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O Japão Moderno

3.2. Japão: Um País Asiático ou Ocidental?

O dilema ou ambivalência da identidade nacional do Japão – se faz parte ou não da Ásia – é uma velha questão que persiste até hoje e permeia as questões relacionadas com a presença de estrangeiros no Japão contemporâneo. Na sua relação com os estrangeiros asiáticos, ocidentais, nikkeijins etc., os tratamentos diferenciados podem ser remetidos à hierarquia racial da virada do século XIX ao XX.

Antes da Primeira Guerra Mundial, o Japão já vivia as suas contradições internas e externas, inerentes ao seu próprio passado. Por exemplo, a perspectiva que via o país como pró-ocidente (Datsu-A ron 脱ア論 – escapar da Ásia) ou então ōbei kyōchō shugi

欧米強調主義 (que considerava o Japão como Ocidente e ao mesmo tempo enfatizava a

Europa e os Estados Unidos) versus Pan-Asianismo (Ajia shugi アジア主義 que via o Japão como parte da Ásia). Isso mostra a natureza problemática do Japão que se projetava internacionalmente.

Ajia-Shugi versus Datsu-A era usado para explicar a mudança de padrão do debate da política externa do Japão que foi se ajustando à situação de mudança política na Ásia Oriental. O desenvolvimento das duas perspectivas pode ser delineado da seguinte forma: no início da era Meiji, nisshin teikei ron 日進提携論 [coalizão sino-japonesa] floresceu. O Japão procurou se alinhar com a China, pois ela era percebida como seu aliado natural, dado o background cultural compartilhado e uma longa associação histórica e bilateral. Assim, juntas protegeriam suas independências nacionais contra o Ocidente. Mas a China não se modernizou rapidamente e o Japão começou a perder confiança na China como seu parceiro equiparado. Então ocorreu uma mudança de atitude – de respeito mútuo à postura mais crítica e à incapacidade de a China lutar contra o imperialismo ocidental. O Japão procurou crescentemente reformar a China no sentido de ajudá-la a se tornar mais modernizada e ocidentalizada como o Japão, pois os japoneses percebiam que esse era o

único modo de conter a ameaça ocidental. Com o tempo, o Japão percebeu que seria desvantajoso se associar com países atrasados como a China e a Coréia, pois as grandes potências ocidentais poderiam confundir o Japão com esses países. Isso tornou imperativo ao Japão escapar da Ásia e se juntar ao Ocidente [ Datsu-A Nyū-Ō 脱亜入

欧 ], pois o país nipônico achava que já tinha o espírito, tendo se modernizado e se

ocidentalizado (SHIMIZU 1998:91).

Desde os anos 1920, o confronto entre os nacionalismos japonês e chinês se intensificou. Os intelectuais no Japão estavam imensamente atraídos pela idéia de resolver as contradições entre as nações e os povos em uma comunidade asiática oriental que transcenderia os dois Estados-nação. Cientistas, artistas, cineastas, planejadores urbanos, economistas, arquitetos, marxistas45, os burocratas mais astutos e ambiciosos foram reunidos na Manchúria para ajudar a realizar esse sonho. O projeto tinha grandes objetivos resumidos nos seguintes slogans: “Harmonia Inter-racial”, “Harmonia das Cinco Raças” e “Todo o Mundo sob um Teto”. Seria um Estado pós-colonial, multirracial e multicultural, cristalizando a essência do Estado-nação. Isso envolveu a negação do Ocidente, a negação do colonialismo, capitalismo, mesmo do marxismo e o alcance de um estágio de desenvolvimento além do capitalismo e comunismo. No fim, contudo, a visão precipitada produziu um Quimera46: um Estado-mostro híbrido e estranho que, quando o sol se pôs, desapareceu, como Atlantis (MCCORMACK 2004b).

Entretanto, enquanto um Estado nominalmente soberano, Manchukuo era na verdade um Estado Fantoche. Parecia ser independente mas era de fato direcionado pela força militar de Kwantung, para fins japoneses, com poder e privilégios japoneses. O Japão era então “a Pátria mãe” aos Estados neo-coloniais como se desenvolveu e se refinou no final do século XX.

45 No Japão, os marxistas foram cooptados pelo Estado para fazer parte do projeto nacional japonês, algo que não aconteceu no Ocidente.

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Segundo HOUAISS (2001), ‘Quimera’ é um monstro mitológico que se dizia possuir cabeça de leão, corpo de cabra e cauda de serpente e lançar fogo pelas narinas. Em linguagem popular, o termo ‘quimera’ alude a qualquer composição fantástica, absurda ou monstruosa, constituída de elementos disparatados ou incongruentes.

Por trás do tatemae 建て前 [ aparência ], de independência deste Estado ideal, com seu próprio imperador, bandeira e hino, há o honne 本音 [essência], de um Estado fantoche. Sob o slogan “Harmonia entre as raças” [ minzoku kyōwa 民族共和 ], todas as instituições tinham o DNA distintivo da família imperial estatal do Japão. Os símbolos da autoridade imperial – espelho, espada e jóia – eram cuidadosamente manufaturados no Japão, e Pu Yi, seu Imperador, foi designado como um descendente de Amaterasu 天照 , e a cerimônia inaugural consistiu numa cópia exata da cerimônia Daijōsai 大嘗祭 da elevação imperial japonesa. Ele tanto foi o imperador do Manchūkuo 満州国 como também o irmão mais novo do imperador Shōwa 昭和 do Japão.

O Primeiro Ministro TŌJŌ Hideki 東条 英機 首相[shushō] (1884-1948), que estava intimamente envolvido com a criação e o colapso da Manchúria e da Grande Ásia Oriental, escreveu pouco antes da sua execução em dezembro de 1948 que a causa real da derrota do Japão na guerra da ‘Grande Ásia Oriental’ foi “a perda da verdadeira cooperação entre as raças da Ásia Oriental” 「東亜民族の本当の協力を失ったこと」 [Tōa minzoku no hontō no kyōryoku wo ushinatta koto]. Em outras palavras, mais do que deficiência material, a falha decisiva do Japão foi intelectual, moral e imaginativa. Estabelecido por homens que acreditavam ser honoráveis e conduzidos por um senso de justiça e desejo por um mundo melhor, o projeto da Manchúria foi uma farsa do começo ao fim. Esse Estado não tinha uma mensagem universal para toda a Ásia, a não ser a sua demanda por submissão de todos perante o imperador japonês, diz MCCORMACK (2004b).

É precisamente este entendimento da História Moderna do Japão, cristalizado no comentário deturpado do General Tōjō, que os revisionistas contemporâneos se recusam a aceitar. Para eles os ideais ‘puros’ dos fundadores da Manchúria eram muito mais fáceis de serem defendidos do que o registro das escrituras atuais das forças imperiais japonesas seja na Manchúria, ou na China, no Oriente ou Sudeste da Ásia. E é precisamente na Manchúria onde se encontra o terreno especial para argumentar a favor de um ‘orgulho’ da História moderna japonesa na Ásia, para uma missão japonesa completamente distinta do colonialismo europeu: nada menos que a liberação da Ásia do imperialismo ocidental.

No que Tōjō veio a ser visto como falha imaginativa e moral, eles viam como virtude e uma questão para se orgulhar.

Como seus antecessores, os intelectuais contemporâneos estavam atraídos pela idéia de “Ásia Oriental” ou “Nordeste da Ásia” como uma solução para múltiplas contradições: [1] A primeira é a mais superficialmente óbvia, a contradição entre o nacionalismo japonês e o chinês, em que disputam a hegemonia da região para conduzir o futuro da Ásia. Nos anos 1930, a China não tinha um peso econômico, político e militar para desafiar o Japão. Atualmente ela tem os três, além de um estabelecimento diplomático sofisticado para prosseguir com a sua agenda. [2] A segunda é a contradição entre a Ásia e os Estados Unidos. Qualquer esquema para uma identidade regional para a Ásia contradiz a insistência americana em relação à hegemonia sobre o império global. [3] A terceira é a contradição clássica que diz respeito à identidade nacional japonesa. O Japão é asiático ou não-asiático? É um país superior ou comum? A sua identidade é baseada no sangue e na etnicidade ou nos valores civis? (MCCORMACK 2004b, grifo meu).

Nos anos 1930, o papel principal de promover a integração asiática foi executado pelos intelectuais da: [1] ‘Companhia Ferroviária da Manchúria do Sul’ – 満鉄 Mantetsu: abreviação de 南満州鉄道(株式会社)Minami Manshū Tetsudō (Kabushiki Kaisha); [2] a ‘Sociedade Concórdia’ [Kyōwa kai 共和会] e [3] especialmente a ‘Sociedade de Pesquisa Shōwa’ [Shōwa Kenkyū kai 昭和研究会], estabelecido em 1933. Nos anos 1990, os intelectuais, geralmente de instâncias críticas e independentes, junto com algumas posições próximas ao poder estatal, especialmente na Coréia do Sul, mas também no Japão, retomaram a mesma questão.

A dependência e prioridade dos Estados Unidos sobre as relações na Ásia são, contudo, uma extensão natural de uma dependência profundamente estruturada no Japão pós-guerra e no estabelecimento da ocupação americana. A insistência americana sobre a singularidade nacional do Japão e sobre a diferença fundamental em relação à Ásia, bem como a oposição implacável a qualquer movimento ao envolvimento japonês em uma comunidade asiática oriental tem sido fundamental à política americana desde a ocupação. Quando a constituição japonesa foi desenhada em 1946, é sabido que MacArthur reteve o ‘sistema imperial’ como uma demanda central e não negociável – “o Imperador é a

cabeça do Estado”. Não se sabe bem se essa decisão foi adotada depois de extensas deliberações nos altos escalões das comunidades políticas e intelectuais em Washington em 1942 ou se tal decisão era para reter o sistema imperial enquanto um pino de segurança a uma ordem conservadora na qual o Imperador serviria aos interesses norte- americanos (MCCORMACK 2004b).

Numa das maiores propagandas do século, esses mitos foram codificados e refinados pelo departamento de guerra americano e circulou mundo afora com o texto clássico de Ruth BENEDICT47, “O Crisântemo e a Espada” (1988 [1946])48. Esta

antropóloga americana fez uma análise do Japão que se tornou um clássico nas discussões ocidentais subseqüentes sobre o Japão, onde foi amplamente lido e exerceu uma grande influência. Nada confirmou tão perfeitamente e deu aos políticos americanos a idéia de que o Japão era um país não-asiático, exótico e inefável, como se fosse o Kokutai 国体 [nome de uma ideologia política dos anos 1930]49 em uma versão que se adequasse à política americana. Quando a divindade do imperador foi renunciada, essa noção central de kokutai do pré-guerra foi retida. Ao longo do tempo, isso seria transformado pelos conservadores japoneses e intelectuais americanos em teoria da ‘japonicidade’, conhecida como nihonjinron – para que a partir de então repercutisse no Oriente e no Ocidente. Samuel HUNTINGTON (1996) concorda com a idéia do Japão como o único Estado-nação

separado da Ásia Oriental. A mesma separação que nos anos 1930 foi uma barreira intelectual e filosófica para a construção de uma comunidade asiática oriental, continua funcionando do mesmo modo nos dias de hoje.

Isso tem permanecido como o Leitmotiv tanto de estudiosos ocidentais quanto da autopercepção japonesa. Já que um número significante de japoneses continua acreditando nisso, eles serão relutantes em abraçar qualquer comunidade regional que possa diluir a sua superioridade na Ásia. Os esforços japoneses para tentar recuperar a

47 Mais adiante, a obra de Ruth Benedict será discutida detalhadamente.

48 A primeira edição em inglês foi publicada em 1946 e em japonês em 1948. 1988 é o ano da edição em português no Brasil.

49 A ideologia dos anos 1930 se guiava pelo “Princípio do Kokutai” 国体の本義 [ kokutai no hongi ], que, em certa medida, pode-se fazer uma leitura de uma especificidade interessante que remete ao “fascismo” à la japonesa: o fato de que os marxistas são cooptados para integrar o projeto nacionalista, algo que não acontece na Europa.

iniciativa em relação à China sobre a integração regional é uma manobra desesperada para fazer o impossível: ajustar a superioridade centrada no imperador do Japão à associação a uma comunidade regional.

Já que as fórmulas de integração e comunidade da Ásia Oriental implicam que as fronteiras do Estado-nação sejam transcendidas e uma nova identidade seja forjada, nenhum outro país esteve diante de uma dificuldade tão grande como o Japão. Para esse país, a modernidade tem sido um processo de “datsu-A” – desprendimento ou negação da Ásia – uma mistura de singularidade japonesa e o sentimento de não fazer parte da Ásia, sempre no sentido de superioridade na região, juntamente com a Ocidentalização.

Contudo, exatamente o modo contraditório e frágil de imaginar e representar a niponicidade foi funcionalmente importante no processo de consolidação de um Estado- nação moderno para resistir à expansão imperialista ocidental do século XIX e para construir uma economia nacional. No século XX, contudo, o Tennōsei 天皇制 [Sistema Imperial (do pré-guerra)], o Kokutai 国体 [ideologia política japonesa] e um tipo de ‘identidade japonesa’ privilegiada e única se tornaram um obstáculo aos esforços de se estabelecer uma comunidade regional e a causa da falha que Tōjō reconheceu tardiamente.

Nem o Imperador e os deuses do Japão, nem o Estado militarizado puderam compelir uma vassalagem asiática, na Manchúria, na China, ou no Sudeste Asiático. Muito do que se pensava sobre a Ásia entre a era Meiji (1868 a 1911) e início do período Shōwa (1926 a 1988) sobreviveu durante os anos 1930, embora de uma forma transmutada depois de 1945. Isso continuou a prescrever a superioridade japonesa e a ‘não-asianidade’, a discriminação, o preconceito e a obstruir qualquer tentativa de construir uma Ásia Oriental ou Nordeste Asiático hoje (MCCORMACK 2004b).

O “Problema do Japão” na Ásia do século XX é comumente relacionado à agressão e controle do Japão sobre a Ásia. Contudo, isso leva a um segundo problema: “Como o Japão imagina a sua própria identidade?”. Para tal, discorreremos a seguir sobre as idéias vigentes entre os intelectuais japoneses e as influências das discussões acadêmicas ocidentais e/ou formadores de opinião japoneses no Japão que constantemente se deparavam com essa pergunta.