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O Japão Moderno

3.7. Ruth Benedict e “O Crisântemo e a Espada”

O livro ‘O Crisântemo e a Espada’ (1988 [1946]) de Ruth BENEDICT52 (1887- 1948) é tido como uma das mais influentes explicações sobre o Japão e se tornou um clássico sobre a sociedade japonesa que ironicamente não foi escrito por japoneses nem no Japão. É um estudo encomendado pelo governo norte-americano escrito nos Estados Unidos – sem condições de fazer um estudo in loco devido à circunstância de guerra – que serviu quase como um manual aos seus soldados para conhecer, compreender e saber como dominar o inimigo japonês. Apesar desta limitação importante – irônica para uma disciplina (a Antropologia) que coroa o empreendimento do trabalho de campo – Ruth Benedict fez uma análise do Japão nos primeiros anos após a guerra que se tornou um clássico nas discussões ocidentais subseqüentes sobre o país. O livro foi amplamente lido

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Ruth Benedict foi uma importante antropóloga cultural americana nos anos 1930 e 40. Ela foi estudante e depois colega de Franz Boas na Universidade de Columbia, onde ela lecionou desde 1924. Margaret Mead foi uma de suas alunas. Antes de se tornar antropóloga, sabe-se que Ruth Benedict era poetisa. Talvez isso seja um dado interessante para pensarmos sobre a sua obra clássica. Apesar de instigante, uma discussão de teor mais literário está além do alcance desta tese.

no Japão e exerceu uma grande influência. Este foi traduzido para o japonês em 1948 e vendeu 1,4 milhões de cópias (SOEDA 1993).

Em termos gerais, neste livro, Ruth Benedict caracterizou o Japão como sendo uma ‘sociedade coletivista’ (em oposição à ‘sociedade individualista ocidental’) e como uma ‘cultura da vergonha’ (em oposição à ‘cultura da culpa ocidental’). Pressupondo que há um padrão coletivo compartilhado entre as pessoas que vivem em uma sociedade moderna como a japonesa, a autora procurou identificar um padrão japonês distinto em termos de cultura e comportamento.

Entretanto, apesar de continuar sendo influente e popular, o livro de Benedict dificilmente se adequa àqueles que desejam entender o Japão no final do século XX. Obviamente, as profundas mudanças no Japão durante os últimos 50 anos requerem fontes e análises mais contemporâneas. Mas o problema maior, aponta LIE (1996:6), mais

do que as falhas empíricas, são as questões teóricas. Os problemas de Benedict reaparecem nos trabalhos subseqüentes que procuraram teorizar e captar a essência do Japão. Não são apenas as observações empíricas dela mas também seu esquema teórico que afetou e sustentou a grande maioria dos escritos sobre o Japão. Em primeiro lugar, ao tentar entender o Japão como uma totalidade, Benedict não enfatiza as desigualdades e diferenças. Ela não discute adequadamente as distinções sociais que caracterizaram o Japão nos anos 1940. Por exemplo, a desigualdade de classe e de status; minorias étnicas como os coreanos e chineses colonizados; diferenças e discriminações de gênero; diversidade regional não foram discutidas. Essas omissões não são exatamente falhas empíricas sintomáticas da linha de ‘cultura e personalidade’ de Benedict. Inspirados em Durkheim e outros teóricos, os esforços para entender cultura ou caráter nacional assumem a existência de uma norma coletiva ou unidade cultural dentro de uma ‘sociedade’. Embora a orientação teórica seja plausível para estudar sociedades pequenas, não-industriais, faltam dimensões cruciais de sociedades industriais e mais amplas como o Japão.

Além disso, Benedict é insensível às transformações históricas. Apesar do seu esforço em apresentar um background histórico, o caráter nacional ou cultural aparece como estacionário e imutável e assim, ela não discute as mudanças contemporâneas. Embora as suposições de Benedict tenham algum aspecto plausível para uma sociedade

aparentemente sem história – o objeto privilegiado da investigação antropológica – a mesma suposição já não é aplicável a uma sociedade que se industrializa rapidamente e que desempenha um papel proeminente no estágio atual da história mundial. Como Eric WOLF (1987 [1982]) notou, o que os euro-americanos consideram como “povo sem História” são, de fato, profundamente configurados por forças históricas e globais. Ao valorizar as diferenças a partir das outras sociedades, principalmente o Ocidente, os autores como Ruth Benedict, trataram o Japão como uma entidade homogênea relativamente inatingida por mudanças históricas. Assim, como uma variante do discurso Orientalista (como vimos anteriormente), os estudiosos ocidentais, principalmente os norte-americanos, modelaram uma visão essencializada do Japão que anulou a heterogeneidade interna e transformação histórica (LIE 1996:5).

Um importante traço político e cultural no período pós-guerra tinha uma forte influência dos Estados Unidos no Japão. Neste contexto, o estudo de Ruth Benedict sobre o Japão através dos prisioneiros de guerra nos campos de detenção nos Estados Unidos, que resultou na obra “O Crisântemo e a Espada”, teve uma grande influência do nihonjinron tanto no Japão quanto nos Estados Unidos no pós-guerra. Benedict (1988 [1946]:9) começa o seu livro com a seguinte frase:

“Os japoneses são os

inimigos mais hostis jamais enfrentados pelos Estados Unidos [ ... ] As convenções de guerra, que as nações ocidentais aceitaram como fatos consagrados da natureza humana, obviamente não existiam para os japoneses”.

Nesta obra, a questão fundamental para comparação era que os Estados Unidos era um país moderno, democrático e racional, enquanto que o Japão era feudal, não- democrático e inconsistente; os Estados Unidos são caracterizados pelo individualismo, o Japão pelo coletivismo; os Estados Unidos pela cultura da ‘culpa’, o Japão pela cultura da ‘vergonha’ (IWABUCHI 1994).

Estados Unidos X Japão

Moderno Feudal

Democrático Não-Democrático

Racional Inconsistente

Individualismo Coletivismo

Cultura da Culpa Cultura da Vergonha

A autora argumentou que os comportamentos dos japoneses eram caracteristicamente paradoxais em dois traços contraditórios perceptíveis, como foi simbolizado no título de seu livro: os japoneses são tanto agressivos quanto não- agressivos; militares e estéticos; insolentes e polidos; rígidos mas adaptáveis; submissos e ressentidos; leais e traiçoeiros; bravos e tímidos; conservadores e receptivos para o novo (BENEDICT 1988 [1946]:10). Em suma, Crisântemo e Espada. Essa visão paradoxal do

‘Japão’ dominou o discurso ocidental desde então (GLAZER 1975).

Embora o livro tenha sido criticado no Japão por tratar o Japão como uma pequena comunidade em que todas as pessoas compartilhavam traços culturais e valores comuns e apesar de seu objetivo de ajudar os Estados Unidos a conhecer o inimigo odiado, essa obra foi, contudo, muito apreciada pelos ‘inimigos’: os próprios japoneses. Isso porque muitos japoneses pensavam que este estudo apontava precisamente para a fraqueza e a essência do “‘nós’, os japoneses” [wareware nihonjin 我 々 日 本 人 ] (YOSHINO 1992; AOKI 1990). Enquanto isso, iniciava-se um casamento entre as teorias

Unidos. A importância dessa obra também se pauta no endosso persuasivo da alteridade japonesa, tudo que poderia ser reduzido à ‘cultura única’ do Japão. Nesse momento, o caráter nacional do Japão foi endossado não apenas pelas ideologias nacionalistas mas também pelos intelectuais americanos ‘democráticos’ que nunca estiveram no Japão. A derrota da guerra fez com que o povo japonês se tornasse hiper-sensível a como o Japão era visto pelo ‘Ocidente’. A obra de Benedict captou muito bem essa tendência no Japão. Desde então, o ‘Ocidente’, particularmente os Estados Unidos, tem sido um ponto de referência positivo. À medida que o Japão admitiu a sua inferioridade ao Ocidente, o mito da alteridade singular japonesa satisfez as necessidades tanto do Japão quanto do Ocidente (IWABUCHI 1994).

Apesar de vários pontos questionáveis e críticos, este estudo trouxe à tona importantes elementos que escapavam da atenção dos próprios japoneses. Por isso, sua obra é lida por um público vasto e variado, tornando-se um assunto popular de discussão em jornais e periódicos. Nesse sentido, “O Crisântemo e a Espada” trouxe uma das primeiras oportunidades de mostrar aos leitores em geral que a Antropologia Cultural não se preocupa exclusivamente com as sociedades primitivas, mas também lida com os estudos sobre civilizações modernas como o Japão. Nesse sentido, abriu caminho para a popularização da disciplina, observa SOFUE (1974:87-99).

Um outro fator que também ajudou a popularizar a Antropologia Cultural foi a publicação de livros e ensaios de psicólogos. A Psicologia no Japão pós-guerra foi influenciada pelos acadêmicos americanos e isso levou a uma variedade de estudos sobre comunicação em massa, estrutura da personalidade e, particularmente, o caráter nacional japonês.

Por exemplo, DOI Takeo 土居健郎 (1920 - ) foi um psicanalista japonês que

escreveu o livro entitulado “Amae no Kōzō” 『「甘え」の構造』 (1971). Esta obra foi traduzida para inglês como “The Anatomy of Dependence” (1973). Neste estudo que ficou famoso, o autor propõe um conceito chave de ‘amae’ que se refere ao comportamento ‘dependente’ ou ‘indulgente’ apresentado, por exemplo, por crianças mimadas. Para o autor, a psicologia do amae caracteriza a ‘psique japonesa’.

Como a ‘cultura da vergonha’ de Benedict, ‘amae’ não presume o ideal ocidental de individuo autônomo. Mais do que isso, a persistência das relações entre pai e filho [ oyabun - kobun 親分-子分 ] na fase adulta impede o desenvolvimento da autonomia individual e as relações e instituições sociais associadas. Assim, mais do que a independência e individualidade valorizada no Ocidente, o japonês valoriza a ‘dependência mútua’ e ‘associação em grupo’. Doi acredita que ‘amae’ sublinha o princípio da ‘sociedade vertical’ identificada por Nakane (como será discutido logo adiante); isso também oferece um insight importante sobre várias doenças sociais e mentais. Amae, então, emergiu como um prisma poderoso para entender o japonês e o seu comportamento.

Assim, podemos notar que muitos desses trabalhos lidam com assuntos em que a Psicologia e a Antropologia se sobrepõem. E foi principalmente através desse tipo de publicações que a maioria das pesquisas feitas por antropólogos culturais nos anos 70 veio à tona.

Uma outra obra clássica que marcou muito essa época, o final dos anos 60 e início dos 70, foi a “Japanese Society” de Nakane, como veremos a seguir.

3.8. “Japanese Society” de Nakane

NAKANE Chie 中根千枝 (1926 - ) escreveu o livro 「タテ社会の人間関係」

“Tate Shakai no Ningen Kankei” (1967), sendo que em inglês ficou conhecido como ‘Japanese Society’ (1992 [1967]),53 que se tornou uma das obras mais importantes no Japão. Nesta obra, a autora procurou construir uma imagem estrutural da referida sociedade, sintetizando as peculiaridades da vida japonesa. Assim como Ruth Benedict, Nakane enfatiza o caráter coletivo da sociedade e instituições japonesas. Nesse sentido,

53 Chie Nakane nasceu em 1926 em Tokyo. Ela é antropóloga social, especialista em estrutura social da Índia, Tibet e Japão. Formou-se pela Universidade de Tokyo, foi a primeira mulher a lecionar nessa renomada universidade, assim como a primeira mulher japonesa antropóloga e japonóloga. Atualmente é Professora Emérita desta mesma universidade. Ela também estudou na Universidade de Londres e faz parte da Associação Britânica de Antropologia. Em 1967 publicou este livro que teve mais de um milhão de cópias vendidas e foi traduzido para 13 línguas estrangeiras.

para a autora, a ‘estrutura’ é mais importante do que o ‘atributo’ no Japão. Em outras palavras, o que determina primariamente a auto-identificação do japonês é o seu pertencimento institucional ou organizacional, ou seja, o fato de ser o membro de um grupo corporativo, mais do que o seu status individual. Um paradigma institucional bastante utilizado é o ‘ie’, que significa casa ou família. Essa noção amplamente arraigada na ideologia e/ou filosofia das empresas e no grupo corporativo japonês se caracteriza pelas relações verticais de hierarquia, diferentemente das sociedades ocidentais onde prevalecem as relações horizontais.

IWABUCHI (1994) observa o argumento da autora de que mesmo se as classes

sociais como as da Europa pudessem ser detectadas no Japão e mesmo que algumas coisas lembrem vagamente essas classes – que são ilustradas nos livros didáticos da Sociologia ocidental eventualmente encontradas no Japão –, o ponto é que, na sociedade atual, é improvável que essa estratificação funcione, pois não reflete realmente a estrutura social do Japão. Na sociedade japonesa, realmente não importa a luta dos trabalhadores contra os capitalistas ou empresários, mas sim, a Companhia ‘A’ lutando contra a Companhia ‘B’. Em outras palavras, o ‘coletivismo’, a ‘identidade corporativa’ e a ‘hierarquia vertical’ constituem, portanto, as principais características estruturais da sociedade japonesa.

Para Iwabuchi assim como para Lie, a falha fatal da obra de Nakane consiste no fato de a autora ter negligenciado as ‘relações de poder’. Ela considera as ‘relações verticais’ como um fenômeno cultural anistórico e estático. É verdade que as relações sociais japonesas sejam predominantemente verticais ou hierárquicas, mas isso não é um dado cultural. Devemos atentar como essa verticalidade se desenvolveu historicamente, como isso é mantido e por quem. Contudo, Nakane insiste que como a sociedade japonesa é basicamente estruturada verticalmente, as relações sociais japonesas também são verticais.

Por outro lado, o que torna a obra de Nakane tão poderosa é que, apesar dessas falhas, ela remete a um ‘relativismo cultural’, isto é, como diria Roberto DAMATTA

exótico, o distante, o diferente, o ‘Outro’54. No começo, a autora argumenta que não se pode medir a sociedade japonesa com uma ‘régua ocidental’, mas apenas com uma ‘régua japonesa nativa’. Esse chamado para a especificidade cultural coloca um desafio à modernidade eurocêntrica e sugere a possibilidade de alternativas de teorizar a modernização, sem considerar a experiência ocidental como um caminho ou modelo para se chegar ao estágio moderno.

Entretanto, o discurso de Nakane não escapa da dicotomização idealizada de ‘Ocidente’ e ‘Japão’, como vimos anteriormente. A sua questão implícita é que a teoria social ocidental se adequa completamente ao Ocidente, onde se supõe que as pessoas sejam completamente individualistas e racionais e que o Japão moderno é essencialmente e absolutamente grupal e emocional (MOUER & SUGIMOTO 1986a). Isso a faz buscar por

uma ‘estrutura informal’ dos japoneses que governa as relações humanas. O subtítulo do seu livro em japonês 「単一社会の理論」 [“Tan’itsu Shakai no Riron” ] – “Teoria de uma Sociedade Homogênea” – mostra claramente que a suposta homogeneidade do Japão é a base inquestionável sobre a qual sua teoria foi construída. NAKANE (1992:146)

argumenta que parece não existir uma sociedade homogênea como o Japão no mundo contemporâneo. E em uma sociedade homogênea como o Japão, as semelhanças dentro da sociedade são muito mais importantes do que as diferenças.

Não é surpresa que a elite tenha recebido isso muito bem e tenha disseminado essa visão. O fato de que a obra de Nakane seja freqüentemente citada pelos seus membros e tenha sido publicada no exterior pelo governo japonês, mostra como isso foi ideologicamente útil para sustentar o status quo no Japão, em que se naturaliza a orientação grupal apresentada por muitos japoneses e a sua relativa falta de consciência de classe (KAWAMURA 1980:55, MOUER & SUGIMOTO 1986a:177).

Para fazer justiça a Nakane, IWABUCHI (1994) admite que ela nem “admira” a verticalidade da sociedade japonesa como o segredo do sucesso econômico, nem

54 Segundo o “Dicionário de Ciências Sociais” (FGV 1986:1057), “Relativismo Cultural” ou “Relatividade Cultural” designa a idéia de que qualquer parte do comportamento deve ser julgada primeiramente em relação ao lugar por ela ocupado na estrutura da cultura em que ocorre em termos do sistema de valor específico daquela cultura. A expressão foi às vezes usada para sugerir que os itens culturais só podem ser julgados dentro de seus contextos. Franz Boas afirmou que a Antropologia estava interessada nas

diferenças criadas pela história, ou seja, posição de que cada aspecto de uma cultura deve ser considerado na totalidade do contexto em que ocorreu.

“pretende” contribuir à estratégia do governo de manipulação ideológica de seu povo japonês. Contudo, o que está em questão é que o discurso de Nakane sobre o ‘Japão’, como muitos outros do nihonjinron, “tendem a minimizar a importância ou a necessidade de controle e coerção, mesclando cultura e ideologia” (MOUER & SUGIMOTO 1986a:403). Sob o manto do relativismo cultural, a ‘cultura japonesa’ foi reificada como ‘essencial’, livre das relações de poder e de mudanças históricas. Assim, a auto-afirmação japonesa da sua própria singularidade é necessariamente uma ‘niponicidade’ etnocêntrica e a auto- confiança nacional que cresceu com o ‘milagre’ econômico alimentou a idéia de superioridade a essa singularidade.