• Nenhum resultado encontrado

O Japão Moderno

3.9. Comparando Benedict e Nakane

Apesar de diferentes preocupações, focos e níveis de análises, podemos dizer que Nakane compartilha o estilo “cultura e personalidade” de Benedict. Ao buscar um conceito holístico, estrutura ou princípio para entender a singularidade japonesa, ambas as autoras privilegiam a homogeneidade sobre a heterogeneidade e negligenciam as diferenças. Além disso, elas enaltecem a singularidade japonesa em detrimento dos fatores não culturais. Ao insistir que todo japonês é vertical por natureza, Nakane oferece uma visão unidimensional, anistórica e acaba reificando o Japão e os japoneses como sendo de essência estática. Como é universal entre os esforços estatais bem-sucedidos, a ascensão do Estado moderno integrou a nação sob controle central. A emergência e a agilidade particular do governo Meiji sem dúvida intensificaram a imposição estatal da violência sobre a população e a necessidade de controle de cima para baixo, encapsulado no sistema do Imperador (IROKAWA 1976, KANO 1986). Além disso, ambas as autoras ignoraram as diferenças e as mudanças, desviando-se dos fatores não culturais. A ‘cultura’ emerge como a explicação. Ao fazer isso, ambas silenciam sobre as forças políticas e econômicas que configuraram a trajetória do Japão contemporâneo.

Pode-se dizer ainda que ambos os trabalhos não têm uma perspectiva comparativa e exaltam a singularidade japonesa. Isso é irônico, pois as duas autoras são versadas em teorias ocidentais: Nakane pela antropologia funcionalista britânica e Benedict pela

antropologia cultural americana. Contudo, elas criaram um contraste imaginado entre o Japão e o Ocidente. Ao fazer isso, elas reificaram e homogeneizaram o Ocidente, fazendo com que o Ocidente pareça como o extremo oposto ao Japão. Mesmo que esse contraste possa ser plausível, pode-se questionar então qual o lugar das sociedades não-européias da África, Ásia e América Latina, por exemplo.

As similaridades e comparações são, portanto, negligenciadas a favor das suposições implícitas – às vezes explícitas – da singularidade japonesa (LIE 1996:12).

Nesse sentido, MOUER & SUGIMOTO (1986a:15-16) concordam com isso. Eles atentam

que, como a base comparativa é sempre alguma noção idealizada do Ocidente (como vimos na discussão sobre o Orientalismo / auto-Orientalismo), as afirmações comparativas sobre os comportamentos no Japão são sempre feitas para dizer que o Japão é único, sendo que de fato, muitos casos semelhantes sempre existem fora do Ocidente. Além de tudo, ao tratar o Ocidente como monólito, os casos individuais paralelos ao Japão, mesmo no Ocidente, não são considerados.

Junto com o seu treinamento teórico ocidental, Nakane apresenta fortes traços de nativismo. Na verdade, o universalismo teórico ironicamente abrangeu apenas superficialmente os argumentos problemáticos sobre singularidade japonesa. O aparente universalismo teórico mascara o forte nativismo empírico em um problema comum quando as teorias “ocidentais” encontram as “realidades” japonesas.

Esse tipo de problema trouxe, no entanto, algumas questões fundamentais para os teóricos sociais, sejam ocidentais ou orientais, no que se refere, por exemplo, às relações: [1] entre as análises culturais e a análise político-econômica; [2] da universalidade da teoria ocidental oposta à particularidade da teoria japonesa; [3] de metodologias apropriadas para a compreensão da adistintividade sociológica das sociedades individuais sem forçá-las à demanda etnocêntrica e anistórica para a uniformidade e a relação entre ideologia e prática; [4] entre uma concepção de sociedade e o comportamento de seus membros.

Segundo CLAMMER (1995:2), o estudo empírico da sociedade japonesa levantou

essas questões de um modo perspicaz e particular. Temos aí uma sociedade de grande escala que tem sido notavelmente bem sucedida em criar uma sociedade industrial, tecnológica e consumista, mas que tem desafiado muitas tentativas de teorizá-la. Ela é

realmente capitalista ou democrática? Ou será mesmo moderna? Será, talvez, sociologicamente tribal ou feudal enquanto é capaz de administrar a tecnologia de uma maneira eficiente e única? Será uma sociedade de “grupos” organizada de modo vertical, de modo que nega a necessidade de classes (NAKANE 1992[1967])? Seja qual for o ponto de vista, as análises sobre a sociedade japonesa colocam questões dessa natureza, que podem ser certamente respondidas em termos da teoria social existente e essencialmente ocidental, mas que são muito difíceis de responder usando o vocabulário e a epistemologia das opções teóricas disponíveis que temos. Como MARUYAMA Masao 丸

山 真 男 [1914-1996] (1982:130) observou, uma tarefa essencial dos intelectuais

japoneses é transcender a falsa dicotomia entre o universalismo “estrangeiro” e o nativismo “doméstico”. Nesse sentido, pode-se dizer que as teorias da singularidade japonesa claramente falham ao se depararem com o desafio posto por Maruyama.

Na mesma linha, LIE (1996:12) concorda que as teorias sobre singularidade

japonesa constantemente demonstram armadilhas. Além da inadequação empírica, as falhas teóricas comuns incluem a heterogeneidade interna negligenciada em favor da homogeneidade assumida, desfalecendo mudanças históricas e assim oferecendo uma perspectiva fundamentalmente anistórica, privilegiando a ‘cultura’ em detrimento de outras variáveis e omitindo similaridades com outras sociedades no sentido de enfatizar a singularidade japonesa.

Depois de Nakane e Benedict, vários livros que tenderam a essencializar a ‘cultura’ coletivista japonesa, em diversas áreas do conhecimento como Psicologia, Antropologia, Administração ou Biologia, foram publicados nos anos 1970. Essa quantidade de publicações de nihonjinron foi um sucesso de venda, portanto muito consumido, tanto que se tornou uma mercadoria popular (BEFU 1987). Em outras palavras, isso mostra a ‘comoditização’ da identidade japonesa, isto é, o ‘nihonjin’ (japonês) virou uma mercadoria, um fetiche da sociedade capitalista. Vide esse boom asiático no início do terceiro milênio: o que foi etnicizado, virou chique, virou moda, virou mercadoria, virou objeto de desejo: a culinária japonesa com a popularização do sushi e sashimi. Virou o centro da cultura pop atual: vide a febre de anime (desenho

animado), mangá (histórias em quadrinhos), o sucesso do karaokê55 criando novos grupos sociais, atingindo principalmente os jovens, embora não apenas. “Japan” tornou-se sinônimo de tecnologia de ponta e alta cultura.