o proscênio, sobretudo aqueles músicos vindos do norte, de regiões poupadas pelo conflito franco-inglês, como o principado de Liège e o Cambrésis. De fato, são originários de Liège um certo Johannes Ciconia (morto em 1411 ou 1412), em cuja obra são claramente perceptíveis os elementos de uma linguagem nova, bem como todo aquele grupo de compositores notáveis que constituem o ambiente do jovem Dufay: Arnold de Lantins (o primeiro que, em sua missa Verbum incarnatum, parece haver lançado as bases da missa unitária) e seu irmão Hugo, Jehan Brassart, Johannes Franchois (de Gembloux), Bertram Feragut, este último proveniente de Avignon. Uma arte em que o intelectualismo e o maneirismo cedem vez à naturalidade e à graça está presente nos motetos desses compositores que quase já não recorrem aos procedimentos de isorritmia e que, sem ser verdadeiramente fitúrgicos, foram escritos sobre textos latinos e eram destinados a cerimônias (como o faustoso e ainda bitextual Ut te per omnes/Ingens alumnus Paduae, de J. Ciconia, e o terno moteto mariano Tota pulchra es, árnica mea, de A. de Lantins, em que as duas vozes superiores alternam suas invocações em um belo efeito de eco); o mesmo ocorre nas canções a três vozes, por vezes tão graciosas (Pour resjoïr la compagnie [Para alegrar a companhia], de H . de Lantins), por vezes dotadas de intensa expressão (Or voy je bien queje morray mártir [Agora vejo bem que morrerei mártir], ou

Se neprenés de moi pitié [Se não tiverdes de mim piedade], de A. de Lantins).

"A contenção inglesa"

De hábito, aos músicos ingleses se reconhecem os méritos de haverem feito inter- vir na linguagem musical uma suavidade toda nova e de terem sido os primeiros a organizar, de modo unitário, algumas das partes do ordinário da missa— Gloria,

Credo e Sanctus, por exemplo. Sem querer subtrair-lhes essa dupla paternidade, é

preciso pelo menos matizar esta afirmação, que vem de longa data. Já na década de 1440, Martin Le Franc, poeta da corte de Borgonha, afirmava, em seu Champion

des dames [Campeão das damas], a superioridade da arte de além-Mancha e a

influência decisiva desta sobre a arte do continente. Em vista do que se disse acima, pode-se desde já constatar que, se os ingleses fizeram alguma coisa pela

elaboração da missa unitária, os liegenses da Itália não ficaram atrás. Muito pelo contrário. Sem dúvida, produziu-se nesse domínio, como em outros, uma eclosão simultânea, sem que haja necessidade de justificá-la recorrendo a um jogo qualquer de influências ou interferências. Decerto é preciso considerar como mais autêntico o impacto que puderam ter sobre os músicos franceses os novos agrega- dos sonoros em que se consagram terças e sextas, reputadas, desde o início da polifonia, consonâncias de transição, ao passo que os ingleses beneficiaram-se, nesse domínio, de um longo hábito que Martin Le Franc — que decididamente não é insensível ao fato musical — chama de "nova prática de fazer frisque concor-

dance" (isto é, graciosa concordância). Essa prática é mais antiga do que pensa o

próprio Martin Le Franc: basta lembrar a maneira rudimentar de enriquecimento espacial da melodia chamada gymel praticada desde o século XII (cantusgemellus, canto duplo na terça ou na sexta inferior), e cujas características podem ser reen- contradas no fabordão (faux-bordon), que os contemporâneos de Dufay tanto ad- miravam. Mesmo que seja preciso descontar o que há de propaganda no que diz o poeta — que provavelmente tinha interesse em exaltar o mérito dos aliados in- gleses e em denegrir a rudeza das quartas e quintas praticadas pelos "franceses de França" —, é bastante verossímil que a superioridade dos ingleses, naquele início do século, possa ter levado Martin Le Franc a adotar o ponto de vista do mais forte, até mesmo porque a atividade artística florescia com mais força na corte de Borgonha do que na da França... ou na de Bourges! A presença dos ingleses na França não se limitava a uma ocupação militar, e a presença, em solo francês, de Dunstable, músico do duque de Bedford, não pôde deixar de ser sentida como uma contribuição do mais alto interesse.

Podemos ainda mais facilmente admitir o que afirma Martin Le Franc na me- dida em que a música inglesa — mais bem conhecida desde que as obras contidas no vasto Manuscrito de Old Hall (escritas provavelmente por volta de 1420, em vida do rei inglês Henrique V, o vencedor da batalha de Azincourt) foram postas em partitura — parece ter experimentado, desde o final do século XIV, uma vitalidade muito nova, e também porque, de uma massa considerável de nomes de composi- tores, destacam-se aqueles dos dois maiores expoentes da época: John Dunstable, morto em 1453, e cuja carreira, em vista das circunstâncias, foi parcialmente fran- cesa; e Leonel Power, morto em 1445, que parece nunca ter deixado Canterbury. Devem-se a um ou ao outro — pois não é fácil distinguir as produções de ambos — os conjuntos unitários a três vozes que são a missa Alma Redemptoris, atribuída a Leonel, ou a missa Rex seculorum, de Dunstable, em que se encontram reagrupa- das as outras partes do ordinarium missae (ordinário da missa) que não o Kyrie — não incluído na liturgia inglesa —, pela intermediação de um cantus firmus único.

Mais ainda do que nas missas, contudo, é nos motetos de Dunstable que apa- rece, com toda a evidência, a preocupação com uma eufonía muito nova, produ- zida pelo uso sustentado de acordes encadeados de sexta, que parecem descartar

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um pouco o interesse que os continentais demonstravam pelo jogo das linhas: a impressão que prevalece é — curiosamente já — a de uma harmonização. Julgue- se, desse ponto de vista, o belíssimo moteto Quant pulchra es, em que o conjunto da polifonia aceita desenrolar-se com base na declamação da voz superior.

Ultrapassado o acimirável desabrochar desses cinqüenta anos, a música inglesa volta à insularidade e abandona o proscênio. Depois de Dunstable, só se pode citar Walter Frye e Robert Morton (morto em 1475), os quais, por sinal, serviram "à muito nobre, resplandescente e opulenta casa dos Borgonheses, cujo renome hoje corre os sete climas" (Jean Molinet); Morton chegou mesmo a ser professor de contraponto do conde de Charoláis, o futuro duque de Borgonha, conhecido co- mo Carlos, o Temerário.

O ESTADO BORGONHÊS E SEU IMPULSO CULTURAL

[A existência e o progresso do ducado de Borgonha estão, com efeito, entre os dados mais importantes, sem os quais seria incompreensível a história, não apenas política, mas também cultural, do século XV. Sob o reinado dos quatro duques de Borgonha pertencentes à dinastia dos Valois — Filipe, o Audaz, de 1363 a 1404; João Sem Medo, de 1404 a 1419; Filipe, o Bom, de 1419 a 1467, e Carlos, o Temerário, de 1467 a 1477 —, constituiu-se um Estado poderoso que, pela hábil combinação de casa- mentos, alianças e anexações, reuniu as duas Borgonhas (a ducal e a condal, que é o Franco Condado) ao que os historiadores tendem atualmente a chamar de "os anti- gos Países Baixos" (atualmente Holanda, Bélgica, Luxemburgo e norte da França até

a Somme — menos alguns enclaves, como Utrecht, Cambrai ou Liège, que estavam sob sua esfera de influência). O "Grão-Ducado do Ocidente", como era então, por vezes, designado, acabaria por assegurar a ligação entre os seus dois conjuntos de territórios, ao ocupar o sul da Alsácia e da Lorena.

Diante de um Império Germânico a que faltava a mais elementar coesão, de uma França e de uma Inglaterra tornadas exangües pela Guerra dos Cem Anos (e depois, no que diz respeito à Inglaterra, pela Guerra das Rosas), e de uma Espanha que ainda procurava encontrar-se, o Grão-Ducado do Ocidente regurgitava de recursos indus-

triais, comerciais e agrícolas, beneficiando-se sobretudo das suas terras setentrionais, onde se desenvolvia a atividade tão enérgica quanto inteligente de uma burguesia que se igualava à da Itália dividida, ou mesmo a ultrapassava. Não há nada de surpreen- dente no fato de o Grão-Ducado borgonhês desempenhar, para artistas e músicos, o duplo papel de um centro de atração e de um viveiro de gênios e talentos de primeira ordem. O dinamismo e o poder de irradiação eram tão acentuados que, mesmo depois do deplorável desastre em que vieram a naufragar as grandes ambições do Temerário e da anexação, pelo rei francês Luís XI, da Borgonha propriamente dita, "os antigos Países Baixos", de então em diante súditos'dos Habsburgo, iriam conservar sua espan- tosa vitalidade humana, não cessando de produzir músicos e pintores extraordinários durante quase todo o século XVI.

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Falou-se amiúde, na história da música, da "escola borgonhesa", ou dos "franco- flamengos": denominações bastante impróprias, às quais não se recorrerá neste livro.

É bem mais importante lembrar que, na idade de ouro dos "antigos Países Baixos", que vai, grosso modo, da subida ao trono de Filipe, o Bom até a abdicação de Carlos V de Habsburgo (perto de um século e meio), os gênios musicais são precisamente con- temporâneos aos da pintura, desde Van Eyck (só um pouco mais velho que Dufay e Binchois), Van der Weyden (contemporâneo destes) e Memling (contemporâneo de Ockeghem), a Hieronymus Bosch (contemporâneo de Josquin Des Prés), PieterBrue- gel (pouco mais velho que Orlando ãeLassus). Antes falava-se tolamente de "flamen- gos primitivos", quando inúmeros deles eram valões, renanos ou brabantinos do norte. Em vez de perder tempo com etiquetas nacionalistas (sem sentido nos séculos XV e XVI), mais vale maravilhar-se com a pléiade de músicos que nasceram no território ou nos arredores do Grão-Ducado do Ocidente para logo formarem novos pontos de convergência em toda a Europa, desempenhando um papel capital no Renascimento musical da própria Itália.

Para pôr termo, em tom mais humorístico, à irritante confusão das terminologias geográficas, lembremos que, ainda por volta de 1600, o Rei Lear opunha "os vinhedos da França" ao "leite" da "aquática Borgonha". É evidente que, para Shakespeare, bom vinho, na França, só o Bordelais, e que a Borgonha evocava mais as desembocaduras do Escaut e do Meuse que os vinhedos de Vougeot ou de Chambertin. A geografia histórica por vezes pode parecer ridícula. J.M.]

Guillaume Dufay (ca. 1400-1474)

Nascido em Cambrai e ali formado como mestre de capela da catedral, primei- ro por Nicole Malin e depois por Richard de Loqueville, e finalmente cônego de Cambrai, Guillaume Dufay revelar-se-ia o genial herdeiro das diversas influências mencionadas antes. Como outros clérigos de Cambrai, passou uma parte de sua carreira na Italia. Os contatos que pôde fazer durante o Concilio de Constância (1417-1418), de que participou como integrante do séquito de Pierre d'Ailly, bispo de Cambrai, foram sem dúvida determinantes: não é impossível que tenha encon- trado ali os Malatesta, a serviço dos quais iria permanecer durante vários anos. Por volta de 1420, teve início sua estada intermitente de cerca de 25 anos na Itália e na Savóia, durante a qual teve postos em várias cortes principescas, entre as quais a capela pontificial, de 1428 a 1433 e de 1435 a 1437, antes de voltar a Cambrai, onde exerceu suas atividades até a morte, em 27 de novembro de 1474. Sem que haja provas de haver pertencido à brilhante corte de Filipe, o Bom, é certo que Dufay manteve relações com ela, mesmo que a título honorífico, pois existe um documen- to qualificando-o como cantor do duque de Borgonha e outro como cappelanus.

A produção de Dufay abrange todos os gêneros de maneira equilibrada e é bem

bamos de traçar, Guillaume de Machaut. As oito ou nove missas, os motetos isor- rítmicos, as composições religiosas funcionais escritas no estilo de cantilena e fi- nalmente as canções constituem o rundo a partir do qual pôde proliferar o desen- volvimento posterior.

AS MISSAS

A constituição de um conjunto coerente de peças para formar ciclos é a grande questão do século. Mesmo que tenham existido, no século XIV, alguns conjuntos, dos quais a Messe de Machaut é o exemplo mais famoso, não se pode dizer que o hábito de considerar as peças do ordinário da missa como um todo estivesse de- finitivamente estabelecido. Ainda prevaleceria por muito tempo o antigo costume de deixar ao mestre de capela a liberdade de escolher a seu gosto esse ou aquele

Kyrie, esse ou aquele Sanctus, sem que se considerasse necessário haver, entre essas

peças — que permaneciam separadas no tempo —, uma ligação orgânica. É pre- ciso não esquecer que as dezoito missas gregorianas são apenas grupamentos com- pósitos e aparentemente fortuitos: o mais das vezes, não existem nem retornos temáticos, nem relação de tonalidade. Nada a estranhar, portanto, no fato de que Dufay, como a imensa maioria de seus contemporâneos, tenha composto um nú- mero nem um pouco desprezível de fragmentos (37, no total, ou seja, onze Kyrie, quatorze Gloria, quatro Credo, quatro Sanctus, quatro Agnus Dei). Mas não está nisso o espírito essencial da produção deste compositor; por essa razão, pensou-se serem essas peças inevitavelmente anteriores aos conjuntos cíclicos. Hoje em dia, tal classificação simplista não é mais vista como defensável: a evolução rumo à organização dos ciclos não é simples nem súbita. A idéia de ciclo só iria impor-se na época em que Dufay voltou a Cambrai.

Chegou a hora de precisar o que se deve entender pelos termos cíclico e unitá- rio. A partir do momento em que se encontram reunidas ordenadamente em um mesmo manuscrito as cinco ou seis peças musicais do ordinário da missa, há fun- damento para se falar em ciclo: é neste sentido que a Messe de Tournai, bastante conhecida atualmente, é uma missa cíclica. Dir-se-á que é unitária a missa na qual o compositor tem o cuidado de juntar as diferentes seções por meio de um ele-

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