• Nenhum resultado encontrado

O Nacionalismo Japonês aponês aponês aponês Contemporâneo

4.3. Kyōkasho Mondai – A Controvérsia dos Livros Didáticos de História

Um outro aspecto relacionado ao nacionalismo japonês é a questão dos livros didáticos de História japonesa – Kyōkasho Mondai 教 科 書 問 題 . A propagação do nacionalismo através dos livros didáticos de História não é exclusiva do Japão. O livro didático é um veículo importante através do qual as sociedades contemporâneas transmitem idéias de cidadania, o passado idealizado e o futuro prometido da comunidade nacional. Nesses livros estão as narrativas autorizadas da nação. Neles se delimita o comportamento dos cidadãos e delineiam-se os parâmetros da imaginação nacional. As controvérsias em torno dos livros didáticos vêm à tona quando os assuntos prevalecentes sobre unidade e proposta nacionais são desafiados e quando as relações internacionais mudam rapidamente como na era da Guerra Fria e depois dos atentados de 11 de Setembro de 2001 nos Estados Unidos, algumas vezes rompendo aos poucos com as narrativas dominantes anteriores. Os livros didáticos de quase todas as nações estão relacionados com o nacionalismo (SELDEN 2005).

Tendo a primeira metade do século XX marcada por guerras promovidas pelo Japão na região asiática, principalmente na China e na Coréia, os fatos desse período foram suavizados através da manipulação e/ou omissão de informações nesses livros escolares.

No Japão, a publicação de livros didáticos depende do julgamento e aprovação do Ministério da Educação, inclusive quando os autores ou editores querem publicar novos textos didáticos ou revisar as versões anteriores. Assim os assistentes especiais deste ministério dão sugestões editoriais e opiniões de censura para reescrever ou suprimir algumas passagens. Depois de repetir este processo diversas vezes, os novos livros didáticos são oficialmente aprovados. Esses novos livros didáticos são lançados como “amostras”, que são oferecidos aos membros da educação, para decidir qual adotar.

OKAMOTO (1998) mostrou como isso se deu em todo o período pós-guerra,

analisando as 47 edições destes livros escolares, que foram utilizados durante 50 anos nos colégios japoneses. Tais livros didáticos mostraram claramente uma parte dos resultados do monitoramento reflexivo do povo japonês sobre o mundo e sobre sua nação. Esses livros didáticos foram adotados por cerca de 70% dos colegiais japoneses no período pós- guerra. Isso significa que a maioria dos japoneses estudou História usando esses livros. Nesse sentido, pode-se considerar esse material como sendo o livro didático de História padrão nacional no Japão. Pode-se acrescentar que os japoneses que emigraram para país como o Brasil ao longo do século XX, por exemplo, também utilizaram livros didáticos japoneses importados de lá para aprender a língua japonesa e a sua cultura de origem no país de destino.

Desde o início dos anos 1980, essa questão dos livros didáticos de História tem sido foco de um debate tenso entre o Japão e os países asiáticos, sendo criticado enfurecidamente pelos seus vizinhos chineses e coreanos64. A tônica da discussão baseia- se no conteúdo dos livros escolares nos quais, em alguns pontos importantes, há uma clara distorção, omissão e/ou abrandamento dos fatos relacionados aos tempos de guerra, com forte apelo chauvinista, tais como: [1] invasão e agressão dos militares japoneses na China e em outras regiões asiáticas; [2] a anexação da Coréia; [3] colonização de Taiwan;

64 Veja notícias na imprensa, tais como: A

SAHI SHIMBUN: “Editorial: crisis in China ties” (19/04/2005); “Point of view – Yukihiko Hishimura: textbook screening system must continue” (02/05/2005); “Scholars agree in theory, not practice” (10/05/2005) e “China, S. Korea: Japan needs ‘correct’ view of history” (10/05/2005); ASIAN POLITICAL NEWS: “China’s Jiang expresses concern over Japan’s textbooks” (21/07/2001) e “S. Korea renews call for Japan’s move on history texts” (30/07/2001); THE JAPAN TIMES: “Tokyo has only itself to blame for anti-Japan riots: China” (19/04/2005) e “Machimura blasts China’s textbooks as ‘extreme’” (25/04/2005b).

[4] Batalha de Okinawa; [5] Incidente de Nanjing65 (China); [6] escravas sexuais conhecidas como ‘Comfort Women’; [7] Unidade 731 (experimentos de armas biológicas em prisioneiros chineses)66; [8] justificativa da Guerra do Pacífico, argumentando que era para a “liberação” da Ásia das mãos dos ocidentais e a construção da “Esfera de Co- Prosperidade da Grande Ásia Oriental”; [9] questionamento da legitimidade do Tribunal Militar Internacional para o Extremo Oriente – criado no início do período pós-guerra para julgar os criminosos de guerra – alegando que foi conduzido por países vitoriosos e por isso foi tendencioso; dentre outros.

A crítica não vem só dos seus vizinhos, mas também vem de dentro do próprio país. Um exemplo da crítica doméstica pode ser mostrado pela declaração que um grupo de intelectuais e famosos que assinou o documento e entregou às autoridades e à imprensa em 200167. Aí eles alegaram que estão seriamente preocupados com as futuras gerações da sociedade japonesa frente à sociedade internacional, uma vez que esses livros

65 O Massacre de Nanjing (ou Nanking), na China, refere-se a um dos crimes mais infames cometidos pelos militares japoneses durante a Segunda Guerra Mundial, depois que esse país foi ocupado pela Tropa Imperial Japonesa em dezembro de 1937. Para saber mais, veja ASKEW (2002a).

66 H

ARRIS (2002) descreve como cientistas e médicos da Unidade 731 do exército japonês conduziram experimentos de armas biológicas em milhares de prisioneiros de guerra, principalmente chineses. Os médicos da Unidade 731 infeccionavam intencionalmente suas vítimas com pragas, antrax, cólera e outras doenças e sempre os cortavam abrindo seus corpos ainda vivos sem nenhuma anestesia para examinar, isoladamente, os efeitos dessas doenças nos órgãos internos. Outras “pesquisas” envolviam congelamento e descongelamento de partes dos corpos, inclusive de crianças, ou queimando em fogueiras, expondo os prisioneiros a explosões ou a várias doenças e substâncias nocivas. Todos aqueles que foram usados morreram durante as experiências ou foram ‘sacrificados’ posteriormente. Além destes, outros tantos morreram quando as pragas e as doenças foram disseminadas no interior da China pelos cientistas japoneses. Além disso, Harris argumentou que os Estados Unidos tinham muito interesse nesses experimentos com armas biológicas e químicas e ocultaram essa questão depois da II Guerra Mundial. 67

“Statement – Deeply concerned about the regressive history textbooks, we urge the Japanese government to take appropriate action”, publicada na revista SEKAI (2001). A nota do editor desta revista diz que essa declaração foi veiculada na imprensa e entregue ao Secretário do Chefe de Gabinete do Ministro das Relações Exteriores no dia 16 de março de 2001. A declaração, como diz o título, expressa a profunda preocupação sobre os livros didáticos de História regressivos e que os que assinaram o documento urgem para que o governo japonês tome uma ação apropriada. Ela foi assinada por: [1] ARAI Shin’ichi (Prof. da Univ. Surugadai), [2] IDE Magoroku (escritor), [3] INOUE Hisashi (escritor, roteirista), [4] IRIYE Akira (Prof. Univ. Harvard), [5] UKAI Satoshi (Prof. Univ. Hitotsubashi), [6] OISHI Yoshino (fotógrafo), [7] OE

Kenzaburo (escritor, ganhador do prêmio Nobel), [8] KANEKO Masaru (Prof. Univ. Keio), [9] KOMORI Yoichi (Prof. Univ. Tokyo), [10] SAKAMOTO Yoshikazu (Prof. Emeritus Univ. Tokyo), [11] SATO Manabu (Prof. Univ. Tokyo), [12] SHOJI Tsutomu (pastor), [13] SUMIYA Mikio (Ex-Presidente, Tokyo Women's University), [14] TAKAHASHI Tetsuya (Prof. Assoc. Univ. Tokyo), [15] HIGUCHI Yoichi (Prof. Univ. Waseda), [16] MIKI Mutsuko (Esposa de um ex-Primeiro Ministro), [17] MIZOGUCHI Yuzo (Prof. Univ. Daito Bunka).

didáticos não são apropriados para ensinar as verdades da História e isso parece aprofundar cada vez mais a descrença dos povos asiáticos em relação ao Japão.

TAWARA (2000) e SAALER (2004)68 mostram como essa questão dos livros didáticos está intimamente relacionada às pressões políticas da direita que têm sido significativas. Apesar de não representar a maioria, os conservadores exercem uma grande influência na política japonesa – e também no mercado editorial. Como já foi dito, os livros didáticos de História no Japão precisam da aprovação do Ministério da Educação para serem usados em escolas públicas. Esta aprovação só pode ser obtida pelos editores submetendo o texto preliminar para ser analisado por uma comissão anônima indicada pelo Ministério a cada quatro anos. Sem essa aprovação, os livros didáticos de História não podem ser adotados nas escolas públicas nem privadas, acarretando conseqüências devastadoras para as finanças da editora. Ao longo dos anos, o Ministério da Educação tem sido acusado de censurar os textos, especialmente os termos dos conteúdos relacionados à agressão de guerra do Japão na Ásia. Os editores, diante da pressão sofrida pelo governo através do Ministério da Educação e conservadores, optaram por uma “restrição voluntária” nos conteúdos dos livros didáticos para estar conforme as opiniões de censura e recomendações (ainda que veladas) da comissão julgadora. Segundo Saaler, a tendência de abrandar, manipular e/ou omitir informações referentes aos tempos de guerra não é um resultado direto do processo de aprovação, mas um resultado do aparecimento dos livros do Tsukuru-kai つ く る 会 – um grupo conservador que surgiu em 1997 propondo uma reforma nos livros didáticos de História japonesa. A editora Fusōsha 扶桑社 publicou um livro que entrou no mercado editorial como competidor. Embora este livro didático tenha sido pouco adotado nas escolas (menos que três, talvez), sua aparição há alguns anos causou mudanças nos conteúdos dos livros didáticos de outras editoras também. Até quatro anos atrás, quase todas as editoras incluíam todas as informações detalhadas sobre, por exemplo, o Massacre de Nanjing em seus livros, mas nas edições que surgiram desde então (e que estão em uso atualmente), muitas outras editoras tiraram essas entradas ou diminuíram-nas drasticamente. As

68

Sven SAALER fez comentário a respeito em H-Japan [ www.h-net.org/~japan ] (27/04/05) e nessa mesma lista eletrônica, seu livro (2004) foi citado.

editoras obviamente sentiram a necessidade de se ajustar no sentido de encarar o desafio que o novo competidor (Fusōsha) impôs. De fato, no processo de seleção de 2001, as editoras que mantiveram as informações detalhadas sobre assuntos como o Massacre de Nanjing e outros (Nihon Shōseki, Kyōiku Shuppan) perderam espaço no mercado. A Nihon Shōseki reduziu a menos que a metade da sua parte no mercado comparado a quatro anos atrás, enquanto o livro didático que não lidou muito com assuntos relacionados à guerra, como o livro didático de Tokyo Shōseki, conseguiu ganhar o mercado e detém mais de 50% deste.

Embora o livro didático de Fusōsha não tenha ganho uma porção significativa do mercado, sua aparição causou repercussões importantes na situação como um todo. Devido ao resultado do processo de seleção de 2001, muitas editoras das edições mais recentes (as que apenas receberam a aprovação), obviamente tiveram que reduzir ou excluir as entradas que se referem à história da guerra. Boa parte do medo de outras editoras em perder o mercado está baseada na suposição de que o livro didático do Tsukuru-kai tem vantagens no processo seletivo devido a suas fortes conexões políticas; e assim, essas conexões políticas fazem as outras editoras ajustarem o conteúdo de seus livros didáticos como excluir passagens de alguns assuntos polêmicos.

Toda essa discussão nos remete à questão atual da educação dos filhos de brasileiros que estão permanecendo cada vez mais no Japão. A pergunta surge quando se discute atualmente qual a melhor educação a oferecer a essas crianças – educação ‘brasileira’ ou ‘japonesa’? – um dilema vivido por muitos pais. No contexto migratório, a questão educacional das crianças é uma das mais afetadas. Caso optem por uma escolarização ‘à la japonesa’, é preciso estar atento também ao conteúdo do ensino, como bem atentou Lílian HATANO (2005). Isso sem contar outros problemas que essa questão educacional envolve, como a barreira lingüística, adaptação, assimilação cultural, preconceito ou, no caso o ijime 苛め que são os maltratos que os próprios colegas japoneses vêm fazendo para quem é visto não apenas como o mais fraco, mas também

como diferente ou destoante da turma – consoante com a idéia de homogeneidade da sociedade japonesa como viemos discutindo – etc 69.

O ijime 「苛め」[maltrato] é bastante conhecido entre os japoneses, que em muitos casos acreditam que isso é apenas uma etapa a ser vencida na vida de seus filhos, e que por isso mesmo deve ser superado com êxito. Como Fernando MIAZAKI (2001) descreve, na rígida hierarquia existente nas escolas japonesas é um costume de os alunos mais velhos aproveitarem-se dos alunos mais novos e esses ao crescerem farão o mesmo com os novatos ou calouros, gerando um círculo vicioso infindável. Não bastasse a vergonha e a humilhação pela qual passam as crianças que são extorquidas e ameaçadas constantemente, o trauma que isso poderá gerar em suas vidas será algo irreversível e que talvez comprometa o futuro dessas crianças de forma definitiva. Não são raros os casos de jovens que por se sentirem ameaçados pelos colegas de escola preferem se suicidar a enfrentarem o problema de frente. Esse problema do ijime existente no sistema educacional japonês é um mal que é até certo ponto tolerado pela sociedade nipônica, que fecha os olhos e conta inclusive com a conivência de boa parte dos professores, educadores, políticos e de outros setores da sociedade.

Marly HIGASHI (IPC, 15/02/2003) reportou alguns casos de ijime entre os jovens

brasileiros que estudam no Japão. Por exemplo:

69 Em relação à questão educacional das crianças brasileiras no Japão, veja os papers dos Anais do Simpósio Internacional de Educação Comparada Brasil-Japão de: HATANO; HINO; KOBAYASHI; KOJIMA; MATSUDA;MATSUMOTO;KyokoNAKAGAWA;NII;SATO;YAMAMOTO;YAMANAKA – todos publicados em 2005.

“Kleber, quando tinha 10 anos, sua obesidade e os tropeços com a língua eram alvos de chacota. ‘Muitas vezes, meus pais foram me buscar no portão devido às chantagens

Diante das queixas do pai, o diretor camuflava o problema. Argumentava que eram diferenças de cultura e língua. O professor nem sequer advertia o agressor, pois tinha medo de sua liderança maléfica na sala. Sabia inclusive que ele fazia ijime com outros japoneses para extorquir dinheiro.