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O Japão Moderno

3.1. O Orientalismo e o Japão

“É o Japão um país oriental ou ocidental?”. “Como o Japão imagina a sua própria identidade?” – essas indagações muitas vezes são remetidas à idéia de “Orientalismo” de Edward Wadie SAID (1935-2003). Em 1978, ele publicou “Orientalismo – O Oriente

como Invenção do Ocidente”.37 Nessa obra, Said se refere à sociedade islâmica do Oriente Médio e Próximo38, nos séculos XIX e XX. Para ele, o Orientalismo é um modo

37 Publicado em português no Brasil, em 1990. Veja S

AID (1990 [1978]).

38 O próprio Said (1990:37) diz que o recorte de seu tema está relacionado, dentre outras coisas, com a sua própria trajetória de vida pessoal: “Muito do meu investimento pessoal neste estudo deriva da minha consciência de ser um ‘oriental’ como uma criança que cresceu em duas colônias britânicas. Toda a minha educação, nessas colônias (Palestina e Egito) e nos Estados Unidos, foi ocidental, e, no entanto, aquela profunda primeira impressão permaneceu. De muitas maneiras o meu estudo do orientalismo foi uma tentativa de inventariar em mim o oriental, os traços dessa cultura cuja dominação foi um fator tão

de resolver o Oriente que está baseado no lugar especial ocupado pelo Oriente na experiência ocidental européia, sobretudo derivada de uma proximidade particular que se deu entre a Inglaterra e a França e o Oriente, que é o foco de análise do autor.

Por um lado, o Orientalismo pode ser interpretado como um estilo ocidental para dominar, reestruturar e ter autoridade sobre o Oriente, isto é, a relação entre o Ocidente e o Oriente é uma relação de poder, de dominação, de graus variados de uma complexa hegemonia. Isto é, para o autor, uma longa tradição de imagens falsas e romantizadas da Ásia e do Oriente Médio na cultura ocidental serviu para justificar implicitamente as ambições imperiais e coloniais da Europa e dos Estados Unidos. Por outro lado, o Oriente ajudou a definir a Europa (ou o Ocidente), como sua imagem, idéia, personalidade e experiência do contraste. Nesse sentido, por causa do Orientalismo, o Oriente não era (e não é) um tema livre de pensamento e de ação impostas pelo Orientalismo. Assim como o próprio Ocidente, o Oriente é uma idéia que tem uma história e uma tradição de pensamento, imagística e vocabulário que lhe deram realidade e presença no e para o Ocidente. As duas entidades geográficas, desse modo, apóiam e, em certa medida, refletem uma à outra (SAID 1990:13-17). Ou seja, a construção do ‘Outro’ – seja do

Oriente seja do Ocidente, no caso aqui – é necessariamente relacional, uma via de mão dupla. No final dos anos 80, o próprio autor observa criticamente que o termo ‘Orientalismo’ vem caindo na preferência dos especialistas, tanto por ser vago e geral demais quanto por ser conotativo da arrogante atitude executiva do colonialismo europeu do século XIX e início do século XX (ibid:14).

O Oriente, diz ele, “era quase uma invenção européia, e fora desde a Antiguidade um lugar de romance, de seres exóticos, de memórias e paisagens obsessivas, de experiências notáveis” (ibid:13). Na sua obra, ao falar de Oriente, Said está se referindo, como já disse, ao Oriente Médio e Próximo, sendo que o Japão que fica no Extremo Oriente, quase não é mencionado. Mesmo com raras abordagens sobre o Japão pelo próprio Said, muitas vezes essa idéia de Orientalismo se faz presente também nas análises

poderoso na vida de todos os orientais. É por isso que para mim o Oriente islâmico teve de ser o centro da atenção”.

sobre esse país. Como então o Japão recebeu o ‘Orientalismo’ de Said? Quais são os significados da teoria de Orientalismo de Said no contexto japonês?

NISHIHARA Daisuke (2005) observou que o Orientalismo de Said não evocou a mesma forte antipatia dos conservadores japoneses como foi no Ocidente. Ao contrário, muitos intelectuais japoneses, sejam eles marxistas ou conservadores, são simpáticos à crítica severa de Said em relação ao Ocidente. Sendo uma nação oriental, o Japão se expôs às fortes pressões políticas e militares das potências ocidentais como a Inglaterra, os Estados Unidos, a Rússia desde os primórdios da modernização. Ao mesmo tempo, os intelectuais japoneses sempre estiveram conscientes da representação preconceituosa do Oriente pelo Ocidente e que o discurso ocidental sobre o Oriente estava profundamente conectado com a estrutura de poder ocidental.

Na virada do século XIX ao XX, os intelectuais japoneses estavam bem conscientes do problema da representação do Oriente no mundo ocidental. O Japão tinha um solo já fértil o suficiente para plantar e sustentar uma teoria antiorientalista. Entretanto, não é surpresa que a teoria orientalista semeada por Said logo começou a germinar no mundo acadêmico japonês. A recepção de Said não acabou sendo uma mera ressurgência de um sentimento antiocidental. Mais do que isso, a maneira como a obra de Said foi recebida fez surgir sentimentos de culpa associados com o fato de que o Japão em si, assim como as potências ocidentais, foi colonizador. Como vimos no Capítulo 1, o império japonês colonizou Taiwan, Coréia, Micronésia e Manchúria e, na fase final do imperialismo, o Japão também ocupou uma vasta área da China continental e Sudeste da Ásia. Assim, a história do império japonês não pode se tornar um alvo de críticas severas da teoria Orientalista. Como um dos resultados, a concepção de Said de pós-colonialismo foi facilmente adotada pela tradição do marxismo japonês que condenou o militarismo do pré-guerra, à medida que a ala esquerda da academia começou a aplicar a teoria de Said no sentido de analisar melhor o discurso do Japão no pré-guerra sobre outros países asiáticos. A recepção de Edward Said no Japão foi, portanto, um fenômeno considerável. A primeira tradução para o Japão de “Orientalismo” surgiu em 1986, oito anos depois da publicação do original em inglês. Desde então, várias traduções da obra de Said emergiram uma atrás da outra. O nome de ‘E-do-wa-a-do Sa-i-i-do’ [ エドワード・サイ

ー ド ] é muito popular entre os intelectuais japoneses hoje. Se percorrermos as

prateleiras de ‘Pensamentos Contemporâneos’ das grandes livrarias japonesas, pode-se facilmente encontrar pilhas de traduções das obras de Said (NISHIHARA 2005).

Entretanto, a teoria do Orientalismo, uma vez que foi trazida ao contexto asiático oriental, tornou-se mais complicada. Não há duvida de que o Japão se situa no Oriente, mas em termos políticos, procurou se tornar uma nação ‘Ocidental’. Assim, o país tem características tanto do Oriente quanto do Ocidente. Então, como a discussão do Orientalismo Japonês contribui para a teoria geral? Qual foi o impacto da obra de Said entre os intelectuais japoneses? Pode-se dizer que a referência de Said ao Japão é fragmentada. Também é verdade que ele focaliza o Japão apenas como um membro do Oriente e negligencia o seu outro lado: o colonizador. Contudo, exatamente essa falta de referência ao Japão nos escritos de Said acabou incentivando os críticos japoneses a examinarem a teoria Orientalista no contexto da Ásia Oriental. O Japão tem características tanto do Oriente quanto do Ocidente, o que compõe a realidade da história moderna japonesa. Olhando o mundo de um século atrás, o Japão foi a única nação que se desenvolveu no Oriente, enquanto a maioria dos países asiáticos e africanos foram colonizados e sofreram a exploração das potências ocidentais. Neste cenário, a estratégia adotada pelos japoneses foi contraditória. Enquanto era necessário à nação insistir na singularidade do Japão, primeiro enfatizou-se o espírito do Oriente, como pudemos notar através da Esfera da Co-Prosperidade, no capítulo 1. Quando surgiu a questão da civilização, o Japão comportou-se completamente como um Estado ocidentalizado quando ele dominou as áreas asiáticas vizinhas.

Neste contexto, o antagonismo binominal de Said, de ‘Oriente x Ocidente’ e ‘colonizador x colonizado’, tornou-se extremamente complicado. IMAZAWA Noriko, a tradutora do livro ‘Orientalismo’ para o japonês, afirma no posfácio que: “na estrutura do Orientalismo, o Ocidente, como o sujeito ou dominador, e o Oriente como o objeto ou dominado, colocam-se em oposição. Considerando esta estrutura, o Japão Moderno tem uma posição extremamente especial. Geograficamente e culturalmente, o Japão, sendo parte do mundo não-ocidental, sem dúvida pertence ao objeto ou dominado. Contudo, o Japão Moderno tentou ser uma das potências imperialistas e assim, a nação foi ávida em

aprender o pensamento ocidental no sentido de estabelecer suas próprias colônias” (NISHIHARA 2005).

Existem muitos exemplos sobre o Japão enquanto um país oriental. O discurso ocidental sobre o Japão, assim como o mundo islâmico, foi caracterizado pela ditadura, fanatismo e crueldade. Por exemplo, a representação dos guerreiros samurais 侍 foi criada e associada a essas imagens. A tradição do suicídio harakiri 腹切り(também chamado de seppuku 切腹) e mesmo os ataques aéreos dos kamikaze 神風 durante a Segunda Guerra Mundial foram interpretados como evidências de características bárbaras dos japoneses. A espada japonesa era a principal imagem da violência. É possível que os próprios intelectuais japoneses tenham contribuído para essas representações, à medida que eles foram receptivos à imagem ocidental de um Samurai e cooperaram para espalhar isso mundialmente. Nesse sentido, um dos processos através do qual as ideologias ou mitos dominantes construíram a ‘japonicidade’ desde os meados do século XIX, foi o da ‘samuraização’, como sugeriu BEFU (1971:50). Por exemplo, NITOBE Inazō 39 新渡戸稲

造 (1862-1933), autor de “Bushidō, o Espírito do Japão”「 武士道」(1900), pautou-se

na imagem do samurai para proclamar a grandeza da ética tradicional japonesa. Os valores confucionistas da classe guerreira dos samurais – que compunha apenas 6% da população japonesa – foram massivamente disseminados através da educação e do trabalho. Tais valores incluem lealdade dos inferiores, benevolência dos superiores, respeito à hierarquia, diligência e o baixo status da mulher. A formação social japonesa fragmentada indica que não havia homogeneidade (IWABUCHI 1994). Entretanto, para construir uma nação unificada, várias ideologias, mitos e ‘tradições inventadas’ (HOBSBAWM & RANGER 1984) tiveram que ser representadas e disseminadas.

Um outro exemplo é a gueisha 芸者 como um epítome do clichê da sensualidade imposta sobre o Japão. O Oriente, incluindo o Japão, foi associado com a gratificação de prazeres sexuais pelos homens ocidentais. A gueixa aparece repetidamente na literatura e arte ocidental. Por exemplo, as peças “Madame Crisântemo” (1887) de Pierre LOTI

39 Nitobe Inazō era um ativista político internacional, educador, filósofo, agriculturista japonês cristão. Ele foi vice-Ministro da Liga das Nações e foi o fundador da Universidade Cristã Feminina de Tokyo [ Tokyo Joshi Daigaku 東京女子大学 ]. O seu retrato está impresso na nota de 5.000 ienes (de 1984 a 2004).

(1850-1923) e “Madame Butterfly” (1904) composta por Giacomo PUCCINI (1858-1924) foram amplamente baseadas nas imagens que se tinham e ainda se têm sobre as gueixas. Contudo, não se deve concluir precipitadamente que a imagem sexual da gueixa foi imposta unilateralmente pelo Orientalismo ocidental. Os japoneses também se utilizaram do discurso sobre a gueixa. No contexto japonês, a imagem sexual foi suavizada e a gueixa se tornou o símbolo da beleza japonesa, tornando-se mais aceitável aos japoneses (NISHIHARA 2005).

MINEAR (1980) argumenta que os observadores ocidentais do Japão como

Lafcadio HEARN40, CHAMBERLAIN41 e REISCHAUER42 compartilham questões ontológicas

sobre o Ocidente e o Outro exótico mas inferior – o Japão. Eles são fascinados com algumas partes exóticas e lamentam a perda da tradição japonesa ‘autêntica’ no processo de modernização. Mas todos eles estavam certos de que o futuro do Japão seria modelado pela civilização ocidental (IWABUCHI 1994).

Por sua vez, o que a experiência japonesa faz pensar sobre o Orientalismo? Como a discussão do Orientalismo Japonês contribui à teoria do Orientalismo como um todo? Para tal, surge a questão da mutabilidade entre o sujeito e o objeto. Na teoria de Said, o

40 Patrick Lafcadio H

EARN (1850-1904) também é conhecido como KOIZUMI Yakumo [ 小泉八雲 ] depois de ganhar a cidadania japonesa. Ele foi um autor muito conhecido por seus livros sobre o Japão. É

especialmente bem conhecido pelos japoneses nas suas coleções de lendas e histórias de fantasmas. (Wikipédia, palavra-chave:’Lafcadio Hearn”: http://en.wikipedia.org/wiki/Lafcadio_Hearn ). 41 Basil Hall C

HAMBERLAIN (1850-1935) foi professor da Universidade Imperial de Tokyo desde 1886. Foi um dos mais proeminentes japonólogos britânicos ativos no Japão durante o século XIX. Ele foi o primeiro a traduzir Kojiki 古事記 – história mítica da criação do Japão para o inglês (1906). Veja sites dessa tradução como por exemplo: “Japanese Creation Myth (712 CE) – From Genji Shibukawa: Tales from the Kojiki” (Washington State University):

http://www.wsu.edu:8080/~wldciv/world_civ_reader/world_civ_reader_1/kojiki.html; e Kojiki Index: http://www.sacred-texts.com/shi/kj/index.htm ]; os primeiros Haiku (poesia japonesa composta por versos de 5, 7, 5 unidades fonéticas respectivamente, descrevendo as impressões sobre a natureza) para inglês. Também escreveu livros tais como “A Handbook of Colloquial Japanese” (1888); “Things Japanese” (1890); “Practical Guide to the Study of Japanese Writing” (1905). (Wikipedia, palavra-chave: ‘Basil Hall Chamberlain’, http://en.wikipedia.org/wiki/Basil_Hall_Chamberlain ).

42 Edwin Oldfather R

EISCHAUER (1910-1990), nasceu e cresceu em Tokyo. Estudou na Escola Americana no Japão, fez bacharelado em Oberlin (Ohio, Estados Unidos) e formou-se em 1931. Em 1939 doutorou-se na Universidade de Harvard (Cambridge, Massachusetts, Estados Unidos). Lecionou nessa mesma

Universidade, foi diretor do Harvard-Yenching Institute e do Departamento de Línguas do Extremo Oriente. Também em Harvard, ele fundou o Japan Institute, que posteriormente foi renomeado para ‘Edwin O. Reischauer Institute of Japanese Studies’ em sua homenagem. Ele foi Embaixador americano no Japão (1961-1966). E tem uma vasta produção sobre o Japão. (Wikipédia, palavra-chave : ‘Reischauer’, http://en.wikipedia.org/wiki/Reischauer ).

Oriente sempre se antagoniza com o Ocidente. O papel do colonizador – principalmente a Inglaterra, a França e os Estados Unidos – e os colonizados – como os países muçulmanos – são fixos. No caso do Oriente Médio, essa estrutura pode ser válida. Contudo, se considerarmos outras áreas do mundo, a situação é mais complicada, sendo que isso era uma das críticas à obra de Said. Bernard LEWIS (1993) e Malcolm KERR

(1980) a consideraram uma afronta à academia ocidental e travaram discussões polêmicas em torno de sua obra, principalmente o primeiro autor43. O fato de o Oriente de Said não contemplar nações como Rússia, Turquia ou Japão, o simples pertencimento ao Ocidente ou ao Oriente implicou muita controvérsia. Por sua vez, a obra de Said teve apoio e influenciou importantes autores como os teóricos literários Homi BHABHA (1990) e

Gayatri SPIVAK (1988), que reconhecem a influência profunda e transformadora que o

livro “Orientalismo” trouxe para vários campos de conhecimento da área de humanas. Mesmo sendo corretas, as críticas não invalidam, contudo, a sua tese básica sobre os séculos XIX e XX no que se refere às representações gerais do Oriente na mídia, literatura e filmes ocidentais.

Qual é então a relação entre ‘Ocidente x Oriente’ e ‘colonizador x colonizado’? A representação do Ocidente pelo Oriente talvez seja intencionalmente distorcida. As nações orientais, contudo, nunca colonizaram o Ocidente. A representação do Outro – neste caso, o Ocidente – não é necessariamente relacionada ao colonialismo. Para NISHIHARA (2005), a representação do Outro pertence ao âmbito da cultura, enquanto o colonialismo deriva principalmente dos aspectos econômicos e políticos. Dentro do Orientalismo, objeto e sujeito podem mudar e isso é o que faz a discussão do Orientalismo Japonês possível. Nesse sentido, no contexto da Ásia Oriental, a obra de Said reanimou a discussão sobre a presença do Ocidente nessa parte do mundo e a história e repercussões do imperialismo japonês.

O discurso orientalista ocidental sobre o Japão tem sustentado a construção e a manutenção da ‘japonicidade’: a própria construção do Japão de ‘japonicidade’ tem utilizado bem a diferença com o ‘Ocidente’. É isso que MILLER (1982:209) chama de

43

Veja no próprio livro ‘Orientalismo’ (1990) as críticas que Said faz a Lewis e outros orientalistas ocidentais, por exemplo, nas páginas 114-116 e 319-326.

‘auto-Orientalismo’: “é como se os japoneses fossem determinados a fazer isso a eles mesmos e à sua própria cultura antes que os outros façam isso e para eles. O que Said chama de estabelecer o Outro, no caso do Japão, é ter que lidar com o raro espetáculo de uma cultura vigorosamente determinada a se Orientalizar”. Nesse sentido, IWABUCHI

(1994) observou que no processo de auto-Orientalização do Japão, a entidade imaginada culturalmente e geograficamente do ‘Ocidente’ tem sido discursivamente criada de modo sistemático. Embora isso tenha sido feito intensivamente nos últimos cinqüenta anos, mesmo na virada do século XIX ao XX, podemos discernir a construção do ‘Ocidente’. Como Carol GLUCK (1985:137) argumentou, o que importava era a idéia de Ocidente que

os japoneses criaram para se definirem – o Ocidente real era irrelevante.

As imagens do Ocidente para isso eram contraditórias: por um lado, as nações ocidentais se imaginavam como entidades superiores, iluminadas e civilizadas para serem emuladas. Mas por outro lado, elas estavam condenadas como individualistas, egoístas e frias (DOWER 1986; ROBERTSON 1991). As imagens tanto positivas quanto negativas do

‘Ocidente’ coexistiram como os dois lados da mesma moeda, mesmo que um dos lados fosse enfatizado, dependendo das circunstâncias. Mesmo se o Japão tivesse desenvolvido um discurso desumanizado do ‘Ocidente’, o auto-Orientalismo do Japão não poderia ser visto como Ocidentalismo, que Said rejeita como ‘resposta ao Orientalismo’. Isto porque o auto-Orientalismo do Japão não teve nem tem poder para dominar o Ocidente. Além de tudo, o Japão fala sobre o ‘Eu’, enquanto o Ocidente, fala sobre o ‘Outro’. Contudo, é muito simplista ver o ‘auto-Orientalismo’ do Japão como uma estratégia passiva do inferior. A estratégia de o Japão de construir e de auto-afirmar sua identidade cultural nacional tem sido ativamente explorada pelo ‘Ocidente’ que efetivamente se opõe ao Orientalismo. Especialmente quando o Japão chegou a ultrapassar muitos países ocidentais, pelo menos em termos econômicos e tecnológicos, desenvolveu um estilo institucionalizado de pensamento baseado na oposição binária entre o Japão e o Ocidente – o auto-Orientalismo para ser uma mera tendência dicotomizante defensiva (MORLEY & ROBINS 1992, ROBERTSON 1991).

Ironicamente, é a mudança da suposta ‘japonicidade’ que os orientalistas ocidentais anteciparam sobre o futuro do ‘Japão pré-moderno’ que torna o ‘Japão’ escandaloso ao ‘Ocidente’ e o ‘auto-Orientalismo’ do Japão se torna problemático ao

Orientalismo. Mas isso pode levar a uma leitura errônea de ver o auto-Orientalismo japonês como um sério desafio ao Orientalismo ocidental. Ao contrário, a relação entre o discurso orientalista do Ocidente sobre o Japão e o discurso do Japão sobre ele mesmo é caracterizada por uma profunda cumplicidade, como argumenta IWABUCHI (1994). Ambos tendem a usar o Outro para essencializar o ‘Eu’ e reprimir as vozes heterogêneas dentro de cada um. Essa perspectiva se abre para uma dimensão da aliança de poder e conhecimento dentro da nação e entre as nações; como a construção discursiva do ‘Outro’ desumanizado tem sido sutilmente utilizada pela elite para instilar sentimento nacionalista na mente das pessoas. Por exemplo, as vozes heterogêneas do povo dentro da nação têm sido reprimidas através do discurso homogeneizante de um imaginário ‘nós’ contra ‘eles’.

Para o Japão, no caminho para a modernização do país, a ênfase sobre a ‘japonicidade’ tem sido crucial para os grupos dominantes como uma forma de mobilizar as pessoas. Essa ‘japonicidade’ estratégica é algo que maximiza os interesses nacionais e minimiza o individualismo, consistindo de traços como a lealdade ou devoção ao país. Como GLUCK (1985:137) notou, “no Ocidente imaginado, as pessoas eram incapazes de

ser leais e filiais e isso era suficiente para definir esses traços como sendo essencialmente japoneses”. Assim o ‘Ocidente’ era utilizado para conter as conseqüências ‘indesejáveis’ da modernização tal como o crescente individualismo ou sindicalismo, que dava prioridade aos direitos do povo. Por exemplo, quando os movimentos sociais como o sindicalismo se tornaram populares nos anos 1920, a ideologia do “ie” 「いえ」44 foi intensivamente defendida (CRAWCOUR 1978). Essa ideologia enfatizou os valores tradicionais do paternalismo, através da qual o Japão em si e as empresas eram comparadas com famílias. Claramente, esse mito de ‘japonicidade’ foi utilizado para reprimir as demandas do povo pela ‘democracia’ ou direitos humanos, atribuindo os conflitos sociais e as dissidências à ‘doença’ ocidental (IWABUCHI 1994).

Através dessas comparações seletas com os Outros, o auto-Orientalismo também deixa de lado a exclusão das vozes dos reprimidos, como os grupos minoritários como os

44 Este termo ie é um conceito amplamente discutido, entendendo-se como uma ‘casa’ um grupo domiciliar e de trabalho (empresarial, industrial, comercial etc.) que se reproduz ao longo de gerações. Este conceito será discutido mais adiante, na parte em que apresentamos a visão de Nakane sobre a sociedade japonesa.

ainu, coreanos, burakumin que compõem mais de 4% da população, além das mulheres e classe trabalhadora. Ao afirmar ‘nós, japoneses’, em oposição aos ‘outros, os ocidentais’, a ‘japonicidade’ construída discursivamente é reificada. KANO (1973) argumentou que a força do conceito de ‘japonês’ está em seu significado inclusivo e que o conceito de ‘japonês’ implicitamente inclui todos os aspectos da terra, habitantes, língua, raça,